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Grupo IEEE802 LMSC (LAN-MAN Standards Committee)

O grupo 802 produz especificações técnicas de interoperabilidade para redes de dimensões distintas de abrangência: pessoal, local e metropolitana. Seu foco de ação incide sobre as primeiras duas camadas do sistema OSI (Open System Interconnections), que é uma divisão lógica da arquitetura dos sistemas de comunicação em sete diferentes camadas (Russel, 2014). Essa divisão da rede em camadas lógicas facilita a produção de padrões de interoperabilidade, o que garante a comunicação fim-fim através de diferentes redes. O trafego de dados numa chamada via Skype feita a partir de meu apartamento, em Campinas-SP, até uma linha de telefone fixo na sede do IEEE em Piscataway (NJ, EUA), é garantida por protocolos de interoperabilidade que interconectam diferentes camadas de rede e diferentes redes. A tarefa principal do grupo 802

é escrever protocolos de interoperabilidade para os dois níveis mais básicos dessa arquitetura.

O primeiro é a camada física (PHY) que inclui o hardware necessário para a transmissão de informações; cabos, antenas e técnicas de modulação de rádio são exemplos de tecnologias localizadas na primeira camada. A camada de enlace é a segunda no modelo OSI, ela provê a conexão de dados entre dois nodos da rede atribuindo o protocolo físico adequado aos pacotes de dados. A segunda camada é dividida em duas subcamadas adicionais: o controle de acesso ao meio (MAC) e o controle da conexão lógica (LLC).

O escopo técnico do grupo 802 é assunto interessante, mas a partir daqui gostaria de apresentar o grupo a partir de minha experiência na sessão de orientação aos novos participantes (Newcomers Session) realizada em maio de 2014 em Waikoloa (HI, EUA) por ocasião da Wireless Interim Meeting. Naquela sessão não havia necessidade de introduzir conceitualmente o escopo técnico do grupo 802 na medida em que eu era o único não-engenheiro da sala. As primeiras reuniões da semana (que se estende até sexta-feira) geralmente acontecem na tarde de domingo, período em que grande parte dos participantes começa a chegar. Mas, as poucas reuniões desse período têm caráter administrativo e organizacional, os membros mais ativos do grupo (geralmente integrantes de seu comitê executivo) se reúnem para discutir coisas como fluxo de caixa, hotel e local das próximas reuniões, preço das inscrições, etc. Acontece que eventualmente também discutem assuntos de maior interesse para todo o grupo e, por isso, essas reuniões aos domingos que inicialmente eram informais passaram a constar na agenda da semana de reuniões. Daí, muito embora as reuniões dos GTs comecem apenas na segunda-feira, a tarde de domingo tornou-se também um momento para introduzir novos participantes.

Cada sessão da Wireless Interim reúne cerca de quinhentos participantes que se distribuem pelas reuniões que acontecem durante toda a semana. Mas, ainda no domingo, quando entrei na sala, havia apenas três pessoas sentadas em torno da mesa em formato de “U”. Daqueles três homens, apenas um era “novato”, a segunda pessoa era um membro sênior que havia chegado cedo

para a sessão que aconteceria em seguida. Durante quase todo o tempo da reunião ele se manteve concentrado apenas na tela de seu notebook. A terceira pessoa na sala estava no comando daquela sessão e seria o responsável por introduzir a estrutura organizacional do grupo 802. A sessão já havia começado, e ele estava falando quando entrei; fui também imediatamente reconhecido como “novato”, mesmo que aquela fosse minha terceira participação. A palavra “estudante”, logo abaixo do meu nome no crachá de identificação, provavelmente ajudou a reforçar a impressão de que aquela era minha primeira vez.

Na tela de projeções havia um quadro bastante semelhante ao apresentado na página 121 dessa tese (Figura 6, acima). A única diferença importante se resume ao destaque gráfico dado à posição das “Sociedades Técnicas” onde o

grupo 802 está localizado dentro do IEEE-SA128. A sessão teve continuidade

com a apresentação das divisões do grupo 802:

128 (LINK 48 – “Material Online”).

A figura acima (projetada na apresentação)129 mostra a lista dos dez grupos que atualmente encontram-se ativos no grupo 802. Dois deles (802.18 e 802.24) são “grupos de aconselhamento técnico” o que significa que se destinam a pesquisar assuntos que sejam de interesse estratégico como, por exemplo, regulação e certificação. Fazem ainda o trabalho de aconselhamento do comitê executivo (EC, acrônimo em inglês), publicam white papers e preparam apresentações sobre assuntos chave para o grupo, mas não escrevem padrões técnicos. Já os grupos de trabalho (GTs), por sua vez, são os órgãos responsáveis por propor projetos, escrever e fazer a atualização dos padrões. Em tese, cada GT se dedica a trabalhar numa área técnica que está relacionada, mas não sobreposta à de outros grupos. Até mesmo os diferentes projetos dentro de um mesmo GT não podem se sobrepor, ou coincidir com outros em objetivos e escopo.

Essa regra de “não-sobreposição” (no overlapping) é o critério terceiro de um grupo de cinco critérios que devem ser obedecidos no desenvolvimento de novos padrões. Os critérios são listados no “Manual de Operações” do grupo 802 e o primeiro deles é, não surpreendentemente, “amplo potencial de mercado”. Apesar do caráter voluntário da adoção, os padrões produzidos pelo grupo 802 estão amplamente espalhados pela indústria. Esse forte poder de mercado alcançado pelo grupo 802 lhe garante uma posição privilegiada dentro do IEEE-SA, uma parte significativa do SASB (conselho) é composta por membros do grupo 802.

O IEEE 802 condensa o interesse de diversos setores e atores industriais. Produtores de chip como a Intel, a Qualcomm e a Broadcom são solidamente representados no grupo ao lado de fabricantes de aparelhos e de software como Apple, Samsung, Microsoft, HP, Huawei, etc. Toda a cadeia produtiva das tecnologias de informação e comunicação tem algum nível de interesse em influenciar o rumo dos acontecimentos no grupo 802. Sendo assim, as empresas enviam seus especialistas em desenvolvimento de padrões para participar das reuniões e trabalhar na construção de padrões do grupo. Times diferentes de uma mesma empresa se destinam a projetos distintos. Da

perspectiva jurídica em relação ao IEEE-SA todos estão trabalhando voluntariamente, representando suas “próprias capacidades individuais” enquanto engenheiros e especialistas. Estão todos doando seu tempo, seu trabalho e sua expertise para a construção de padrões que sejam “bons o suficiente” (good enough). Mas, da perspectiva do mercado, os envolvidos na construção dos padrões fazem isso como sua atividade profissional primeira, com objetivo central de representar os interesses de seu empregador.

Cada participante, então, simultaneamente representa a si mesmo e a seu empregador. Essa relação é abertamente problemática e causa curtos- circuitos. O IEEE, também por sua história como associação de classe, está constituído sobre o princípio de que seus membros são essencialmente indivíduos, pessoas humanas, e não empresas, ou qualquer outro tipo de figura jurídica. Esse critério de filiação que privilegia indivíduos ao invés de empresas ou organizações difere em muito de outros organismos de desenvolvimento de padrões. Como vimos, os afiliados ao 3GPP são organizações diretamente ligadas ao mercado e/ou ao Estado. Outras tantas associações industriais foram sendo formadas para promover padrões técnicos, representar setores da indústria e vencer a concorrência global no mercado das TICs. Isso representa uma ameaça para organizações “tradicionais” como ISO, ITU, IEC e IEEE que enxergam com ressalvas a entrada de novos atores ligados à indústria na arena internacional de padronização técnica. Ao mesmo tempo, as organizações mais antigas foram se aproximando dos principais atores do mercado, e abrindo espaço para novos tipos de participação da indústria. Como já dissemos, o ICCom foi criado com intuito de estabelecer uma relação direta do IEEE-SA com a indústria, e dar uma resposta à concorrência das associações industriais (industry consortia). A relação de cooperação e de competição na arena internacional de desenvolvimento de padrões é matéria de discussão de uma bibliografia que entrecruza relações internacionais, políticas públicas de regulação e desenvolvimento industrial, economia e negócios, e até engenharia. Pretendo voltar a esse assunto ao longo do texto, privilegiando a perspectiva do IEEE-SA em sua relação com o “fora”. Trata-se de um terreno fértil de pesquisa, sobretudo porque testemunhamos parte de

um processo importante de transformação no modo de funcionamento do IEEE-SA, inclusive em sua política de patentes.

O curto-circuito causado pela ambiguidade no papel dos participantes é resolvido pelo IEEE-SA por meio da política de declaração de afiliação. Toda vez que um participante faz uma intervenção nas reuniões ele deve declarar sua “afiliação profissional”, desse modo, outros participantes podem localizar o discurso e identificar potenciais conflitos de interesse. Por “afiliação profissional” entende-se as empresas que estão (direta ou indiretamente) arcando com os custos de manutenção daquele profissional naquela reunião. Nas palavras de um membro sênior do comitê executivo: “nós não precisamos saber quem é o empregador de cada participante, mas nós precisamos saber quem está pagando as contas por sua participação”. Uma parte significativa dos membros do grupo 802 são consultores independentes que conhecem bem o mercado, a estrutura de funcionamento do IEEE-SA, bem como a maior parte de seus participantes habituais, ou seja, são aqueles que estão profundamente envolvidos na instituição. Não é difícil imaginar porque as companhias contratam esses consultores: porque ajudam a colocar em prática sua estratégia de ação no horizonte de estandardização. Parte importante do trabalho é a resolução de conflitos de mercado e a produção de acordos entre atores industriais. Os conflitos de interesse precisam ser resolvidos para a criação de um mercado comum.

Ainda na sessão de apresentação aos novatos, fomos informados sobre o modo como a agenda da semana de reuniões é comumente organizada. Cada dia é dividido em cinco porções de tempo (timeslots), dois pela manhã e pela tarde, e um no início da noite. De segunda a quinta-feira as atividades se iniciam às oito da manhã e terminam apenas às nove e meia da noite; na sexta-feira os períodos da tarde e da noite são livres. A agenda da semana contém uma série de reuniões simultâneas de diferentes grupos de trabalho, grupos de tarefa (TG) ou grupos de estudo (SG).

O membro sênior que comandava a apresentação se referiu então ao evento que acontece na noite de quarta-feira, “o social”. De maneira mais relaxada, disse que o evento é pensado para ser um encontro de confraternização, um momento de relaxamento e diversão. Naquela semana, aparentemente estava arranjado um jantar à beira da piscina do hotel resort em que o encontro estava acontecendo; noutras ocasiões, o evento já havia acontecido em pontos turísticos, bares e restaurantes. Depois de algumas brincadeiras, ouvimos que o evento é uma boa oportunidade de descontração, mas que “é, na verdade, trabalho”. O evento então torna-se mais um espaço de aproximação, resolução de conflitos e construção de alianças. Durante toda semana de reuniões, os espaços de lazer do hotel e da área de convenções são tomadas por reuniões informais de trabalho. Eu já havia escutado mais de uma vez, conversando com participantes do grupo 802, que boa parte do trabalho é feito nos corredores e restaurantes. Na sessão de introdução aos novos membros, que já havia tomado ares de conversa informal, o apresentador resolveu deixar

Grupos de Trabalho (GTs): “Em resumo os GTs trabalham para criar e

escrever o padrão”. Eles são abertos à participação de qualquer interessado (incluindo não membros do IEEE), e estão sujeitos às regras de transparência e participação estabelecidas pelo IEEE-SA. Alguns GTs trabalham

simultaneamente em diferentes versões de certos padrões, portanto, projetos concorrentes e complementares podem coexistir no mesmo GT. Isso torna necessário que diferentes grupos de “força tarefa” sejam criados. Ver: http://standards.ieee.org/develop/wg.html

Task Groups (TG): “força tarefa” são subdivisões dos GTs. Eles podem estar

encarregados de desenvolver uma seção de um padrão, uma nova versão ou uma corrigenda. Os grupos de trabalho que têm maior atração sobre a indústria (como o 802.11 ou o 802.3) compreendem geralmente a atividade de muitos TGs simultâneos. A relação do TG como IEEE-SA é sempre mediada pelo GT.

Study Groups (SG): o “grupo de estudos” o estágio anterior ao GT. São

grupos informais trabalhando para submeter uma PAR (Project Authorization Request) ao NesCom e subsequentemente iniciar formalmente as atividades de desenvolvimento de padrão sob o guarda-chuvas do IEEE-SA.

claro desde o início aquilo que aparentemente todos sabem: “aqui no grupo 802 nós trabalhamos com pessoas, e pessoas são difíceis de manejar” [...] “o bar é um espaço onde muitas pessoas esquecem suas diferenças e acham algo em comum”.

Ainda no início da pesquisa de campo, quando comecei a estabelecer contato direto com membros do grupo 802, escrevi para uma membro sênior com quem estava interessado em conversar. No e-mail, claro, expliquei de modo resumido minha pesquisa e seus objetivos. Como resposta, recebi o conselho de que eu deveria sim assistir às reuniões formais do grupo (como escrevi que faria), mas que deveria também achar um grupo de “barbas grisalhas” e “dobrá-los” com quantidades generosas de cerveja para obter “a história real”. O sentido mais explícito da frase, tal como compreendo, não traz muita novidade. Sabemos que os espaços de negociação política sempre ultrapassam o aparato formal de decisão, qualquer que seja ele. A política não se restringe à sua dimensão legal, ou formal. Também por isso o enunciado do meu interlocutor pôde ser feito por escrito, logo numa primeira comunicação. Não há o que esconder, todos conhecem o funcionamento do jogo. Numa outra conversa, presenciei a seguinte formulação: “o IEEE serve de meio legítimo para acordos industriais” [...] “se tivéssemos as mesmas conversas em outro ambiente, poderíamos ser processados”. Legítimo, nesse caso, refere-se à legalidade processual do IEEE frente às instituições de regulam o mercado nos EUA em relação à práticas antitruste. De fato, o aparato burocrático do IEEE-SA age na direção de prover esse ambiente de cooperação, mas, ao mesmo tempo, deixando espaço aberto para a competição. Um equilíbrio fino que parece impossível de ser alcançado.

É assim que o espaço de produção de padrões tecnológicos é comumente descrito pelos meus informantes do campo: um espaço de cooperação- competição onde o mercado age de modo (auto)regulado. O IEEE-SA funciona como dispositivo que estabiliza e cria um mercado; produz acordos e interfaces que fazem diferentes elementos técnicos funcionarem em conjunto, dentro de um determinado acordo entre certos agentes industriais. Na medida em que o processo de convergência tecnológica cruza redes móveis e redes sem fios,

rede de telefonia e rede de computadores, a competição não se exerce apenas dentro do IEEE mas também fora dele. Incluindo a competição e cooperação do IEEE-SA com outras organizações de estandardização. A relação entre cooperação e competição atravessa muitos planos do campo da estandardização, e dá a ver as tensões que informam não só o IEEE, mas também parte importante da infraestrutura que permite o funcionamento da internet.