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3. A CONSTITUIÇÃO DE CORPOREIDADES DO CATOLICISMO EM

3.1 Corpo Sacramental

3.1.10 Senhor dos Passos – Ressonâncias Corporais

Nossos registros possibiltaram identificar a condição de pluralidade relativa às nuances do sofrimento religioso, expressos em representações corporais. Em Brumal, durante as observações, pudemos identificar a existência de um espaço oficialmente dedicado ao culto ao sofrimento, pormeio da figura central do catolicismo: Jesus Cristo. Esse local recebe o nome de Capela do Nosso Senhor dos Passos e apresenta diversos elementos que remetem ao contexto de sofrimento que envolveu a crucificação de Jesus. No presente contexto, é importante e significativo levantar as consequências de tais representações sobre o corpo.

Logo ao chegar, ainda na área externa do templo, o fiel encontra uma grande cruz de madeira, com diferentes artefatos, também de madeira, que simbolizam os sufrágios da crucificação do Jesus histórico. Entre esses elementos incluem-se os cravos que pregaram suas mãos e seus pés, a lança do destino que perfurou seu peito, o galo que anunciou as três negações do discípulo Pedro, a hóstia e o cálice, que representam o corpo e o sangue do

Cristo. Tais elementos acham-se ali inseridos para integrar a construção imagética católica do sacrifício do Cordeiro, e reatualizar, no presente, a narrativa do sofrimento da figura central do cristianismo. Nesse sentido, segundo Gélis (2008), “os instrumentos da paixão simbolizam o percurso doloroso do Redentor e cada um deles lembra, por sua materialidade, um momento de aviltamento de seu corpo”. Vemos, assim, que a Igreja possui múltiplas estruturas que possibilitam rememorar, reviver numplano simbólico e, ao mesmo tempo, preservar as principais e mais significativas bases de sua cosmologia, para realizar a contento o seu empreendimento normativo.

Ao ingressar no espaço interno da pequena capela o fiel encontra, num único altar ali existente, as imagens de Nossa Senhora das Dores, Sagrado Coração de Jesus, Imaculado Coração de Maria e São José. No centro de tudo encontra-se o Santo Sacrário. Essas imagens estão organizadas de forma a compor, graças a seu simbolismo, um espaço de culto ao sofrimento, pois representam o sofrimento materno, o paterno e, na peça central, a do Sacrário, o sofrimento máximo, do próprio Cristo, cujo corpo, transubstanciado em hóstia, encontra-se onde deve encontrar-se: no centro da mensagem cristã.

O destaque imagético da capela é dado a duas imagens de Jesus em tamanho real. Em uma delas seu corpo está semi-inclinado, carregando a cruz. Traja vestes roxas, traz a coroa de espinhos ferindo sua cabeça e partes despidas de seu corpo permitem que sejam vistas as chagas que suas quedas na subida ao Calvário produzidam em seus braços e pernas. A outra imagem representa Jesus morto: deitado em uma estrutura de madeira, com as chagas à mostratem o corpo quase completamente coberto por um pano branco.

Essas imagens são expostas para além desse espaço da capela, pois protagonizam certas manifestações religiosas durante a semana santa local: a imagem de Jesus carregando a cruz é colocada no início da procissão do Senhor dos Passos, que seguirá rumo ao encontro com a procissão de Nossa Senhora das Dores. Quando esses dois cortejos encontram-se os grupos fundem-se, formando a Procissão do Encontro. Essa procissão ocorre todas as terças- feiras da Semana Santa. A outra imagem de Jesus, já morto, é conduzida na sexta-feira durante a procissão que conduz a celebração religiosa oficial da Sexta-Feira da Paixão ao encontro com o teatro religioso realizado no local.

Durante a Procissão do Encontro evidencia-se uma série de posturas e de gestos dos participantes, como elementos fundamentais do evento. As principais ações observadas por nós foram a semi-inclinação de cabeça, a fisionomia contida, a adoção de semblantes de

tristeza, devoção e piedade e um caminhar lento. Com isso, os fiéis, baseados em sua cosmovisão, partilham, ainda que momentaneamente, dos sofrimentos de Jesus e de sua Mãe Maria. Nas reproduções ritualísticas rememora-se o passado de sofrimentos e busca-se reatualizar a força regeneradora do sacrifício do Cordeiro.

Durante a Semana Santa em Brumal, particularmente na quarta, quinta e sexta-feira, tem lugar a encenação teatral no largo da igreja, a céu aberto, dos últimos momentos da vida de Jesus Cristo. Os atores são os próprios fiéis da comunidade que, organizados, fundaram o Grupo de Teatro Arte Sacra. Assim, questões da intergface da arte com a religião são marcadas por apropriações que perpassam a dimensão imagética. Para Montes (1998, p.104) “desde os primeiros jesuíticos, o teatro, a dança, a poesia e a música havia se integrado ao arsenal catequético, evidenciando que era preciso aturdir as almas, para conquistá-las e elevá- las à grandeza inefável do sagrado”.

Essa discussão poderia ser ampliada para o domínio do religioso e do atual panorama social brasileiro, cuja principal característica é a perda da centralidade por parte da religião católica, no projeto coletivo de organizar e orientar a experiência de vida de grande parte da população. Assim, o uso de recursos artísticos, como o teatro, pode ser interpretado como integrante de um conjunto de respostas à crescente população de protestantes (MONTES, 1998).

Desse modo, a encenação em Brumal também integra o conjunto de ações religiosas da Sexta-Feira Santa, pois em determinado momento da representação teatral, Jesus é levado ao Calvário para ser crucificado. O Calvário é construído em frente à Capela Nosso Senhor dos Passos. Ao final, o padre toma a palavra e realiza uma pequena celebração, ao término da qual os fiéis presentes saem em procissão rumo à Matriz. A procissão obedece à mesma estrutura das demais, com as pessoas organizadas em duas filas, tendo ao centro as figuras religiosas oficiais e leigas, uma das quais carrega o principal símbolo da cerimônia: a cruz. Chegando à igreja Matriz os fiéis, em breve cortejo, deslocam-se até o altar central, espaço em que se encontra a imagem do Senhor dos Passos. A imagem de Jesus já morto também está posicionada, ainda envolta em um pano branco, porém já enfeitada com folhas de manjericão. À medida que as pessoas passam pela imagem, realizam breves orações, acrescidas da retirada de ramos do manjericão e de sinais de reverência à Santíssima Trindade.

As ações corporais demonstram que os fiéis assumem o fato de que tais representações valorizam o sofrimento, a penitência e o luto. Por isso a procissão é realizadas em ritrmo lento, os cânticos são tristes, as pessoas permanecem em estado de introspecção, com as cabeças baixas e as fisionomias entristecidas. Ao passarem junto à imagem do Senhor dos Passos fazem o sinal da Santíssima Trindade e o fazem para agradecer, pois no imaginário católico, Jesus morreu para salvar a humanidade.