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A disputa entre as famílias 3GPP e 3GPP2 se desdobra no conflito entre diferentes versões de interface aérea baseadas em tecnologia CDMA; se desdobra na disputa entre Qualcomm e Ericsson em torno do direito sobre patentes; e se desdobra também num potencial conflito diplomático e de mercado entre Europa e Estados Unidos, mais diretamente corporificados pela ETSI e pela TIA. Entender a articulação entre as várias dimensões de conflito passa por reconstituir (ao menos em parte) a trajetória da tecnologia CDMA e o contexto da política de padronização nos EUA, em suas diferenças relativas à Europa.

O CDMAone nasceu nos EUA já perto da transição 1G-2G, quando foi aprovado como padrão de telefonia móvel digital pela TIA sob a sigla IS-95. Naquela altura o padrão dominante de telefonia celular era o sistema 1G analógico chamado de AMPS (Advanced Mobile Phone System), que foi

desenvolvido em conjunto pela AT&T, Motorola, e a FCC58. Depois da quebra

do monopólio da AT&T, em 1983, surgiram operadoras regionais de pequeno e médio porte e, junto delas, vieram sistemas concorrentes ao AMPS. Em parte, isso foi possível porque os EUA desenvolveu uma politica de padronização que preza pela coexistência e competição entre padrões distintos (elaborados pela indústria e suas associações), deixando ao mercado a escolha sobre aquele

57 (LINK 14 – “Material Online”).

58 A FCC ficou encarregada de decidir sobre os padrões básicos da tecnologia AMPS a partir

das contribuições que seriam enviadas pelas empresas. A maioria das propostas aceitas veio da AT&T e da Motorola, empresas que já vinham desenvolvendo há muito pesquisa no campo da telefonia móvel. Cf. Funk, 2002:56.

que vai se tornar hegemônico ou majoritário59. Se por um lado essa política possibilitou que uma empresa norte-americana fosse a responsável pela inovação que resultaria na tecnologia 3G (a Qualcomm), por outro, abriu espaço para que as instituições Europeias (como a ETSI) se tornassem absolutamente centrais na definição de padrões técnicos em termos mundiais.

Mesmo que o padrão AMPS (1G) tenha conseguido amplo sucesso fora dos EUA, tendo sido adotado em mais de uma centena de países entre os quais

estão, por exemplo, o Reino Unido e o Brasil60; a estratégia dos EUA de não

definir um padrão nacional único para a telefonia celular digital fez com que grande parte dos mercados emergentes de telefonia celular na Ásia, na América do Sul e na África migrassem para o padrão 2G Europeu (GSM). O acordo sobre a definição de um padrão único Europeu garantiu que essa opção tecnológica atraísse interesse e investimento privado. Noutras palavras, o tamanho do mercado Europeu funcionou como garantia de que o GSM teria

continuidade enquanto família tecnológica61. Foi então, na passagem entre 1G

e 2G, entre analógico e digital, que o modelo de desenvolvimento de padrões adotado pela Europa fez com que o padrão norte-americano AMPS deixasse de ser hegemônico mundialmente. Isso não quer dizer, necessariamente, que as transnacionais estadunidenses tenham perdido poder no mercado internacional. A Motorola, por exemplo, era detentora de boa parte dos direitos

de propriedade intelectual da tecnologia GSM (2G), adotada na Europa62.

59 Na verdade, o AMPS foi escolhido pela FCC como o único padrão analógico da telefonia

celular nos EUA. Mas essa política é deixada de lado ao cabo da disputa entre AT&T e FCC que resultou na fragmentação da primeira. Diferentes padrões digitais passam a coexistir no mercado dos EUA a partir daí. Cf. Sirel e Waverman, 2000; Funk 2002, 2010. Sobre o sistema de padronização dos EUA, ver: Ernst, 2013.

60 O Reino Unido, o Brasil e outros lugares do mundo receberam versões modificadas e

adaptadas do sistema AMPS. Cf. Funk, 2002:45.

61 Quando uma tecnologia atrai pouco interesse de mercado, a tendência é a de que ela fique

restrita a pequenos “nichos” ou deixe de existir por falta de investimentos em pesquisa e desenvolvimento; não há o benefício daquilo que o jargão econômico define como economias

de escala. No caso das redes móveis, especificamente, as operadoras de serviço preferem

adotar tecnologias que lhes garanta encontrar empresas interessadas em desenvolver, construir, instalar e fazer a manutenção da infraestrutura de rede.

62 Além da Motorola (EUA), as europeias Nokia, Ericsson, Siemens e Alcatel também

possuíam, cada uma delas, um grupo de patentes essenciais. Naquele momento já estava certo que o padrão GSM não poderia ser implementado sem passar por um grupo de patentes essenciais. As operadoras de serviço, preocupadas com os royalties que teriam que pagar, exerceram pressão para que os termos de licenciamento dessas patentes fossem “justos e razoáveis” (Funk, 2002:67).

Um passo à frente, já na passagem entre 2G e 3G, novamente os EUA não estabelecem um padrão único nacional. Nessa altura, os padrões de telefonia celular já haviam se tornado uma preocupação da ITU, órgão da ONU que se dedica ao campo das telecomunicações e tem como função, primordialmente, regular internacionalmente a alocação das frequências de onda do espectro eletromagnético. A ITU, então, encampa uma iniciativa (o projeto IMT-2000) para definir padrões 3G de telefonia móvel; mas, a iniciativa cumpre apenas indicar os critérios básicos de desempenho que uma rede precisa colocar em prática para ser considerada 3G, sem definir um padrão único. As especificações acordadas na ITU foram amplas, gerais, de tal modo que hoje

acomodam ao menos seis diferentes modalidades de interface aérea63.

Essa definição abrangente feita pela ITU refletia a falta de alinhamento entre o bloco Europeu e os EUA que, por sua vez, pode ser condensado na batalha entre Ericsson (WCDMA) e Qualcomm (CDMA-2000). A resolução desse

conflito geopolítico e de mercado mobilizou toda a diplomacia necessária64, na

medida em que se tratava de definir acordos comerciais que poderiam favorecer enormemente um lado ou outro. Do lado dos EUA, operadoras de serviço partidárias da Qualcomm estavam preocupadas não só com a concorrência da tecnologia WCDMA, como também da entrada de operadoras Europeias (como a T-Mobile, da Alemanha) no mercado norte americano. A operadora Sprint, por exemplo, já havia feito grandes investimentos na tecnologia CDMA da Qualcomm e sofreria fortes prejuízos caso a versão

Ericsson/WCDMA fosse escolhida como padrão único 3G pela ITU65. Ficou

então decidido, na ITU, que diferentes sistemas 3G poderiam coexistir desde que atingissem alguns princípios mínimos de compatibilidade e desempenho. Entre Ericsson e Qualcomm ficou decidido que a empresa finlandesa compraria

63 Ver: ITU-D Study Group 2. "Guidelines on the smooth transition of existing mobile networks to

IMT-2000 for developing countries (GST); Report on Question 18/2" (12 June 2009). (LINK 15 – “Material Online”).

64 A batalha diplomática inclui uma carta da administração Clinton, em 1998, endereçada ao

então presidente da Comissão Europeia, “sugerindo uma possível guerra comercial caso a Europa congelasse a tecnologia 3G americana” (Sirel e Waverman, 2000:69). O ponto de vista generalizado nos EUA era o de que o modelo adotado pela Europa para definição de seus padrões técnicos não dava chances competitivas aos produtores americanos.

uma parte da empresa americana66 e cederia seus direitos de propriedade intelectual sobre o sistema GSM em troca dos direitos sobre o CDMA. Outras tecnologias 3G de interface aérea foram desenvolvidas dentro do 3GPP (e aprovadas pela ITU) sempre baseadas no CDMA. No entanto, as apropriações do sistema CDMA não se davam de forma completa, ou tal como havia sido desenvolvida pela Qualcomm. Contornar, mesmo que parcialmente, o sistema

da Qualcomm significava também contornar suas patentes67. Nesse contexto,

as patentes são tratadas como armas que podem impedir o adversário de entrar no campo de batalha, no mercado, a não ser quando as partes possuem patentes de interesse mútuo e, então, são estabelecidos acordos de licenciamento cruzado, tal como aconteceu com Ericsson e Qualcomm.

Com vistas à consolidação de um mercado global e diante da convergência em direção ao CDMA, a concretização das redes móveis 3G teve de passar necessariamente pela escolha de suas regras básicas de funcionamento, pela definição de padrões técnicos. Apesar da tentativa da ITU de tomar pra si essa prerrogativa, não foi possível construir consenso em torno de um padrão,

senão em torno de critérios básicos de desempenho68. Naquele momento não

houve acordo, o bloco formado na Europa é mais forte institucionalmente, enquanto o bloco dos EUA tem a tecnologia mais inovadora. Da disputa resulta a constituição de duas famílias tecnológicas: o 3GPP e 3GPP2. Elas se distinguem em relação a três critérios básicos: tecnologia de interface aérea, região/país de origem, e representação de mercado.

A família 3GPP dá continuidade à hegemonia criada pelo padrão GSM, amplia o modelo de tomada de decisão que já havia sido utilizado na segunda geração, e coloca a Europa como palco central das decisões sobre os padrões mundiais da comunicação móvel. O backbone de sua rede basicamente mantém seus princípios de funcionamento, mas há uma inovação importante

66 Alguns analistas de mercado indicam que o acordo favoreceu a Qualcomm, porque a divisão

que foi vendida à Ericsson (dedicada à produção de equipamentos da infraestrutura de rede CDMA) era vista pela direção da empresa como um problema, na medida em que a estratégia de continuidade dos negócios da empresa estava focada na produção de chips e na pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e, claro, na obtenção de lucros por meio de patentes. (LINK 17 – “Material Online”) e (LINK 18 – “Material Online”).

67 Klemens, 2010 cap. 8. 68(LINK 19 – “Material Online”).

na interface aérea já que são adotadas versões modificadas da tecnologia CDMA, base que é parcialmente propriedade da família concorrente.

O 3GPP2, por sua vez, adota a forma de organização de sua família-irmã, e representa sobretudo os interesses da empresa Qualcomm (detentora dos direitos de propriedade intelectual da tecnologia CDMA), e das operadoras de serviço que já haviam adotado o CDMAone. Há, portanto um processo de cruzamento entre as famílias 3GPP e 3GPP2. Ao mesmo tempo em que sustentam diferenças relativas à representação de mercado, ao posicionamento geopolítico, e à própria linhagem tecnológica (GSM/TDMA e CDMAone, respectivamente); elas convergem no que diz respeito aos princípios básicos de funcionamento da interface aérea (baseados na tecnologia CDMA) e ao modelo formal de governança e tomada de decisão. Ao que parece, a infraestrutura da banda larga móvel se concretiza a partir de um processo de cruzamento e reticulação entre famílias tecnológicas que compreendem entidades como: tecnologias de interface aérea, organizações de padronização, empresas privadas, blocos e/ou Estados nacionais, etc. As famílias disputam o sentido tecnopolítico dado à evolução da rede, e corporificam coalisões por afinidade que se rearranjam na passagem de uma geração à outra. Diferentes famílias não caminham independentemente uma em relação à outra; na verdade, a trajetória de uma é traçada em relação à trajetória da outra. As famílias tecnológicas apresentam simultaneamente pontos de convergência e de incompatibilidade, continuidades e rupturas, como redes que atualizam seus limites quando são cortadas por relações de propriedade e pertencimento (Strathern, 2014, cap. 10).

Os problemas tecnopolíticos que dão continuidade ao processo de concretização das redes móveis são resolvidos na tensão causada por incompatibilidades que são internas e externas às famílias tecnológicas. Essa também parece ser a dinâmica que se apresenta na passagem entre 3G e 4G. Mas as famílias tecnológicas que se cruzam dessa vez não estão ambas incluídas na linhagem da telefonia celular. O imperativo de convergência tecnológica alimentado pela linguagem digital atinge um patamar que escapa ao seio da telefonia. Sob olhar panorâmico trata-se do cruzamento entre

telefonia e computação; de modo mais específico trata-se da convergência entre telefonia celular digital e redes digitais de computadores. A terminologia utilizada pela engenharia de redes é reveladora nesse sentido. Enquanto as redes de telefonia celular digital são chamadas de “redes móveis” (mobile networks), as redes de computadores que oferecem acesso por interface de rádio são chamadas de redes “sem fios” (wireless). Além de pertencerem a

famílias69 distintas, podemos dizer que a distinção entre redes sem fios e redes

móveis é feita a partir de dois critérios base: (1) a dimensão da área territorial de acesso à rede, e (2) diferenças no design e função dos terminais de acesso. Mas, com a expansão dos pontos de acesso às redes sem fios e sua possível

integração (proporcionando uma conexão seamless70), aliada à convergência

entre telefones celulares e computadores, o cruzamento entre essas duas redes foi sendo delineado concretizando o que viemos chamando até aqui de banda larga móvel.