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3.1 REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA: DA RUPTURA

3.1.3 Dimensão técnico-assistencial da RPb

A dimensão técnico-assistencial está relacionada à construção de uma nova organização de serviços, articulando uma rede de espaços de sociabilidade, de produção de subjetividades, de geração de renda, de apoio social, de moradia, enfim, de produção de vida (AMARANTE, 2003).

Yasui (2010, p.116) acrescenta que esta dimensão compreende discussões que vão

além da transformação do serviço de saúde, “trata-se do estabelecimento de uma estratégia de

cuidados que envolve o reconhecimento do território e seus recursos, bem como a assunção da

responsabilidade sobre a demanda desse território”.

Para uma melhor compreensão da dimensão técnico-assistencial da RPb trazemos um breve relato das práticas assistenciais destinadas às pessoas com transtornos mentais, percebendo a estreita relação existente entre suas dimensões epistemológica, jurídico-política e técnico-assistencial.

Desde o início do reconhecimento da psiquiatria como especialidade médica, já existiam relatos de maus tratos e práticas discriminatórias sofridos pelas pessoas com

transtornos mentais nas estruturas asilares onde eram confinadas. Hoje se sabe que a falta de humanização, o isolamento terapêutico, a repressão, a mercantilização da doença mental e a punição foram pilares do modelo psiquiátrico centrado no hospital e norteado pelo cartesianismo e positivismo das ciências naturais, num contexto epistemológico no qual “a realidade era considerada um dado natural, capaz de ser apreendida e revelada em sua

plenitude” (AMARANTE, 2007, p. 66).

Dentro desse panorama de práticas terapêuticas segregadoras e estigmatizantes começaram a se destacar pelo Brasil algumas iniciativas de ruptura com o aparato teórico- conceitual que norteava a assistência psiquiátrica no Brasil. Tais críticas, aliadas à força dos movimentos sociais, impulsionaram o interesse pelo redirecionamento do modelo assistencial brasileiro. Além disso, o envolvimento de usuários e familiares nas discussões sobre os caminhos da assistência à saúde mental solidificou transformações na configuração da rede de atenção e no posicionamento dos profissionais de saúde e de diversos segmentos sociais acerca da luta pela cidadania da pessoa com transtorno mental.

Nesse cenário de transformações estruturais surge o paradigma psicossocial. Caracterizado pelo envolvimento do sujeito no seu próprio tratamento e pela desconstrução do arcabouço teórico da psiquiatria clássica, o paradigma psicossocial objetiva transformar a lógica organizacional dos serviços de saúde mental e criar uma rede de atenção substitutiva ao hospital e pautada na atenção territorial e inclusiva da pessoa com transtorno mental.

Sob a égide desse novo paradigma as ações desenvolvidas revestem-se de caráter social, ao sujeito estima-se o respeito de sua subjetividade, destaca-se a ênfase na interdisciplinaridade e na importância do convívio familiar. O atendimento hospitalar passa a ter a função restrita de impacto em situações de crise, orientado pelo princípio do retorno rápido ao convívio em sociedade (PITIÁ; FUREGATO, 2009).

Nesse novo contexto prático e discursivo de reestruturação da assistência psiquiátrica o conceito que se destaca por excelênciaé o de desinstitucionalização. Conforme Amarante (1996) é o lidar prático e teórico com a desinstitucionalização do usuário em sofrimento psíquico que determina a real distinção entre os movimentos de reforma desencadeados ao redor do mundo. Tal fato confere à tradição basagliana e a RPb caráter peculiar de desconstrução de modelos e ruptura com conjuntos de mecanismos institucionais e técnicos relacionados à psiquiatria/saúde mental.

É nesse cenário de priorização da desinstitucionalização em saúde mental que surgem, na década de 1980, algumas experiências pontuais e que serviram de parâmetro para a criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico como forma efetiva de

implementação da RPb. Para Tenório (2002) e Hirdes (2009) os marcos inaugurais e paradigmáticos de uma nova prática de cuidados estão associados: à intervenção na Casa de Saúde Anchieta, no município de Santos/SP; à criação do Centro de Atenção Psicossocial Dr. Luís da Rocha Cerqueira (atualmente conhecido como CAPS Itapeva) em São Paulo; e à criação do Centro Comunitário de Saúde Mental São Lourenço do Sul “Nossa Casa” no Rio Grande do Sul.

O primeiro CAPS do país, CAPS Itapeva em São Paulo-SP, recebia pacientes de qualquer parte do Estado e não tinha a responsabilidade de responder apenas às demandas de uma determinada região. Na época, surgiu como um grande diferencial no tratamento do transtorno mental, mostrando que era possível manter pacientes graves em tratamento intensivo e ampliado, fora da internação. As atividades exercidas no CAPS Itapeva estavam relacionadas ao atendimento multiprofissional diário dos usuários, realização de oficinas, atendimento às famílias, iniciativas de geração de renda, de lazer, elaboração de projeto terapêutico individual, espaços para convivência livre dos usuários, ações de agenciamento psicossocial, na época incomuns, assim como, recursos humanos sensíveis às necessidades dos usuários do serviço (TENÓRIO, 2007).

Essas primeiras experiências de cuidado extra-hospitalar em saúde mental fizeram com que esse tipo de serviço emergisse como uma estrutura intermediária entre o hospital e a comunidade, ao passo que contribuiu para o nascer de outra ordem institucional, pautada na não-violência, na não-humilhação, em mais acolhimento, mais dignidade e mais liberdade. Protagonizando assim, a suspensão de atos de violência, do confinamento em celas fortes, do uso de eletrochoque. Esse conjunto de ações continha um significado importante, pois refletia enfim, a possibilidade de se viver com dignidade (LUZIO; L‟ABBATE, 2006).

De tal modo, fortalecido pelas portarias no 224/1992 e 336/2002, abordadas no início deste tópico, o CAPS emerge como o principal instrumento de implementação da PNSM. A respeito deste serviço YASUI (2010, p. 115) esclarece que:

O CAPS deve ser entendido como uma estratégia de transformação da assistência que se concretiza na organização de uma ampla rede de cuidados em saúde mental. Nesse sentido não se limita ou se esgota na implantação de um serviço. O CAPS é meio, é caminho, não fim. É a possibilidade da tessitura, da trama, de um cuidado que não se faz em apenas um lugar, mas é tecido em uma ampla rede de alianças que inclui diferentes segmentos sociais, diversos serviços, distintos atores e cuidadores.

Ao fazer essas considerações, Yasui (2010) chama a atenção para que o processo de RPb não pode se restringir apenas à implantação de novos tipos de serviços, o que reduziria a complexidade deste processo tornando-o uma reforma administrativa e tecnocrática. Na realidade, o eixo central da nova proposta de atenção psicossocial é buscar as potencialidades do território, ou seja, procurar exercer uma prática voltada para a conformação de uma rede de serviços que articule os diferentes projetos do CAPS com os recursos disponíveis no sistema de saúde e na comunidade, de modo a reinserir, cada vez mais, o indivíduo em seu contexto social.

A mudança no modelo técnico-assistencial suscita ferramentas conceituais indissociáveis do cotidiano dos novos serviços: cuidado, território, responsabilização, acolhimento. Para Yasui (2010), tais conceitos-chave são os princípios que organizam a rede de atenção e orientam as estratégias de cuidado em saúde mental.

Em relação à responsabilização, Silva (2005) ressalta que nesse projeto de mudança da política governamental em saúde, da clínica e da representação social em torno da loucura, um dos desafios diz respeito à parcela de engajamento dos atores e instâncias sociais envolvidos no cuidado, principalmente daqueles ligados ao CAPS. Para o autor, o encargo pelos cuidados em saúde mental não é responsabilidade exclusiva nem das famílias, nem dos profissionais e nem das instâncias públicas de amparo, mas algo que exige distribuição, delegação e negociação de responsabilidade entre todos esses atores sociais.

Neste aspecto, é inegável a importância da equipe de saúde mental para a interlocução entre as ferramentas conceituais que orientam as práticas assistenciais e os atores sociais que vivenciam este processo. Acreditamos que os profissionais das equipes de trabalho desempenham papel fundamental na colaboração e participação ativa no intercâmbio entre serviço, usuário e comunidade, contribuindo, assim, para o agenciamento de afetos e a organização do fluxo de responsabilidades entre as diversas instâncias envolvidas nesse processo.

Porém, ao colocarmos em evidência a importância dos profissionais de saúde para o êxito dos aparatos técnico-assistenciais, uma situação-problema emerge. Se por um lado, profissionais e serviços buscam realizar as propostas ministeriais que regulamentam a inclusão social e o mínimo necessário de internação psiquiátrica, por outro, muitos profissionais e serviços substitutivos ainda estão encharcados pela lógica manicomial. Tal fato alimenta consideravelmente os índices, ainda preocupantes, de reinternações psiquiátricas e impedem a efetivação teórico-prática de premissas da RPb.

Nesta interface, percebemos um ponto de contato importante entre as dimensões técnico-assistencial e sociocultural da RPb. A seguir, nos debruçaremos sobre esta dimensão, compreendendo que a mesma permeia todas as demais dimensões anteriormente expostas e toca parte significativa das problemáticas que envolvem a reestruturação da psiquiatria no Brasil.

Finalmente, poderíamos levantar a hipótese de que o fortalecimento dos procedimentos técnicos em psiquiatria/saúde mental aliados ao crescimento da legitimidade do CAPS junto à sociedade em geral, incluindo-se aí os profissionais da saúde mental, pode favorecer a redução da porta giratória. Ao passo que o tratamento em nível territorial se estabelece enquanto principal forma de atenção ao sofrimento psíquico, diminui a busca pelo atendimento em nível hospitalar, reduzindo, assim, as (re)internações.