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Investigação da realidade histórica dos fatos: a verdade material

2. Poderes oficiosos do julgador penal em matéria de prova

2.2. Princípios informadores

2.2.3. Investigação da realidade histórica dos fatos: a verdade material

A verificação da verdade dos fatos é condição necessária para a justiça das decisões judiciais. Essa afirmação se funda na ideia de que nenhuma decisão pode ser considerada justa caso se embase em uma averiguação errônea dos fatos relevantes, tendo em vista que nenhuma norma pode ser aplicada corretamente tendo como suporte fatos concretos falsos ou equivocados.84

Sobre esta investigação da realidade histórica opõe-se dois modelos: a verdade material e verdade formal. Pela verdade material, requer-se a busca de um máximo possível de dados probatórios necessários a verificação do que realmente ocorreu. Pela verdade formal, a verificação dos fatos é proporcionada pelas partes como mecanismos de comprovação de seus interesses, sem que para o processo interesse uma investigação exauriente.

Com efeito, a ideia da verdade material ou real, parte da necessidade de verificação da realidade histórica dos fatos atrelada a uma reconstrução do passado tal como o mesmo ocorreu. E a necessidade de busca incansável do que efetivamente se passou, dará a tônica do modo de gestão de provas, implicando numa ampliação da gama dos sujeitos que podem trazer elementos de convicção para os autos, afinal qualquer limitação a reunião de provas é vista como impeditivo da percepção da realidade histórica. Assim, não só aos intervenientes processuais, como a defesa e o Ministério Público, como ao próprio juiz, são outorgadas faculdades probatórias como mecanismo de buscar a verdade material.

Nesta linha, não basta que haja o seguimento das regras processuais justas para que uma decisão também o seja. Uma decisão somente será justa quando aplicar o direito aos fatos verdadeiros, o que justifica os poderes instrutórios oficiosos do tribunal para a colheita de elementos necessários à decisão.

Com efeito, relegar apenas às partes a missão de apresentar as provas em juízo, seria comprometer o compromisso com a verdade, e relegar com isso a indisponibilidade da matéria tratada no âmbito penal. Assim, reconhece-se a necessidade de se outorgar ao juiz a iniciativa instrutória de ofício como reforço à

84 TARUFFO, Michaele. Poteri Probatori dele Parti e del guidice in Europa. Rivista Trimestrale di

descoberta da verdade, que pode ser negligenciada pelas partes pelos seus naturais interesses subjetivos no caso.

Elisabetta Grande, a ilustrar bem a questão, associou metaforicamente os modelos de busca de verdade a estilos de dança. O sistema adversarial está associado a uma ideia de tango justice, onde a verdade é estabelecida por dois personagens (partes), e somente por estes, que atuam em conjunto (cada um com seu papel) neste empreendimento. Neste, há uma precisão dos papéis das partes. No sistema inquisitivo, há uma espécie de rumba justice, onde um número variável de atuantes agem, ocasionalmente sozinho ou coletivamente, na busca da verdade, onde cada uma assume o papel diferente nesta tarefa conforme o andamento do processo. Aqui, passe-se certa ideia de desorganização ou imprecisão dos papéis.85

Não se pode negar, portanto, que a verdade material veio intimamente ligada ao sistema inquisitivo, onde havia necessidade de se investigar fielmente o fato para descreve-lo com máxima fidelidade histórica. Portanto, a verdade material estava inserida em uma determinada estrutura de poder, onde a definição da verdade se concentrava nas mãos do aparato estatal. Com a passagem para o modelo acusatório, que de certa forma coincide com a forma democrática de governo, as novas relações de poder que se inseriam neste contexto, exigia uma nova configuração do conceito de verdade, mais aproximativa ou consensual .86

Não obstante, parece persistir a ideia de que o fim do processo penal representa a descoberta da verdade, e com isso , a realização da justiça, no sentido de que haja sempre uma direta intenção ou aspiração constante de justiça. Essa busca da verdade material, também denominada de princípio da investigação, traduz-se diretamente nos poderes instrutórios do julgador. Não se contenta, aqui, com a atividade probatória das partes, ainda que no processo a elas seja concedido o mais dilatado âmbito de atuação, com participação constitutiva na declaração do direito ao caso concreto. Por ele, a ação instrutória do tribunal materializa-se em um verdadeiro poder-dever de esclarecer e instruir autonomamente, independentemente, das

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GRANDE, Elisabetta. Dances of criminal justice: Thoughts on systemic differences and the search for the truth. In: JACKSON, John; LANGER, Maximo; TILLERS, Peter (org.). Crime, Procedure

Evidence in a Comparative and Internacional Context. Essays in honour of Professor Mirjan Damaska. Portland: Hart Publishing, 2008, p. 163.

86 VIVES ANTÓN, Tomás. El Processo Penal de la Presúncion de Inocencia. In PALMA, Maria Fernanda (org.) Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 29-30.

contribuições da defesa e da acusação, o fato sujeito a julgamento, criando ele mesmo as bases necessárias a tomada da decisão.

Neste sentido, perfilha deste entendimento Castanheira Neves, ainda sob o domínio do Código de Processo Penal português de 1929, no sentido de que é possível conciliar o interesse público na punição com a da imparcialidade do julgador em um sistema acusatório estabeleça os poderes de investigação do julgador.87

87 NEVES, Castanheira A. Sumários de Processo Penal. Coimbra: 1968, p. 32/33: “(...)Ora o que o princípio da' acusação se propõe é justa mente a conciliação do interesse público ( e portanto da função estadual) da repressão com as exigências, de não menor interesse público, da imparcialidade e objectividade no julgamento das infracções. O que se consegue atribuin-do a órgãos públicos fundamentalmente distintos, por um lado, a função de investigação e acusação dos delitos -que compete em regra ao M. P., magistratura com um estatuto administrativo -e, por outro lado, a função de julgamento dessa acusação -que compete ao tribunal criminal, como órgão de estatuto e estrutura jurisdicional. Desse modo, e já que além disso ao acusado será dada a mais ampla possi-bilidade de contradição e de defesa da acusação feita, o julgador, se se encontra numa situação super-partes, tam-bém não está interessado senão na apreciação objectiva do "caso" criminal que lhe é submetido. Diz, portanto, o princípio da acusação que o juiz só conhecerá dos delitos que lhe sejam acusados pelo M. P. -a ocupar formalmente a posição de parte -, nemo iudex sin actore,(...)