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2. ATUALIZANDO UM FENÔMENO EM TRANSFORMAÇÃO

2.2 Dimensões do graffiti

Assumindo-o quanto fenômeno “fragmentado e mestiço”, Ricardo Campos (2010) compreende o graffiti contemporâneo como um dialeto urbano que deriva de “uma fusão de técnicas e de elementos que evocam o universo publicitário, a cultura elevada e a arte oficial, bem como os diferentes nichos que compõem a cultura de massas, de tendência mais comercial ou alternativa”. Nesse sentido, trata-se de uma prática inserida na nossa cultura visual, configurada por diferentes linguagens e sujeita às mudanças globais da cultura, que pode ser

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SILVA, Armando. Atmósferas ciudadanas: grafiti, arte público, nichos estéticos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2013.

interpretada não só por diferentes disciplinas, mas no marco de uma diversidade não restrita às tendências hegemônicas de homogeneização da cultura (apud APPADURAI, 2004; FEATHERSTONE, 1997; HANNERZ, 1996, 1997).

Pela polissemia do termo, Campos propõe reconhecer as “dimensões” mais significativas dentro do graffiti para figurarmos uma compreensão mais atualizada dele. Em primeiro lugar, argumenta este autor, o muro surge como elemento essencial do graffiti na medida em que simboliza paralelamente a proibição e a vontade de quebrar as regras. Isto o coloca como artefato de separação física e ideológica, ou seja, como lugar de enfeite e, ao mesmo tempo, como símbolo de diferença: “Se o muro é lugar de ordem e harmonia, também é lugar de confronto e desobediência [...]. É, portanto, alvo de disputa, arena de confrontos simbólicos e recurso cobiçado” (apud FIGUEROA, 2006).

A importância do muro para entender o graffiti fica mais evidente ao constatarmos seu sentido estratégico tanto para as autoridades quanto para os grafiteiros. Pelo fato de ser acessível a todos, converte-se “num poderoso instrumento de comunicação, o que determina que seja cuidadosamente controlado pelas instâncias de poder” (CAMPOS, 2010). Assim, o muro aparece como “objeto de desejo” entre a institucionalidade que tem a função de estandardizar e controlar os espaços públicos, e os praticantes do graffiti que procuram visibilidade através da apropriação clandestina desses lugares. Se o muro não existisse como albergue do graffiti, ele perderia o componente de ilegitimidade que é, ao mesmo tempo, sua insígnia e a razão para ser continuamente perseguido e apagado.

A noção de clandestinidade ligada ao graffiti explica sua motivação contestatória e a necessidade de comunicar em espaços de visibilidade. Em vista da criminalização a que historicamente tem sido submetido por conta da sua natureza ilegal, sua execução comporta uma transgressão que o distingue de outras formas de comunicação. A transgressão é, de acordo com Ricardo Campos (2010), “uma atividade e uma expressão fora de lugar na cidade regulada e disciplinada”.

Como um ato perversor da ordem e desafiador do estabelecido, a transgressão pode ser visualizada e compreendida dentro do universo do graffiti segundo duas perspectivas não excludentes. Por uma parte, na visão de quem executa, e, por outro lado, pelo significado que essa ação tem no âmbito da cidade. Para este autor, a transgressão é “algo que distingue o graffiti de outras formas de comunicação no espaço público”. Certamente, ultrapassar os limites do permitido na cidade é um aspecto essencial para quem grafita e esse fato concede

tanto a esse sujeito quanto à própria prática a função de quebrar as regras, de ir à contramão da ordem existente através da exposição pública. Nesses dois processos simultâneos, isto é, infringir as regras para ganhar reconhecimento dentro do mundo do graffiti e subverter o uso esperado de um lugar para quebrantar a lei, tem especial destaque a questão do prazer, do desejo70 intrínseco dos sujeitos de agir fora de qualquer regulamentação71.

Infringir os limites (sejam leis, acordos tácitos com outros grafiteiros, contratos com a institucionalidade etc.,), responder satisfatoriamente a esses desejos implica, por sua vez, reconhecer o componente espacial que serve de suporte para o ato transgressor através de leituras prévias do território. Para o geógrafo Tim Cresswell (apud CAMPOS, 2010) “o conceito de transgressão sugere uma concepção de natureza essencialmente espacial, na medida em que invoca as ideias de terreno e fronteira que, de alguma forma, através de determinado ato, são traspassados”.

Enquanto um dos signos mais marcantes do graffiti, a transgressão sugere que a prática esteja atravessada por diferentes conflitos pelo território, mas também envolve uma ruptura com a dupla esperança institucional de assepsia e uso regulado dos espaços públicos72. Nesse sentido, a transgressão, percebida como primeiro movimento para obter a visibilidade desejada (essencial, na cultura

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De acordo com Armando Silva (2013) a maneira como o desejo opera na perspectiva individual e social em termos da prática do graffiti pode ser entendida como o encontro desses dois processos: “El grafiti, tal como se está concibiendo, aparece em la mitad del camino, em hibridación, entre los impulsos primarios de satisfacción de deseos inconscientes y la secundaria manifestación social de revuelta a lo establecido e institucional y, por tanto, su lectura debe comprenderse como un conjunto de enunciados marcados por ambos procesos, siendo susceptible de primar circunstancialmente uno y otro”.

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Nessa linha de analise, Ricardo Campos (apud GARI, 1995) lembra para nós o fato da desobediência à norma como característica presente em várias etapas da vida dos sujeitos. Segundo ele, “Joan Gari refere o prazer com que a criança desobedece à autoridade, na aprendizagem que faz dos limiares, do uso dos espaços sancionados, riscando e pintando o proibido e aprendendo, então, o gozo e as eventuais sequelas do seu gesto. [...] O graffiti mergulha, indiscutivelmente, neste espirito”.

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Esses elementos da transgressão, nas palavras de Célia Ramos (1994) “violam as expectativas da cultura que pré-determina, num texto como o da cidade, como e quando o seu espaço e tempo podem ser utilizados”.

graffiti), configura-se como uma tática de acesso aos lugares proibidos e, ao mesmo tempo, como um sinal de afronta:

A transgressão simboliza também provocação. Insurge-se contra a moral e os bons costumes, as regras e os poderes. Logo, muitas vezes tem por único intuito a afronta, que, presente no próprio acto, pode ser levada às últimas consequências,

com enunciados obscenos e iconografia

indecorosa, num claro desafio à ordem.73

A propósito da provocação, entendemos que um desses sinais de afronta é o que o graffiti mantém com os monumentos. Ao desobedecer às leis e usar o espaço público como palco, o graffiti mantém um conflito territorial e simbólico tácito com outras formas permanentes de narrar o social no espaço urbano. Para García Canclini (2012) esse fato é revelador das lutas semânticas e das forças que atuam na cidade, mas, fundamentalmente, é funcional à atualização dos monumentos: “sin vitrinas ni guardianes que los protejan, los monumentos urbanos están felizmente expuestos a que um graffiti o uma manifestación popular los inserte en la vida contemporânea [...] los monumentos se actualizan por medio de las ‘irreverencias’ de los ciudadanos”.

Embora nem todas as manifestações hoje tidas como graffiti façam apelo ao recurso transgressor, a transgressão é uma característica constitutiva desta linguagem visual na medida em que coloca em jogo dois sentidos comunicacionais interligados, ou seja, a mensagem (o conteúdo) e a infração em si (a ação) (CAMPOS, 2010). Sem a desobediência que a transgressão implica evidentemente a mensagem teria valor diferente e responderia a outro tipo de intervenção regulada por poderes públicos e privados.

Precisamente, a existência de controle e vigilância dos muros e dos outros espaços da cidade usados como lugares de visibilidade para o graffiti faz com que o anonimato seja outra característica predominante. O anonimato, explica-nos Ricardo Campos, está atrelado a processos de uma identificação entendida como “documentação individual e capacidade de localização do individuo” (apud MARX, 1999). Em uma sociedade em que esse tipo de identificação remete à

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CAMPOS, Ricardo. Porque pintamos a cidade? Uma abordagem etnográfica do graffiti urbano. Lisboa: Fim de Século, 2010.

noção de controle e ao poder de criminalização, o graffiti cria e recria mecanismos de camuflagem para fugir da possibilidade de reconhecimento diante do fato de ser uma prática tida como ilegal e/ou imoral. Assim,

O graffiti contemporâneo está indiscutivelmente associado à invenção de um ato de comunicação anônimo, que deriva da índole ilegal que esta prática comporta. A criminalização e a persecução estimulam a inventividade, canalizada para a

criação de estratégias de camuflagem.74

Nesse sentido, o anonimato revela um paradoxo entre a necessidade de reconhecimento que encarna a prática do graffiti e a urgência de não ser identificado pelas autoridades. Porém, no momento que se observa que a assinatura age como revelação de um personagem (com a sua própria identificação e personalidade), adverte-se que ela é usada para encarar o mundo exterior construindo um pseudônimo ou alter ego (CAMPOS, 2010). A partir dessa operação, diz-nos o autor, se “suspende a identidade oficial” que fica mais difícil de ser rastreada pelos organismos de controle e, por outro lado, começa-se a obter o reconhecimento requerido para a “gestão de relações no interior da comunidade e fora dela”.

Esse interessante movimento nos leva a pensar, enfim, no público alvo das intervenções de graffiti. Essencial por complementar o circuito de comunicação que é estabelecido, o espectador certamente não é um integrante passivo nesta relação, mas também muitas vezes não conta com os elementos necessários para interpretar o que pode ser percebido por ele somente como um rabisco ou um ato de vandalismo. Destinatária por acaso (público indistinto) ou com uma opinião formada sobre o tema (público especializado), a plateia interage com o autor em dois sentidos principais: através do ato — que supõe desobediência e confronto —, e por meio de um texto construído por diferentes signos (verbais e pictóricos) e criados com o objetivo de serem visualizados (CAMPOS, 2010).

Eis a complexidade de uma única definição do graffiti: ainda que características comuns possam ser identificadas e estabelecidas, a mudança das condições operativas da atualidade, isto e, a maior aceitação que recebe por parte da opinião e das instituições públicas,

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colocam o graffiti fora da lógica que por exclusividade teve até então, ou seja, a lógica da contestação.

2.3 Efemeridade e proibição: características constitutivas em debate