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Famílias tecnológicas: hibridização, convergência e padronização

alertamos também para a existência de outras famílias tecnológicas. Família é uma categoria usada de maneira abrangente por boa parte dos tutoriais técnicos e da bibliografia especializada em engenharia de telecomunicações. Ela comumente é usada para distinguir padrões tecnológicos concorrentes e, além disso, subentende que as famílias se desenvolvem por meio da sucessão de gerações. Em alguns contextos o termo se pretende enquanto linhagem de evolução técnica, ou seja, pretende indicar que uma determinada técnica de transmissão de dados por rádio, por exemplo, dá origem à outra, melhor e aperfeiçoada. Noutros contextos, o nome da família faz referência direta à organização que desenvolve os padrões tecnológicos, portanto, a coesão familiar estaria menos ligada aos princípios de funcionamento de uma determinada tecnologia (sua linhagem, por assim dizer) do que ao grupo que produz o acordo sobre esses princípios de funcionamento. Na maioria das vezes, no entanto, os dois sentidos se confundem (Ver: Ergen, 2009; Hulten, 2006; Saini, 2009; Bhandare, 2008).

Não pretendo afirmar que termo família é hegemônico, mas sua aparição foi recorrente durante todo o período de pesquisa e abre possibilidades interessantes de investigação. Aqui, ele será problematizado com o objetivo de descrever a dinâmica de evolução da telefonia celular em direção à banda larga móvel, sob uma perspectiva distinta e complementar à que adotamos na seção anterior. A narrativa não será construída de modo unidirecional e linear, de outra maneira, nossa atenção se volta para as controvérsias e enfrentamentos tecnopolíticos. Para isso é preciso que a descrição seja feita

enfatizando a resolução de problemas e reconstituindo não apenas o trajeto daquele que se tornou o padrão hegemônico, a família GSM, mas introduzindo as opções que lhe concorrem e informam.

Em princípio, cada uma das famílias advém de uma região específica, representa os interesses de mercado de um grupo determinado de empresas e organizações, e possui um conjunto de técnicas de interface aérea que lhe é particular. A localidade geográfica de onde provém uma família específica é importante porque revela sua conexão com um determinado mercado e as entidades que o compõe. Cada família, portanto, representa uma opção tecnopolítica diferente na geopolítica das tecnologias de informação e comunicação. A ascensão de uma família e a derrocada de outra corresponde ao sucesso ou ao fracasso de um grupo de empresas, bem como ao estabelecimento e consolidação de fóruns privilegiados para tomadas de decisão no mercado global. As organizações que desenvolvem padrões técnicos de interoperabilidade, por exemplo, competem para ocupar esse espaço defendendo os interesses de seus membros, sejam eles empresas privadas ou Estados nacionais. Nesse sentido, a tecnologia de interface aérea ganha importância vital.

É na tecnologia de interface aérea que se define o conjunto de técnicas de acesso do terminal móvel à rede. Noutras palavras, ela trata de definir os aspectos básicos da linguagem que estabelece o contato, a conexão, o link, entre o aparelho móvel e a estação base. Portanto, para que um determinado telefone celular funcione é preciso que se estabeleçam técnicas elementares de acesso à rede num acordo comum entre operadoras de serviço, empresas que fazem a manufatura e a instalação da infraestrutura de rede, e as próprias fabricantes de aparelhos. É preciso definir um padrão de interface aérea para garantir a interoperabilidade entre aparelhos de diferentes fabricantes e, claro, esse processo pode torna-se altamente conflitivo, sobretudo quando inclui disputas em torno de direitos de propriedade intelectual.

As prerrogativas de mercado que determinada família adquire quando se cristaliza como o padrão hegemônico em âmbito local ou global, garantem que inovações e investimentos sejam feitos dentro de seu escopo, valorizando

economicamente a família bem como as organizações que possuem as patentes essenciais42 de sua tecnologia. Não se trata de uma dinâmica simples, a complexidade é tanto maior quanto mais avançada a tecnologia. Para se ter uma ideia, enquanto o padrão GSM (2G) possui um grupo de 140 patentes essenciais, o padrão de interface aérea WCDMA (UMTS/3G da mesma família GSM) é protegido por mais de 6000 patentes individuais que

pertencem a cerca de 50 diferentes empresas e consórcios (Karachalios e

Ernst, 2010). Portanto, o aprimoramento técnico dessas redes bem como a superação de uma geração tecnológica por outra, passa por um circuito de inovação que está orientado a produzir valor por meio da obtenção patentes. Aqueles que possuem as patentes essenciais de uma tecnologia que se cristaliza como padrão, atingem uma posição privilegiada nesse campo de disputa, pois inovações menores são produzidas sobre a base cujos direitos de

propriedade intelectual eles são os detentores43.

Há ainda outro fator, além da necessidade de interoperabilidade técnica, que confere importância decisiva às tecnologias de interface aérea: elas são

responsáveis pela última milha44 no processo de transmissão de dados numa

rede móvel. Ou seja, dentro do trajeto percorrido pela informação desde sua emissão até sua recepção, a interface aérea é o primeiro e/ou último meio

(media) que o dado irá atravessar. O backbone45 das redes móveis é composto

por centrais interligadas por cabos de fibra ótica que suportam grande

42 As patentes essenciais são comumente definidas como aquelas que têm caráter mandatório

dentro de um determinado padrão tecnológico, ou seja, para implantar o padrão é preciso passar necessariamente por um conjunto de tecnologias proprietárias, o que geralmente implica no pagamento de licenças e royalties para as empresas detentoras dos direitos de propriedade intelectual. O assunto será tratado mais detalhadamente no capítulo três da tese.

43 Hoje a propriedade intelectual tornou-se tema absolutamente central para qualquer

pesquisador dedicado à tecnologia. Nesse trabalho, tornou-se um tema incontornável. Sem aprofundar o debate, por ora, vale apenas dizer que concordamos com Strathern (2014), para quem: “Deveríamos ter cautela diante dos enormes interesses financeiros que dão poder político aos detentores de patentes” (2014:327)

44 Última milha é o termo genérico (porque não corresponde à distância assinalada) usado na

engenharia de rede para designar o meio físico que liga o núcleo da rede ao usuário final. Trata-se da parte mais dispendiosa na instalação de rede, justamente porque exige a ramificação da rede, seja por cabo (DSL) ou por interface aérea.

45 Ao pé da letra, backbone traduz-se por “espinha dorsal”. Na linguagem da engenharia de

telecomunicações e de redes informacionais o termo se refere às conexões centrais de uma rede de comunicação. Trata-se de um conceito relacional, e sua definição depende da rede que serve de referência. Localmente podemos dizer que cada operadora de serviço possui seu próprio backbone. Mas, mudando o referencial para o conjunto das redes móveis no Brasil, pode-se dizer que o backbone é o sistema de recursos (como cabos submarinos de fibra ótica) que é compartilhado por diversas operadoras. (LINK 10 – “Material Online”).

quantidade de fluxo de dados e raramente impõe limites de banda à rede. De tal modo, é na última milha das redes móveis, na interface aérea, que se impõem os gargalos que limitam a quantidade de fluxo de dados (banda) em direção ao usuário final.

Não sem razão, portanto, a seção anterior mostrou que a evolução da rede implica (também, mas não só) no aprimoramento das tecnologias de interface aérea. A passagem de uma geração à outra corresponde em grande medida a mudanças nas técnicas de acesso e transmissão da interface de rádio. A substituição de uma tecnologia por outra na passagem entre gerações, tem por objetivo aumentar a capacidade e a eficiência com que os dados são transmitidos pelas ondas eletromagnéticas. Ao mesmo tempo em que novas bandas de frequência de onda foram sendo destinadas pelo poder público à telefonia celular e à banda larga móvel, vimos que as operadoras de serviço e os desenvolvedores de novas tecnologias concentraram seus esforços em aumentar a eficiência espectral, termo da engenharia que designa a capacidade de transmissão de dados numa fatia limitada do espectro.

Retomando, o desenvolvimento e a escolha de padrões de interface aérea incluem simultaneamente a busca por eficiência técnica, bem como por acordos de natureza geopolítica e de mercado. A cada nova geração tecnológica os acordos se refazem; alguns padrões entram em desuso, outros se ratificam, e ainda surgem novos competidores. Formulando de outro modo: algumas famílias tecnológicas se extinguem, outras se unificam por casamento,

e ao mesmo tempo surgem novas famílias para disputar espaço no mercado46.

Como era de se esperar, no entanto, as “regras de parentesco” e as linhas de descendência das redes móveis estão sempre em disputa. Até aqui, apenas podemos afirmar que se organizam em torno dos três critérios de distinção que foram mencionados acima, quais sejam: tecnologia de interface aérea, localização geopolítica e representação de mercado.

46 Como veremos, na passagem 3G-4G as famílias CDMA-2000 e GSM se unificam em torno

do padrão LTE, que passa a ser adotado como “evolução natural” de ambas. Paralelamente surge a tecnologia WiMAX, que torna-se o padrão 4G concorrente ao LTE. (LINK 11 – “Material Online”).

Figura 3 - Fonte: ERGEN, 2009:05

O gráfico abaixo foi retirado do livro de Mustafa ERGEN (2009:05) intitulado “Mobile Broadband: including WiMAX and LTE” [“Banda Larga Móvel: incluindo WiMAX e LTE”]. O livro, que discute os aspectos de funcionamento das tecnologias de quarta geração (4G) e se endereça ao público das engenharias, também faz sua análise de parentesco ao descrever o processo de evolução das tecnologias de comunicação celular. Cada uma das linhas representa uma relação de descendência entre diferentes tecnologias de interface aérea; elas se distribuem no tempo, eixo horizontal, indicando o momento em que cada uma das tecnologias foi inicialmente adotada no mercado. Já no eixo vertical, as curvas se distribuem pela largura de banda e técnica de funcionamento.

Inicialmente quero chamar atenção para as curvas preta e vermelha. A primeira representa a evolução das técnicas de interface aérea da família GSM: como

Figura 4 - Fonte: ERGEN, 2009:15.

vemos, ela evolui para GPRS e EDGE, ponto em que sua evolução cessa47.

Isso acontece, porque na passagem 2G-3G a família GSM sofre mudanças radicais e incorpora um princípio de funcionamento em sua interface aérea que advém de uma tecnologia concorrente, justamente aquela que é representada pela linha vermelha. A trajetória dessa última, como vemos, sofre uma divisão que gera a tecnologia HSDPA e a 1xEV-DV; ambas possuem um princípio de funcionamento correlato já que estão baseadas na técnica de múltiplo acesso por divisão de código (CDMA), mas pertencem a famílias tecnológicas distintas, como veremos na figura abaixo que foi retirada do mesmo livro.

Aqui, a evolução das redes sem fio em direção à banda larga móvel é trilhada por três diferentes famílias tecnológicas: IEEE, 3GPP e 3GPP2. Comparando as três de um ponto de vista largo, podemos dizer que as duas últimas são mais próximas entre si pela origem compartilhada nas redes de telefonia celular; já a primeira família, diferentemente, tem origem nas redes digitais de computadores. No que diz respeito ao modo de organização e escopo, as duas últimas famílias também apresentam maior proximidade uma vez que ambas são consórcios formados por empresas privadas e organizações nacionais de

desenvolvimento de padrões técnicos.48 O IEEE, por sua vez, é uma

associação de classe de engenheiros (eletricistas e eletrônicos) que, entre

47 Como vimos na seção anterior, o GPRS e o EDGE são atualizações do sistema GSM, por

isso aderem a grande parte de seu modo de funcionamento. Os três padrões adotam a tecnologia de acesso TDMA, operando com mesma largura de banda (de rádio) e sistema de formação de canais.

outras finalidades, possui uma divisão que se dedica ao desenvolvimento de padrões (IEEE-SA).

Talvez até por conta da proximidade, o embate entre 3GPP e 3GPP2 foi muito importante nas tecnologias de terceira geração (3G). A família 3GPP é uma versão ampliada da família GSM, o padrão Europeu de segunda geração do qual falamos na seção anterior. Na verdade, as duas famílias se confundem, uma vez que o GSM está na origem do 3GPP. A bibliografia especializada ora faz uso de um termo, ora de outro para se referir ao mesmo grupo de empresas, organizações e tecnologias; família GSM e família 3GPP são termos comumente tratados como sinônimos. A pretensão do 3GPP de atingir alcance global tem origem na concepção do GSM enquanto padrão único Europeu que se expandiu para boa parte do mundo. É preciso retomar essa história para entender o embate entre 3GPP e 3GPP2.