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Dimensão objetiva da imparcialidade delineada pelo TEDH

3. Impossibilidade da atuação ex officio do juiz em matéria de produção de prova

3.1. Imparcialidade judicial

3.1.2. Dimensão objetiva da imparcialidade delineada pelo TEDH

Conforme visto, a imparcialidade do julgador é um princípio reinante do processo, imprescindível para o alcance de um resultado justo. Como consequência lógica da adoção do sistema de hetero-composição, no qual um terceiro, agente estatal, assume o papel de dirimir o conflito, é que este terceiro mantenha inteiro alheamento aos interesses das partes da causa.

Em sua concepção tradicional, como visto, a imparcialidade significa a qualidade do julgador de não estar intimamente vinculado aos interesses das partes, isto é, a convicção de não estar pessoalmente atrelado aos interesses dos sujeitos processuais. Essa dimensão subjetiva, que implica na necessidade de o julgador não possuir “pré-juízos” firmados, ou inclinações com determinados interesses em jogo, não esgota toda a dimensão da imparcialidade.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH delineou uma nova dimensão à imparcialidade do julgador, asseverando que o julgador deve estar em situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida acerca de sua imparcialidade. A análise da imparcialidade com essa feição objetiva está inserida no contexto do significante impacto para os sistemas continentais da jurisprudência do TEDH.148 O alcance da imparcialidade perpassa, portanto, de sua feição tradicionalmente subjetiva, que deriva da relação do juiz com as partes, para possuir também um cunho objetivo, consubstanciado na relação ou posição do juiz em função do objeto do processo.

A feição objetiva, portanto, diz respeito a aparência de imparcialidade, no sentido de que a atuação do julgador não deve gerar desconfiança ou incertezas entre os sujeitos processuais ou na própria comunidade em geral sobre seu efetivo alheamento diante dos interesses discutidos no processo. A necessidade de transmitir esta impressão de isenção, inerente ao exercício da jurisdição, vai mais além do que a simples constatação de ausência de vínculos juridicamente relevantes entre o julgador e qualquer interessado no processo (imparcialidade subjetiva). A índole objetiva parte da necessidade de imagem da imparcialidade, da qual se projeta a própria legitimidade da função jurisdicional. A aparência de imparcialidade, portanto, é um

148 BUISMAN, Caroline; BOUAZDI, Myriam; COSTI, Matteo. Principles of Civil Law. In KHAN, Karin A. A, BUISMAN, Caroline; GOSNELL; Christopher (org). Principles of Evidence In

fator de primeira grandeza para que os jurisdicionados e os cidadãos em geral tenham confiança necessária no aparato judicial, o que vai conferir o próprio atributo de legitimidade. Por esta feição, o julgador, em sua conduta, deve oferecer garantias para excluir qualquer dúvida razoável a respeito, no sentido de que sua conduta seja percebida como inteiramente isenta.

O artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 estabeleceu inicialmente o direito fundamental que todo cidadão tem de ser julgado por um tribunal imparcial149, e inspirou todos os seguintes textos internacionais que contemplaram a imparcialidade, com destaque para a Convenção Europeia dos Direitos dos Homens.150

Com efeito, a previsão expressa do direito a ser julgado por um tribunal imparcial nos textos internacionais ganhou incisiva importância por força da jurisprudência construída pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos– TEDH, especificamente no enfoque objetivo. Partindo do pressuposto que a imparcialidade do julgador é um direito autônomo dentro de um processo justo e com todas as garantias, a doutrina delineada pelo TEDH enriqueceu o conteúdo e alcance deste instituto, conferindo-lhe concretude ao determinar sua intensidade e âmbitos de incidência, especialmente no âmbito penal.

É preciso frisar que dimensão objetiva da imparcialidade não foi criada por força do TEDH. Essa concepção já existia nos países de tradição anglo-saxônica, bem consolidada via precedentes judiciais, especificamente no Estados Unidos, a partir da Sexta e Décima Quarta Emendas, no velho adágio anglo-saxônico justice must not only be done, it must also be seen to be done. Embora não haja a menção ao rótulo “imparcialidade objetiva”, a Suprema Corte americana, em diversos julgados151

,

149 Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Artigo 10. Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e

imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria

penal que contra ela seja deduzida” (grifo nosso).

150 Convenção Européia dos Direitos do Homem: “Artigo 6. 1. Qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e

imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e

obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contraela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audi ncias pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça”. (grifo nosso).

151

Tumey v. Ohio (1927); Dugan v. Ohio (1928); Mayberry v. Pennsylvania (1971), Ward v.

asseverou a impossibilidade de atuação de juízes, em função de determinada atuação prévia ou ligação com as partes, onde a sua confiança ou credibilidade restaram comprometidas.152 Nestes, não necessitou da comprovação da afetação do estado anímico do juiz, mas apenas das circunstâncias objetivas do caso em que revelam um possível déficit de isenção decorrentes da própria atuação ou vínculo anterior. 153

O mérito do TEDH foi sedimentar esse caráter e irradia-la para os demais países europeus do civil law, conferindo assim uma maior unidade de entendimento acerca do direito a um julgador imparcial.

In: LaFAVE, Wayne R; ISRAEL, Jerold H. Criminal Procedure. 2. ed. St. Paul, Minnesota: West

Publishing Co, 1992, p. 1096.

152 Interessante trecho de julgamento por um tribunal inglês no caso Jones v. National Coal Board (1957), referida por Billis, sobre o papel do juiz anglosaxão durante o julgamento, e de que forma, sua atuação no campo probatório pode comprometer a sua imparcialidade: “In the system of trial which we have envolved in this country, the judge sits to hear and determine the issues raised by the parties, not to conduct an investigation or examination on behalf of society at large, as happens, we believe, in some foreign countries. Even in England, however, a judge is not a mere umpire to answer the question 'How's that?' His object, above all, is to find out the truth, and to do justice according to law; and in the daily pursuit of it the advocate plays an honourable and necessary role. Was it not Lord Eldon L.C. who said in a notable passage that 'truth is best discovered by powerful statements on both sides of the question' : see Ex parte Lloyd ((1822) Mont. 70, 72n.). And Lord Greene M.R. who explained that justice is best done by a judge who holds the balance between the contending parties without himself taking part in their disputations? If a judge, said Lord Greene, should himself conduct the examination of witnesses, 'he, so to speak, descends into the arena and is liable to have his vision clouded by the dust of the conflict' : see Yuill v. Yuill ((1945] 1 All E.R. 183). Yes, he must keep his vision unclouded. It is all very well to paint justice blind, but she does better without a bandage round her eyes. She should be blind indeed to favour or prejudice, but clear to see which way lies the truth: and the less dust there is about the better. Let the advocates one after the other put tbe weights into the scales - the 'nicely calculated less or more' - but the judge at the end decides which way the balance tilts, be it ever so slightly. [ ... ] it is for the advocates, each in his turn, to examine the witnesses, and not for the judge to take it on himself lest by so doing he appear to favour one side or the other” In: BILLIS, Emmanouil. Die Rolle des Ritchers im adversatorischen und im inquisitorischen

Beweisverfahren. Berlim: Duncker & Humblot, 2015. p. 192.

153

LaFAVE, Wayne R; ISRAEL, Jerold H. Criminal Procedure. 2. ed. St. Paul, Minnesota: West Publishing Co, 1992, p. 1095-1098.