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Seguindo a metodologia proposta, a construção do conceito de paradigma ambiental demanda a análise prévia dos conceitos kuhnianos de “crise científica” e de “paradigma”.

Nesse sentido, iniciamos com a análise do conceito de paradigma, que se encontra no centro da teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn, cujo cerne consiste na afirmação de que o empreendimento científico se desenvolve de forma descontínua e não-cumulativa, através de rupturas (ciclo das crises e revoluções paradigmáticas), não mediante um processo meramente gradativo de acumulação de conhecimento. Kuhn reconhece a polissemia do termo “paradigma”, mas a reduz a dois sentidos fortes:

De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal (KUHN, 1995, 218).

Desse modo, temos duas perspectivas para compreensão do conceito de paradigma: (i) as “realizações científicas universalmente reconhecidas, que durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1995, p. 13); (ii) cosmovisão compartilhada pelos membros de determinada comunidade científica, que a unifica, a organiza e orienta sua maneira de conceber o mundo e de praticar ciência, estabelecendo uma “matriz disciplinar” (KUHN, 1995, p. 226).

Em ambas as acepções, o paradigma é uma construção compartilhada, pois o “conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada” (KUHN, 1995, p. 257). Este aspecto merece destaque: o conceito de paradigma foi construído originalmente por Kuhn em referencia à ideia de “comunidade científica”, ou seja, algo compartilhado entre os membros de um grupo muito específico, com características, formação acadêmica e objetivos comuns. Kuhn aclara a concepção de comunidade científica:

(...) uma comunidade científica consiste dos profissionais de uma especialidade científica. Unidos por elementos comuns em sua educação e aprendizado, consideram-se e são considerados responsáveis pela busca de um conjunto de

objetivos compartilhados, entre eles a formação de seus sucessores. Tais comunidades são caracterizadas pela relativa integridade da comunicação no interior do grupo e pela relativa unanimidade dos juízos coletivos em questões profissionais (KUHN, 2011, p. 314).

A prática da ciência no interior da comunidade científica exige a presença de um horizonte compartilhado e não problematizado capaz de permitir a comunicação, na busca pelo consenso profissional, que é compostos por elementos (generalizações simbólicas, modelos e exemplares), que em seu conjunto forma a “matriz disciplinar” que orienta a comunidade científica, em sua atividade de produzir e validar conhecimento (KUHN, 2011).

Com efeito, o paradigma traz ínsito as crenças, os valores e generalizações simbólicas que constituem a matriz disciplinar, unificadora da cosmovisão compartilhada entre os membros da comunidade científica, bem como as teorias, os métodos para avaliar as teorias e os exemplos compartilhados de problemas já solucionados (chamados por Kuhn de quebra- cabeças), que servem de guia para outras aplicações da teoria.

O paradigma vigente condiciona o modo pelo qual o cientista compreende a Natureza, determinando o objeto de estudo, o método e as possíveis soluções para os problemas pesquisados em sua área de estudo, sendo em si mesmo inquestionável, e o seu sucesso consiste na sua capacidade de resolver os problemas existentes e na promessa de que poderá resolver problemas a serem descobertos, que por sua vez são definidos nos limites do próprio paradigma. O período em que os cientistas utilizam com sucesso o paradigma para resolver os quebra-cabeças é chamado de ciência normal, onde de fato se vislumbra uma acumulação gradativa de conhecimento.

O período de ciência normal é “uma tentativa vigorosa e devotada de forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela educação profissional” (KUHN, 1995, p. 24), durante o qual os cientistas exercem o empreendimento científico de acordo com o paradigma vigente, que determina a cosmovisão acerca da Natureza, delimitando o objeto de estudo, o método e as possíveis soluções para os problemas pesquisados e a promessa de que poderá resolver os problemas a serem descobertos17. A prática da ciência normal ocorre nos limites do

paradigma que a orienta:

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômenos; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente

17 A ciência normal consiste na atualização dessa promessa, atualização que se obtém ampliando-se o conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma e articulando-se ainda mais o próprio paradigma (KUHN, 1995, p. 44).

nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. (KUHN, 1995, p. 45). Este aspecto merece realce, o paradigma fornece não apenas as soluções, mas também determina quais problemas merecem atenção, razão pela qual os cientistas se aperfeiçoam na utilização do paradigma, a fim de aumentar a sua capacidade de identificar e resolver problemas, nos limites das teorias decorrentes do paradigma.

Todavia, quanto mais os cientistas se aperfeiçoam na utilização do paradigma, tanto mais aumentam as possibilidades de se depararem com anomalias, isto é, problemas que não encontram solução nos limites do paradigma vigente. Ou seja, quanto mais os cientistas se aperfeiçoam no domínio do paradigma, mais aumentam as possibilidades de que se deparem com anomalias resistentes a uma solução nos limites do paradigma, de modo que “a novidade normalmente emerge apenas para aquele que, sabendo com precisão o que deveria esperar, é capaz de reconhecer que algo saiu errado. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma” (KUHN, 1995, p. 92).

Em condições normais, o cientista pesquisador não é um inovador, mas um “resolvedor” de enigmas, e os enigmas em que se concentra são apenas aqueles que acha que pode enunciar e solucionar no âmbito da tradição científica existente. (...)

(...) Nas ciências maduras, o prelúdio a muitas descobertas e a toda teoria original não é a ignorância, mas o reconhecimento de que alguma coisa deu errado no conhecimento e nas crenças existentes. (KUHN, 2011, pp. 250-251).

O cientista profissional é treinado para resolver problemas a partir dos exemplares, isto é, dos problemas e soluções anteriormente encontrados pela comunidade científica, que são aplicados por analogia aos novos problemas que são identificados, de modo que assim “que um problema é visto como análogo a um problema já resolvido, segue-se tanto um formalismo apropriado como um novo modo de vincular suas consequências simbólicas à natureza” (KUHN, 2011, p. 324). A primeira reação da comunidade científica ante uma anomalia é a defesa do paradigma, identificando-a como um erro de aplicação e intensificando as pesquisas e estudos, razão por que Kuhn identifica uma permanente tensão essencial entre o pensamento convergente na defesa do paradigma e o pensamento divergente em criticar o paradigma ante a necessidade de resolver uma anomalia persistente18.

18 (...) um “pensamento convergente” é tão essencial ao avanço científico quanto o divergente. Uma vez que esses modos de pensamento se encontram inevitavelmente em conflito, segue daí que a capacidade para

Caso a anomalia persista, após as tentativas de solução nos limites do paradigma, isto é, quando “uma anomalia parece ser algo mais que um novo quebra-cabeças da ciência normal, é sinal de que se iniciou a transição para a crise e para a ciência extraordinária” (KUHN, 1995, p. 114). O período chamado de ciência extraordinária é aquele em que a capacidade do paradigma em identificar e resolver problemas é questionada, instaurando uma crise paradigmática, que resulta da dissociação entre a cosmovisão decorrente do paradigma vigente e o modo como a Natureza se comporta.

Portanto, uma crise paradigmática é deflagrada por uma anomalia (evento externo), que instabiliza a credibilidade do paradigma vigente, fazendo com que a comunidade científica questione a capacidade do paradigma em identificar e resolver os problemas, passando a analisar outros candidatos a paradigma, a fim de decidir qual deles melhor orienta a prática científica. A crise paradigmática se origina do fracasso persistente na resolução de um problema relevante, que abala a crença no paradigma vigente e abre a perspectiva da busca de um novo paradigma, do qual decorra uma nova interpretação da Natureza capaz de solucionar a anomalia, mas também capaz de preservar boa parte da capacidade de resolução de problemas do paradigma esgotado.

A crise paradigmática instaura uma luta pela interpretação da Natureza, na medida em que pessoas que operam com paradigmas distintos vivenciam e veem o mundo de formas distintas, devendo decidir qual concepção de mundo deverá prevalecer e orientar a prática científica. Nesse sentido, uma crise paradigmática é, sobretudo, um momento de tomada de decisão sobre a forma de conciliar a cosmovisão com as experiências vivenciadas nesse mesmo mundo, na medida em que a caracterização de uma crise paradigmática demanda “que a natureza solape a segurança profissional, fazendo com que as explicações anteriores pareçam problemáticas” (KUHN, 1995, pp. 211-212).

Durante os períodos de crise paradigmática, vários candidatos a paradigma são analisados e a escolha entre eles se realiza dentro da comunidade científica, mediante um processo de aprendizado da linguagem na qual está expresso o novo paradigma e, após dominarem a nova compreensão linguística, os cientistas escolhem qual dos paradigmas é o melhor para resolver a anomalia e orientar a prática científica. A decisão acerca da escolha entre paradigmas é sempre da comunidade científica, e não do cientista isoladamente considerado.

Tratando mais detidamente acerca deste ponto fundamental de sua teoria, Kuhn segue suportar uma tensão, que ocasionalmente pode beirar o insustentável, é uma das principais condições para o que há de melhor em termos de pesquisa científica” (KUHN, 2011, p. 242).

afirmando:

Em particular, confrontada com o problema da escolha de teorias, a estrutura de minha resposta é mais ou menos a seguinte: tome um grupo das pessoas disponíveis mais capazes, com a motivação mais apropriada; treine-as em alguma ciência e nas especialidades relevantes para a escolha em questão; impregne-as do sistema de valores, da ideologia, corrente em sua disciplina (e, em grande medida, também corrente em outros campos científicos); e, finalmente, deixe que elas façam a

escolha. Se essa técnica não explicar o desenvolvimento científico como o

conhecemos, nenhuma outra o fará. Não pode haver nenhum conjunto adequado de regras de escolha para ditar o comportamento individual desejado nos casos concretos que os cientistas no decurso de suas carreiras. Seja lá o que for progresso científico, temos de explicá-lo examinando a natureza do grupo científico, descobrindo o que ele valoriza, o que tolera e o que desdenha. (KUHN, 2006, p. 164).

A comunidade científica decide de quais referenciais definirão seu campo de pesquisa e de atuação, uma vez a ciência normal “é, precisamente, a pesquisa dentro de um referencial” (KUHN, 2006, p. 169). A transição paradigmática também depende de uma tomada de decisão da comunidade científica sobre a emergência e adoção de outro paradigma, com novos referenciais teóricos, instaurando um novo período de ciência normal, evento chamado por Kuhn de revolução científica.

Deste modo, a transição paradigmática decorre do julgamento realizado pela comunidade científica para determinar qual paradigma melhor resolve os problemas, fazendo surgir uma nova interpretação da Natureza, uma forma distinta de compreender o mundo, melhor adequada aos fatos, mas para que isto ocorra é preciso que o novo paradigma conserve boa parte da capacidade de resolução do paradigma esgotado:

Além disso, mesmo nos casos em que isso ocorre e um novo candidato a paradigma aparece, os cientistas relutarão em adotá-lo, a menos que sejam convencidos de que duas condições primordiais foram preenchidas. Em primeiro lugar, o novo candidato a paradigma deve parecer capaz de solucionar algum problema extraordinário, reconhecido como tal pela comunidade e que não possa ser analisado de nenhuma outra maneira. Em segundo, o novo paradigma deve garantir a preservação de uma parte relativamente grande da capacidade objetiva de resolver problemas, conquistada pela ciência com auxílio dos paradigmas anteriores (KUHN, 1995, p. 212).

Assim, diante de uma anomalia séria, ou seja, de um problema persistente considerado relevante pela comunidade científica, instaura-se um período de ciência extraordinária, onde há intenso debate na comunidade científica entre os defensores do paradigma vigente e aqueles que propõem e defendem candidatos a novo paradigma, debate em torno de qual proposta tem capacidade para melhor resolver a anomalia e orientar a prática científica

futura19. Com o tempo, uma das propostas começa a ganhar mais adeptos, a ser mais citada em revistas especializadas e encontros científicos, a ter mais livros publicados, a ser mais utilizada na academia e na prática científica, até o ponto em que ganha a aceitação geral e passa a nortear a prática científica naquele campo de estudo, promovendo uma ruptura na tradição, operando a chamada revolução paradigmática, que inaugura um novo período de ciência normal.

Kuhn defende que o “falseamento” deve ser reservado a momentos críticos, em que a capacidade do paradigma esteja em questão, a fim de que se possa viver os referenciais, antes de mudá-los20:

Se todos os membros de uma comunidade respondessem a cada anomalia como se fosse uma fonte de crise ou abraçassem cada nova teoria apresentada por um colega, a ciência deixaria de existir. Se, por outro lado, ninguém reagisse às anomalias ou teorias novas, aceitando riscos elevados, haveria pouca ou nenhuma revolução (KUHN, 1995, p. 231).

Desta forma, para Kuhn, a revolução científica não ocorre por acumulação, mas por ruptura, onde a emergência de um novo paradigma promove uma reconstrução do campo de estudo. A transição paradigmática, que instaura um novo período de ciência normal, é uma reconstrução da área de estudo, que altera os conceitos, teorias, métodos e aplicações a partir da cosmovisão determinada pelo novo paradigma (KUHN, 1995, p. 116).

Por fim, saliente-se que Kuhn pretendeu utilizar o conceito de paradigma em seu primeiro sentido forte, ou seja, como conjunto de exemplares de determinada comunidade científica, que permite o diálogo entre os membros da comunidade científica, com base no conhecimento produzido pela solução de problemas anteriores, possíveis de ser utilizados como exemplos-padrões para solução de problemas, aplicando-os por analogia, mas sem descartar a possibilidades de novas conexões. Kuhn esclarece a gênese do termo paradigma:

Ele apareceu em A estrutura das revoluções científicas por que eu, historiador e

19 “Todas as teorias historicamente significativas concordaram com os fatos; mas somente de uma forma relativa. Não podemos dar uma resposta mais precisa que essa à questão que pergunta se e em que medida uma teoria individual se adequa aos fatos. Mas questões semelhantes podem ser feitas quando teorias são tomadas em conjunto ou mesmo aos pares. Faz muito sentido perguntar qual das duas teorias existentes que estão em competição adequa-se melhor aos fatos” (KUHN, 1995, p. 187).

20 “É preciso viver com os referenciais, e explorá-los, antes de poder rompê-los. Mas isso não implica que os cientistas não devam ter como objetivo um perpétuo rompimento de referenciais, não importa quão inatingível seja essa meta. ‘Revoluções permanentes’ poderia ser o nome de um importante imperativo ideológico. Se Sir Karl e eu temos alguma discordância a respeito da ciência normal, ela reside nesse ponto. Ele e seu grupo sustentam que o cientista deveria tentar, sempre, ser um crítico e um proliferador de teorias alternativas, Insisto na desejabilidade de uma estratégia alternativa que reserve tal comportamento para ocasiões especiais” (KUHN, 2006, p. 170).

autor do livro, quando examinei as condições e pertencimento às comunidades científicas, não pude recuperar um número suficiente de leis compartilhadas para explicar o caráter não problemático a conduta de pesquisa. Concluí em seguida que os exemplos compartilhados de práticas bem-sucedidas poderiam fornecer o que o grupo não possuía com as regras. Esses exemplos eram seus paradigmas e, como tais, eram essenciais à continuidade de sua pesquisa” (KUHN, 2011, p. 337).

No entanto, a presente pesquisa adotará o segundo sentido forte de paradigma, compreendendo-o como a matriz disciplinar, da qual os exemplares são apenas um dos seus elementos constitutivos. Nesse sentido, propõe-se um cotejo entre a ideia kuhniana de paradigma e a ideia de princípio de organização apresentada por Habermas, com vistas a construir um conceito de paradigma ambiental.

1.4 DO CONCEITO DE PARADIGMA AMBIENTAL E DA ESTRUTURA E