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Sob uma perspectiva diferente da análise de Barroso (2003, 2005), ainda que tenha alguns pontos convergentes, Lessard (2006) aponta três dimensões da regulação produtoras de regras e modos de enquadramento da ação que ressaltam a dificuldade em separar as relações, as tensões, compromissos e hibridações entre elas: a dimensão burocrática, a da profissão e a do quase-mercado. É importante ressaltarmos a imbricação existente entre a análise dos diferentes autores, dentre eles: Dupriez & Maroy (2000), Barroso (2005), Lessard (2006) e outros.

a) Dimensão burocrática

Segundo Lessard (2006), na dimensão burocrática é enfatizada a regra hierárquica, a necessidade de controlar os processos, a conformidade com as prescrições do trabalho e a sanção ao desvio. Sua operacionalização baseia-se em indicadores quantitativos e de um

48 rigoroso acompanhamento do desempenho dos professores, alunos, escolas e sistemas nacionais de educação. Esta dimensão encontra eco nas análises de Barroso (2005) e de Dupriez & Maroy (2000) quando discutem a produção e aplicação de regras por instâncias superiores, nas quais se subentendem as dimensões de controle, de influência, de regras e constrangimentos.

b) Dimensão profissional

Nesta dimensão, Lessard (2006) propõe a regra da competência, subentendendo-se a formação avançada e contínua do saber explicitado e partilhado entre especialistas, da autonomia e da responsabilidade como base da confiança do público. Destacam-se os valores e normas profissionais interiorizados, os saberes que fundamentam a competência e a ética pertinentes à profissão. Em outras palavras, Lessard (2006) discute a mesma temática desenvolvida por Ball (2005) sobre a performatividade.

O controle sobre a atuação e o desempenho dos professores e das escolas pode ser interpretado à luz da discussão de Ball (op.cit.). Segundo o autor, a performatividade “é uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança.” (2005, p. 05). Os parâmetros de produtividade ou de resultado, bem como a qualidade, promoção ou inspeção são estabelecidos a partir dos desempenhos dos sujeitos individuais ou de organizações. São construídos e publicados informações, indicadores, materiais promocionais e outros objetivando estimular, julgar e comparar profissionais a partir de seus resultados, demonstrando, assim, a tendência para nomear, diferenciar e classificar as instituições. Ball (op. cit.) reporta-se a Lyotard (1984) para discutir o que este chama de “os terrores (soft e hard) de desempenho e eficiência”, significando a necessidade e premência do ser operacional, comensurável como condição para não desaparecer. Para Ball, performatividade compreende a exteriorização do conhecimento e a sua transformação em mercadoria. Esse autor associa, ainda, performatividade à autonomia “econômica” que se espera das instituições e em alguns casos, indivíduos, como os diretores de escolas. A subjetividade autônoma configura-se como o principal recurso econômico do setor público:

A performatividade, ou o que Lyotard também chama de "controle do contexto", está intimamente interligada com possibilidades atraentes de um tipo específico de "autonomia" econômica (em vez de moral) para as instituições e, em alguns casos, para indivíduos, como os diretores de

49 escolas. A subjetividade "autônoma" desses indivíduos produtivos tornou-se o principal recurso econômico do setor público reformado e empresarial. (BALL, 2005, p.03)

Esse autor discute ainda o conceito de gerencialismo que, segundo ele, tem tido centralidade nas reformas políticas e culturais do setor público nos países do norte, nas quais são introduzidas novas orientações e formas de poder. Nas escolas, o gerencialismo visa destruir os sistemas ético-profissionais, substituindo-os por sistemas empresariais competitivos, e incutir nos trabalhadores o sentimento de responsabilidade pelo bem-estar da escola. Ball afirma que as novas pedagogias invisíveis de gerenciamento traduzidas nas avaliações, análises e formas de pagamentos relacionados com o desempenho ampliam o que pode ser controlado na esfera administrativa. Por meio do emocionalismo instrumental e do ressurgimento da liderança carismática pré-moderna, o local de trabalho é reencantado e a performatividade é incutida na alma do trabalhador.

Podemos abstrair como exemplo da autonomia controlada a obrigação de se privilegiar os conteúdos que são exigidos nas avaliações, tanto em nível federal, quanto estadual. O “conhecimento” que deve ser legitimado é definido a priori. Reconhecemos a importância e a necessidade de se estabelecer padrões a serem avaliados, a crítica, no entanto, reside na ausência de debates e na indiferença às contribuições que os profissionais da educação poderiam dar na determinação de tais decisões.

A esse respeito, Demailly (2001) afirma que a avaliação das escolas tem a ambição de agir sobre as atitudes espontâneas dos atores, de mudar seu olhar a respeito de sua profissão, de fazer evoluir sua prática dentro do conceito de qualidade e de alterar as definições do bom desenvolvimento no interior do grupo profissional ou da organização. Desta forma, a avaliação pretende ter um impacto sobre as condutas profissionais e, no caso da avaliação de sistema, pode se tratar de um efeito indireto. As avaliações do sistema são direcionadas aos alunos mas seus resultados incidem sobre os professores.

c) Dimensão mercantil

A análise da “dimensão mercantil” de Lessard (2006) nos remete à análise de diversos autores como Afonso (1998, 2003), Sobrinho (2002), Barroso (2005, 2006) e Sousa (2008) sobre a noção de quase mercados na educação. Nessa dimensão é destacada a importância da resposta à demanda dos clientes ou consumidores, considerando a flexibilidade, a adaptação às realidades locais, os benefícios da iniciativa privada, da concorrência e a eficiência.

50 Portanto, incentiva-se a concorrência entre os estabelecimentos de ensino, considera-se a importância de satisfazer os pais e os usuários clientes e o valor da livre escolha dos pais. Percebe-se o esforço empreendido pelos atores escolares para atender às demandas fomentadas pela lógica de mercado, conscientes de que sua permanência e sobrevivência nesse mercado dependem da sanção do mesmo. O autor propõe que:

Haveria, portanto, três formas de regulação em ação: uma regulação burocrática estatal, preocupada com resultados e eficiência, uma regulação profissional, interiorizada pelos atores internos, e uma regulação quase- mercantil, que dá mais poder aos pais, ao setor privado e à concorrência entre os estabelecimentos de ensino. (LESSARD, 2006, p.149)

Na perspectiva de Lessard, a evolução da regulação no mundo do trabalho não escolar está também presente na educação. Para tanto, analisando a evolução das relações entre os modos de regulação do trabalho e a autonomia profissional, baseado em Reynaud (1988), Lessard (op. cit.) demonstra que autonomia e controle não são mais antagônicos. Os novos contextos de produção convivem ao mesmo tempo com mais autonomia e mais controle. Ainda segundo esse autor, estaríamos agora na “era da autonomia prescrita e da iniciativa obrigada ou forçada”. Na crítica da “neo-regulação” proposta por Courpasson (1997 apud Lessard, 2006) é cunhada a ideia de “dominação suave” repousada na noção de pressão de mercado, onde novos modos de convergência e de coerência das práticas são impostos. A padronização dos gestos e operações é substituída pelo controle e coação subjetivos da lealdade e compromisso dos trabalhadores e uma tensão maior entre concorrência e cooperação. No âmbito da educação:

A reorganização gerencial da educação, a descentralização e a desconcentração, a abertura à concorrência, a prestação de contas local, a noção de projeto educativo do estabelecimento de ensino, o apelo ao trabalho em equipe e à interligação das estruturas e práticas; tudo isso, embora parcialmente baseado em correntes pedagógicas surgidas antes dos fenômenos econômicos atuais de globalização dos mercados, participa, entretanto, de uma evolução que ultrapassa a instituição escolar. (LESSARD, 2006, p.14)

Essas ações são evidências de um novo modo de regulação das políticas públicas que ganharam novos contornos com as reformas empreendidas nos sistemas de ensino. Na discussão anterior sobre a reforma que se processou no Estado e as repercussões no âmbito educativo, podemos perceber a manifestação destas concepções de regulação em diversos momentos e ações. A reforma em si mesma evidenciou os novos mecanismos de regulação, foi a teoria posta em prática em diversos e distintos âmbitos como, por exemplo, a influência

51 dos organismos internacionais impulsionando e apontando diretrizes para a reforma, a descentralização em oposição à burocratização prevalecente, a incorporação da lógica mercantil, a apropriação e adequação pelos diferentes atores dos ideários e proposições recomendados.