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Sexta-feira da Paixão: ápice das representações do sofrimento em Brumal

3. A CONSTITUIÇÃO DE CORPOREIDADES DO CATOLICISMO EM

3.1 Corpo Sacramental

3.1.11 Sexta-feira da Paixão: ápice das representações do sofrimento em Brumal

As observações realizadas durante a Semana Santa em Brumal fornecem informações suficientes para quese possa conferir à Sexta-Feira da Paixão a condição de ser o dia do calendário religioso dedicado à valorização das representações penitenciais e de sofrimento. Indubitavelmente, nesse dia Brumal é tomado por uma aura de recolhimento e tristeza. Não são vistas crianças brincando; os bares e o comércio em geral permanecem de portas fechadas; não se ouve música alta e, praticamente, não há transeuntes nas ruas.

Na igreja Matriz de Santo Amaro, principal templo das manifestações católicas do lugar, três cortinas roxas são afixadas nos altares cobrindo-os totalmente. Ainda no templo, a imagem da Virgem Maria tem sua vestimenta azul e branca substituída por um manto e um véu roxos, cor que simboliza luto e dor. Com isso, Maria, mãe de Jesus, passa da condição de Mãe Virgem para a condição de Mater Dolorosa, mãe que acompanhou o filho até o último momento, sofrendo a dor que somente uma mãe pode sentir,ao ver um filho torturado, humilhado, crucificado e morto. A retirada das cortinas e da vestimenta de Nossa Senhora somente ocorrerá no domingo de Páscoa. Portanto, ao desenvolverem tais ações ritualísticas, as lideranças religiosas colaboram na montagem de um enredo que dá destaque a representações de caráter penitencial, de sofrimento e luto, que ganham destaque nos olhos do fiel e marcam seus sentimentos.

O enredo inclui a manifestação da denominada Via Sacra, ou Via Crucis, caminho da Cruz. Essa procissão solene, de caráter penitencial, tem por objetivo representar 14 ou 15 momentos do caminho percorrido por Jesus, desde seu julgamento até o Calvário onde é crucificado. (NUNES, 2008). Corbin (2004) acrescenta a isso, que a Via Sacra representa, em

cada uma de suas estações, a possibilidade do fiel lembrar e reviver o sofrimento progressivo do corpo de Cristo.

As principais expressões corporais observadas durante a Via Sacra confirmam a percepção de tratar-se de um processo de valorização individual e coletiva do sofrimento. A representação penitencial está expressa na fisionomia de introspecção que os fiéis assumem, em sua postura contida, no profundo silêncio durante o trajeto, somente interrompido pelo som das orações próprias dessa ocasião. Logo à frente do grupo encontra-se o cruciferário, indivíduo que carrega a cruz, principal elemento do sacrifício de Jesus. Também é de responsabilidade do cruciferário manter o ritmo lento da caminhada, o ritmo lento dos passos de todos os presentes. Assim, as representações de luto, respeito e penitência contam com o corpo para serem expressas.

Como foi dito, a Via Sacra possui 14 ou 15 estações, que representam os momentos chaves do caminho doloroso percorrido por Jesus até o Calvário. Em Brumal essas estações são representadas pelas casas dos próprios moradores da Rua Principal e toda vez que os moradores passam de uma estação a outra, a moradora condutora do momento pronuncia os seguintes dizeres: “Nós vos adoramos e bendizemos!”, e suas palavras são acompanhadas de uma semi-inclinação do tronco por parte dos fiéis, que assim expressam solenidade, reverência, respeito e submissão em honra ao sofrimento vivido pelo Cristo.

Constata-se, assim, que as expressões próprias dessas circunstâcias inscrevem-se nos corpos dos participantes, pois, segundo sua cosmovisão, ainda que expressa simbolicamente, esses rituais servem ao propósito de rememorar os sofrimentos de Jesus. Em outros tempos e fora do contexto da Via Sacra, era bastante comum ouvir na localidade expressões como: “Se Jesus sofreu assim, porque eu não posso?”, ou “Jesus foi crucificado e sofreu bem mais do que estou sofrendo.”. Essas expressões verbais sugerem a valorização do ato penitencial, que associa-se à necessidade que o fiel católico tem de incorporar sua relação com Cristo.

Além disso, a Sexta-Feira Santa em Brumal apresenta uma manifestação bastante peculiar, própria desse local, que contribui para a reflexão sobre o dia dedicado à valorização do sofrimento e da importância do ato penitencial. A manifestação a que nos referimos é de exclusividade de uma das familias tradicionais da cidade e foi intitulada oração dos trinta e três credos, por essa mesma família.

3.1.12. Oração dos trinta e três credos

Inicialmente, cabe assinalrta que a manifestação aqui referida deve ser articulada às expressões penitenciais que marcam a Sexta-Feira da Paixão. Se Brumal é envolvido de maneira geral por essa aura de recolhimento, tristeza, respeito e dor, isso em muito se deve às tradições preservadas nos contextos familiares locais. Tradição, coletividade, família e individualidade fornecem as estruturas básicas indipensáveis para a constituição das representações por nós observadas.

A oração dos trinta e três credos tem lugar na casa de uma das moradoras da cidade e conta com a presença de todos os membros da família: irmãs, irmãos, cunhadas, cunhados, filhas e filhos, netas e netos, noras e genros. Segundo relatam, eles dão prosseguimento ao que seus pais e avós iniciaram e transmitiram aos filhos, esperando que esses ensinamentos fossem repassados de geração em geração.

Sobre a importância desse ritual familiar, afirmam os seus praticantes que ele serve ao propósito de manter a tradição, os elos, os valores familiares e, principalmente, a união familiar por meio da fé. Uma das mulheres dessa família é enfática ao dizer que”(...) a fé remove montanhas (...)”.

Outras informações ali obtidas contribuem para a reflexão sobre as representações desse dia e de suas ressonâncias nos corpos do fieis católicos. Outra das mulheres dessa família diz que era comum na sexta-feira da Paixão a família inteira jejuar, as crianças serem impedidas de brincar, todos serem impedidos de brigar, de arrumar a casa e até mesmo de pentear os cabelos. Essas ações constituem representações nítidamente associadas ao enredo geral do dia, pois incluem o reconhecimento da importância do respeito, da submissão, da penitência, da tristeza e do luto. Em uma das informações fornecidas esse pressuposto fica particularrmente comprovado: os adultos justificavam tais ações amparados pelas personagens e pelo enredo histórico próprios da sexta-feira da Paixão. Em um dos momentos de nossa entrevista eles mencionaram que a Virgem Maria, ao testemunhar os sofrimentos de seu filho, não preocupou-se com a arrumação da casa, nem pensou em pentear os cabelos. Do mesmo modo, ao atentarmos para as nuances da expressão corporal, encontramos indicativos que comprovam os argumentos de Gélis (2008), sobre a busca que o católico realiza visando a incorporar-se ao Cristo, por meio de atos penitenciais, como asceses e privações de prazer.

Vale ainda trazer para este debate os motivos que determinaram que essa reza ocorresse em casa e não na igreja. Segundo as informantes, a presença de figuras religiosas oficiais era mínima na Brumal de outrora. A ausência do clero oficial pode ter sido, e muito provavelmente foi, uma das condições de estruturação e configuração do catolicismo denominado popular (CAMARGO, 1973; QUEIROZ, 1973). A ausência do clero em Brumal é confirmada por informações obtidas em nosso levantamento bibliográfico, particularmente na obra Visitas Pastorais de Dom Frei da Santíssima Trindade (1821 – 1825), de 1998, que registra as visitas desse representante do Clero nas comunidades sob custódia da Arquidiocese de Mariana. Em apontamentos sobre uma de suas visitas ao então arraial de Brumal (LIMA e OLIVEIRA, 1998), ele descreve que o arraial possuía aproximadamente 1000 almas, não faz menções às características da população da época, caracterizando-a apenas como “um povo bastante reservado”.

Quanto ao enredo dessa manifestação religiosa, cabe dizer que ela transcorre do seguinte modo: os membros participantes reúnem-se todos os anos na sexta-feira da paixão para realizar a oração de trinta e três credos. Eles não conhecem a razão pela qual são trinta e três credos, mas garantem que desde o início desse rito a oração do Credo é intercalada com outra oração, que diz o seguinte: “No campo de Josafá encontrei meus inimigos, perguntarão responderei temes a mim ou temes a cruz? Não temo nem temerei, pois no dia da morte paixão trinta e três credos rezei”. Essas orações são repetidas por trinta e três vezes.

Uma especial atenção a essa oração que passou a ser articulada ao Credo é possível identificar a forma como são representados alguns elementos da cosmologia católica, entre os quais ganha destaque a necessidade e a importância de ter fé, tanto na Igreja quanto nos seres espirituais. Nessa oração também são retomados elementos importantes doculto, entre os quais o culto aos santos e o valor da ressurreição. Por fim, a oração busca obter proteção contra os inimigos que a vida apresenta. Esse quadro fica melhor eantendido ao retomarmos as características do catolicismo praticado nas veredas rurais, que inclui entre suas principais características o constante quadro maniqueísta que tem, de um lado, o Bem, representado pelo catolicismo e, deoutro lado, o Mal, representado por tudo o que contradiz o cosmo católico.

Outra ação bastante peculiar a ser ressaltada, e que diz respeito ao corpo, é a forma de contar os trinta e três credos. Cada membro participante fica com um punhado de trinta e três feijões e a cada credo terminado, um feijão é separado do punhado inicial. A ressonância corporal em destaque refere-se aos pequenos gestos de separar os feijões durante a contagem. Essa ação gestual pode ser entendida como a construção da eficácia do sagrado para aquele

momento, pois cada feijão separado de um punhado para compor outro, representa um deslocamento pessoal rumo ao que se deseja obter por meio da oração: estar cada vez mais próximo daquilo que se almeja conquistar. Vale dizer também que a representação penitente, reflexiva, de luto e de respeito fica garantida, pois durante boa parte dessa manifestação religiosa os participantes permanecem reflexivos, expressam tristeza e apresentam fisionomia contida, embora ocorram momentos de sorrisos pela alegria do congraçamento familiar e não oficial da ocasião.

Por fim, o momento é sacralizado quando, ao fim do último credo rezado e do último feijão deslocado, uma das senhoras pede a todos que fiquem em pé e que formem um círculo dando as mãos uns aos outros para, juntos, rezarem as orações do Pai Nosso e da Ave Maria. O círculo e o dar as mãos representam a união familiar sob a égide católica, tendo como norteadores, a figura de Jesus e da Virgem Maria. Aqui, o corpo é instrumento decisivo no processo de interiorização, exteriorização e na experiência de comunicação com o Sagrado.

Os elementos descritos possibilitam entender como o fiel situa-se em relação ao Sagrado e, a partir disso, como certos elementos inscrevem-se em seus corpos, seja na ação gestual, nos jejuns ou mesmo no abster-se de determinados prazeres. Assim, essa manifestação religiosa, como as outras desse período do ano, também tem suas bases na valorização do sofrimento de Jesus Cristo e da Virgem Maria.

3.1.13. Matrimônio

Popularmente conhecido como casamento, o sacramento do matrimônio representa a aliança estabelecida entre homens e mulheres sob a égide católica. Ao longo da história cristã verificaram-se mudanças significativas nos valores matrimoniais. Entretanto, a mais significativa para os debates talvez seja a que diz respeito ao ato sexual. Homens e mulheres, ao casarem-se, prometem o uso sexual de seus corpos somente para a procriação e não para a satisfação prazerosa advinda de momentos de volúpia (NUNES, 2008; CORBIN, 2004). Isso remete a elementos já mencionados, sobre o caráter monástico e a condição de castidade que o casamento exige, segundo o entendimento de como deva ser a vida sexual do casal segundo os preceitos católicos (LE GOFF, 1994). Com isso, os deveres conjugais assumiram representações ímpares de controle das necessidades sexuais de homens e mulheres. No

entanto, a Igreja vê-se diante de um quadro complexo referente aos níveis de proibição estabelecidos. Reconhecendo os riscos de estabelecer um quadro de reclusão muito severo, considerou melhor que o casal se entregasse as vontades de um e do outro, do que cometessem adultérios, prostituições e promiscuidades (CORBIN, 2004). A partir disso desenvolveu-se um quadro de negociações sobre os sentidos da castidade tendo, de um lado, a religião e o controle da sexualidade e, do outro, as necessidades sexuais humanas. Para ampliar o entendimento de tais constituições matrimoniais apresentamos a seguir um trecho de uma das entrevistas:

Devoto: Eu entendo que castidade também é fidelidade, no casamento. Por exemplo, um casal sendo fiel, ele também tá sendo casto também. Pra mim, o uso da camisinha, a Igreja não concorda, mas pra prevenir tantos filhos em famílias que não têm responsabilidade e estrutura, às vezes por falta de orientação. Eu acho que a Igreja, devia orientar mais os casais. Tem até o curso de noivos.

Sobre o sentimento de culpa presente nas referências sexuais, Le Goff (1994) e Corbin (2004) consideram que as mudanças religiosas para a questão sexual, fizeram comque esse sentimento tivesse presença constante no vivente cristão. O mesmo Corbin (2004) enfatiza as referências relacionadas à virgindade enquanto valor católico, o que somente é possível devido à valorização da Virgem Maria que, mesmo sendo mãe, preservou sua virgindade, pois em seu ventre estava o Salvador. Com isso, somado ao elemento salvação, a virgindade e a consequente castidade assumem ao longo da história católica valores e singularidades que permeiam de maneira substancial a cosmovisão e a maneira do católico viver a própria sexualidade.

Contudo, os valores religiosos e, no presente caso, a questão da sexualidade, podem ser modificados em níveis de representação segundo o momento histórico vivido, o que representa uma fragilização de valores institucionalizados, como pode ser visto no conteúdo de entrevistas realizadas:

Devota: A questão da castidade foi por opção mesmo. Mesmo o padre falando tudo aquilo, eu optei, hoje eu acho uma bobagem e não incentivo ninguém e nem se consegue e acho uma estupidez. Acho que a gente precisa ter experiência, com seu próprio marido, pra suavizar um pouco, porque a expectativa, que quando você vai pra uma lua de mel, que deveria se chamar lua de féu, é infernal.

Observante homem: Bom, isso aí ô Murilo. Na Igreja hoje, graças a Deus, os padres também estão com a cabeça voltada pra realidade do nosso mundo, então eles trabalham em cima disso, não apoiando o sexo em geral, abolindo a prostituição, as

orgias, então hoje graças a Deus a cabeça dos padres na prática estão muito tranquilas quanto a isso. Camisinha não é questão de proibir, eu acho que é questão de responsabilidade mesmo, nos dias de hoje é questão de responsabilidade mesmo. Conformista mulher: Essa pergunta é um pouco mais complicada, porque do jeito que o mundo está hoje... Mas num sei [pausa longa] num sei não, porque o mundo de hoje está muito complicado. Igual relação sexual só depois do casamento, não existe mais, hoje não. Porque é bem complicado te responder. Ah num sei. Esse negócio de antes ou depois quem tem que saber, é cada pessoa. Porque hoje tem muita menina nova arrumando criança e não dá conta de criar depois. Aí acontece o que acontece, mãe abandonando menino.

Conformista homem: As leis da igreja católica e qualquer igreja, às vezes eu sou contra algumas coisas, outras eu concordo. Por exemplo, na época que essas leis foram estabelecidas era outro mundo né? Isso foi há muito tempo. Igual hoje, essa parte de uso de preservativos, eu acho que eles deveriam é incentivar, tem questão de doenças sexualmente transmissíveis, tem questões da pessoa por um filho no mundo e não ter condições de criar, daí já leva para a marginalidade, a violência.

Concomitantemente, o matrimônio traz consigo diferentes comemorações chamadas de bodas, com destaque para as de prata, ouro e diamante, que caracterizam os aniversários de 25, 50 e 60 anos respectivamente. Em Brumal essas manifestações matrimoniais transcorrem em datas escolhidas pelo casal, que geralmente opta por datas próximas à do aniversário de casamento.

Durante o período das observações em campo foram realizadas duas bodas - uma de ouro e a outra de prata. Os dois rituais não apresentam diferenças significativas quanto a seu conteúdo litúrgico, nem quanto à estrutura de seu ritual. A principal representação dessas celebrações reside na reafirmação do voto matrimonial. Além do casal, o padre assume função de destaque por ocupar a posição e assumir a condição de mediador do Sagrado, ao sacralizar aquela união entre um homem e uma mulher e reatualizar a força presente durante o ritual do casamento.

O padre interage de maneira direta com o casal, realizando um sermão que associa aos valores familiares católicos a jornada daquele particular casal na esfera comunitária. Somente depois disso, marido e esposa reafirmam seus votos e trocam as alianças. Esse é um momento de grande alegria e emoção do casal, da família por eles constituída e da comunidade, principalmente daqueles que acompanharam essa trajetória matrimonial.

Durante esse ritual sacramental de reafirmação de votos, a missa transcorre segundo os mesmos moldes estruturais de outras missas. A diferença consiste em que, à medida que a celebração se desenrola, personagens integrantes da trajetória do casal, tais como filhos e os padrinhos, passam a integrar o enredo da celebração. O momento chave é o da troca de

alianças e, nesse momento, as expressões corporais são de ordem gestual, pois as alianças são colocadas no dedo anular da mão esquerda de ambos. As alianças representam a união do amor estabelecido entre homens e mulheres sob a égide e os preceitos católicos. Tanto o noivo quanto a noiva utilizam sua mão direita para colocar a aliança na mão esquerda de seu cônjuge. Essas ações simbolizam a sacralização do momento e o significado de uso do lado direito do corpo, o lado sagrado, soma-se ao simbolismo das alianças, tornando evidente o caráter solene dessa celebração.

No caso específico do matrimônio, o padre pede a todos os padrinhos que estendam sua mão direita em direção ao casal para abençoá-los. Essa ação representa, a partir da utilização do lado sagrado, a possibilidade dos padrinhos, figuras de carinho e de confiança, colaborarem na sacralização e na concessão de bençãos naquela ocasião.