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A DINÂMICA DA INTOLERÂNCIA FRENTE ÀS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

2.2 A DINÂMICA DA INTOLERÂNCIA FRENTE ÀS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

“Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras, de babaloxás e iauô, somos nós que lhe asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhes; explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maitre- chanteur, assassino, larápio, fica sempre impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.” (João do Rio) 118

Historicamente as religiões de matriz africana sempre demonstraram uma grande capacidade de resistência diante do exercício de práticas discriminatórias. Às práticas religiosas afro-brasileiras o tratamento consistia em deslegitimá-las e esgotar-lhes as possibilidades de exercício.

Esta percepção era calcada em dois aspectos marcantes. O primeiro, deve-se ao temor do desconhecido perante óticas religiosas não convergentes à arquitetura cristã; e, a segunda, deve-se aos projetos de domínio e colonização, que vinham acompanhados de um legado ideológico de cunho escravagista e que via na religião um elemento aglutinador de eventuais resistências.

Desde o início do processo de escravização de negros, retirados de diversas partes do continente africano e enviados para as colônias portuguesas, a unidade religiosa de inúmeras tradições africanas viu-se ameaçada. Ao longo dos tempos, houve a extinção de diversas práticas, ora por conta da incansável repressão da Igreja Católica

e de seus pares, auxiliado pela perseguição estatal, como também a pulverização, descaracterização e metamorfose de manifestações religiosas resultante do sincretismo.

Nesta segunda causa, o sincretismo, vale a opinião de Ortiz.119

Para ele, a umbanda e o candomblé poderiam ser classificados de duas maneiras: de um lado, a religiosidade africana pura, o candomblé, e de outro, a umbanda, religião modificada para adaptar-se à sociedade nacional e à modernidade. O candomblé teria conservado a referência simbólica à África, enquanto a umbanda não. Como afirma o autor: “O objetivo do nosso trabalho é mostrar como se efetua a integração e legitimação da religião umbandista no seio da sociedade brasileira.”120

O processo de sincretismo e de transformação religiosa sofrido pelas religiões de origem africana foi visto, sobretudo, como desagregação de valores tradicionais. Eles cederam lugar à modernidade imposta pelos brancos:

A desagregação do universo mítico afro-brasileiro não se reduz unicamente a uma relação quantitativa entre grupos de cores diferentes: é, sobretudo, a dominação simbólica do branco que acarretará o desaparecimento ou a metamorfose dos valores tradicionais negros, eles tornaram-se cada vez mais inadequados a uma sociedade moderna.121

Para Ortiz:

119

Neste sentido: ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999.

120 Idem, p. 12. Segundo Pai Francelino de Shapanan: “Umbanda é uma religião originalmente brasileira,

que miscigena elementos das mais diversas religiões e culturas mundiais. Fundamenta-se em 3 pilares: amor, caridade e humildade.Admite um Deus único (Olorum), que é o criador de tudo e todos. Seus adeptos (chamados também de “filhos de fé”) reverenciam entidades superiores denominados orixás, sendo o principal Jesus (Oxalá). A Umbanda nasceu no Rio de Janeiro, no dia 15 de novembro de 1908, por orientação do médium Zélio Fernendino de Moraes. O Cabloco das 7 Encruzilhadas afirmou que estava vindo naquele momento para oficializar uma nova religião, que se denominaria Umbanda (para todas as bandas), ou seja, “para todos”, sem nenhum tipo de discriminação. Naquele instante nasceu o 1° terreiro, batizado de “Centro de Umbanda Nossa Senhora da Piedade”, em homenagem a Maria, mãe de Jesus, o que caracteriza de forma reveladora o sincretismo praticado nessa vertente”. In: Guia prático sobre religiões e crenças, p. 25. Cartilha extraída do 2º Fórum Inter-religioso - por uma cultura de paz e liberdade de crença, promovido pela Secretaria da Justiça e da defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

Pode-se opor Umbanda e Candomblé como se fossem dois pólos: um representando o Brasil, o outro a África: a Umbanda corresponde à integração das práticas afro-brasileiras na “moderna” sociedade brasileira; o candomblé significaria justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva africana no solo brasileiro. 122

O exemplo disto é que, durante o período colonial, os adeptos dos cultos africanos utilizavam estratégias para frear, em algumas circunstâncias, a repressão contra eles perpetrada. Para tanto, faziam uso até mesmo de certa dissimulação quanto ao exercício de suas fés, ou mesmo, rompendo as barreiras da subalternização e buscando amparo na estrutura legal da época, ou seja, recorrendo às autoridades públicas. 123

No decorrer da primeira metade do século XIX a Bahia se constituiu num ambiente favorável à resistência escrava, primeiro porque houve o crescimento do número de negros e mestiços, sobretudo africanos, que chegaram a atingir 8 mil por ano em determinados períodos, para preencher a demanda da economia açucareira. 124

Esta crescente população africana favoreceu tornou possível maior representatividade cultural dos negros, um melhor alinhamento de suas identidades étnicas, o enfrentamento em prol da liberdade e, também, o aperfeiçoamento na arte de negociar com os brancos. Segundo Reis:

A mera presença de um número tão grande de africanos intimidava setores importantes da classe senhorial, e com razão. Entre 1807 e 1835, escravos trazidos da África realizaram mais de duas dezenas de conspirações e revoltas, mantendo o regime escravista em permanente sobressalto. Paralelamente, os africanos se empenharam com vigor no aperfeiçoamento de suas instituições de barganha com a população baiana, com brancos, mulatos e crioulos. A construção e constante

122 Idem, p. 16.

123 REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista.

2ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 32-61. Reis situa nesta parte do seu livro que as relações entre escravos, senhores e autoridades se devam ora de maneira conflitante, ora de relativa acomodação nos embates, mas que estas condições estavam em permanente sintonia com as conveniências da dinâmica escravista, a qual os negros passaram a entender e agir com determinada dissimulação no enfrentamento da escravidão, visando contornar a repressão sob seu legado cultural.

recriação da identidade étnica esteve no centro dessa dinâmica africana.125

Nesta atmosfera, a política moderada de tolerância se instala na Bahia, em razão deste pacto informal e tênue entre negros, escravos e libertos, sustentado na necessidade de responder às exigências de uma sociedade colonial cada vez mais complexa, com a presença de negros ampliada e diversificada, sendo seus serviços prestados a cada dia mais indispensáveis, tornando as redes clientelares mais entrelaçadas e o sistema de alianças mais abrangente. 126

Para Silveira, o dinamismo econômico da região fez surgir os primeiros libertos prósperos e, consequentemente, os primeiros letrados afro-baianos, o que determinou a estabelecimento de novas segmentações, novos interesse e novos pactos. Sustenta Silveira que “a participação dos africanos e seus descendentes foi ficando cada vez mais diversificada, com influência crescente da civilização na vida cotidiana da cidade, propiciando o surgimento de uma cultura miscigenada, original”. 127

Decerto que, recorrer a uma autoridade judicial naqueles tempos poderia restar infrutífero e mais nocivo ainda. Isto, razão do exercício de práticas religiosas ligadas às religiões de origem africanas em alguns momentos era totalmente censurado por lei ou regulado de que maneira poderiam funcionar, por via de decretos ou portarias. 128

Acrescenta-se que, somada a proibição legal, a imposição da tradição cristã permeava as relações entre senhores e escravos, cujo exercício do catolicismo à força se constituía numa obrigação cotidiana, restando aos adeptos das religiões africanas

125 REIS, op. cit., p. 34.

126 SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: Processo de constituição do primeiro terreiro

baiano de keto. Salvador: Edições Maianga, 2006, p. 154.

127 Op. cit., p. 161.

128 Postura 7º da Câmara Municipal de Salvador: “são proibidos os batuques, danças, e ajuntamentos de

escravos em qualquer lugar, e a qualquer hora”. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e

escamotearem as suas práticas na ritualística da Igreja Católica ou quando lhes eram concedido tempo para exercitar seus cultos.

Por óbvio, negros livres e ex-escravos tinham maior permeabilidade para cultuarem seus orixás, inquices e voduns. Todavia, não eram menos perseguidos por se encontrarem nestas condições, como demonstra Reis ao tratar da invasão do Candomblé de Accú (provavelmente deu origem ao bairro do Acupe de Brotas, em Salvador), ocorrida em 1829, foi realizada em domínios de um negro liberto. 129

Não bastava, portanto, a condição social de negro livre ou liberto. O exercício da liberdade religiosa não tocava de maneira plena os que se encontravam neste patamar social. Como anota Reis “A repressão à cultura negra, à religião em particular, foi um fato comum na vida dos escravos”.130