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3 LEITURA E ESCRITA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

4.1 D Dirce: Um Arquivo em Produção

Para uma produção já realizada, e que não cessa, fazia-se necessário um levantamento dos textos de D. Dirce, por ela informados, iniciando-se como uma coletânea, mas indo além; pleiteava-se a produção de um arquivo de seus escritos, que foram aparecendo logo no primeiro encontro. Então, ao perceber que D. Dirce estava disposta a apresentar seus materiais, escritos em sua casa ou em atividades do PEJA, a ideia de organizar um arquivo foi apresentada e aceita.

Foi solicitado que D. Dirce disponibilizasse para a pesquisa os textos que gostaria que fizessem parte deste Arquivo em Produção, textos estes que considerasse significativos. Foram levantados 25 escritos (contando com “Quem sou eu?” apresentado acima), sendo 8 poesias.

Inicialmente esse Arquivo em Produção estaria organizado a partir do seu primeiro texto “O tempo” escrito em 24 de março de 2009 e assim sucessivamente. Porém D. Dirce aponta outra organização cronológica, iniciando pelo texto “Infância, Saudade Tamanha!”, pois para ela é na infância onde tudo começa. Em seguida, os escritos “Ser mãe”, “Mulher mãe!”, “Mulheres em todos os tempos!”, “Sempre sou”, “Recordação”, “Presente” e “Costume e tradições”, pois apresentam suas percepções e vivências principalmente enquanto mulher, mãe e dona de casa, além de representar uma sequência de acontecimentos em sua vida. Em continuidade, os escritos “O tempo”, “Vou-me para Unesp”, “Alfabeto” e “Bienal...”, estão ligados às experiências de aprendizado e educação. E por fim, os textos relacionados à natureza “O rio quis abraçar o mar”, “A alegria de um indiozinho”, “Trabalho de campo realizado no dia 21 de maio”, “A sobrevivência”, “Escolhi: Mato Grosso do Sul!”, “Comemorações”, “Visita ao viveiro Bonsai”, “A trilha”, “O capinzal extinto”, “A garça”, “O trinar dos passarinhos” e “A fera que conheceu a amizade”.

Durante as entrevistas, a fala de D. Dirce revela as histórias que estão por trás dos escritos, que em sua maioria são experiências vividas e compartilhadas na infância e na vida adulta como mulher, esposa, dona de casa e educanda do PEJA. Também aponta o ato de escrever a partir dos próprios escritos, da forma como cada um foi sendo composto/ construído, e isso fez com que a apresentação de suas experiências escritas nesse Arquivo em Produção acompanhasse uma 'caixa de texto' contendo as seguintes questões: Onde? Quando? E como? A partir dessas questões, proponho um esboço da constituição desse arquivo considerando a foto-imagem do texto por ela escrito, e o contexto de sua produção.

Nos limites deste Trabalho de Conclusão de Curso apresento o tratamento que demos escolhendo, junto com D. Dirce, alguns de seus escritos. Por esse motivo chamamos Arquivo em Produção: não exaure toda sua produção e ela mesma pode dar continuidade à constituição do arquivo.

Figura 4 - Poesia “Infância, Saudade Tamanha!”

“Infância, Saudade Tamanha!”

Onde: Escreveu na sala do PEJA e fez alterações em sua casa.

Quando: 05 de dezembro de 2011.

Como: Em um dia de tempo fechado, D. Dirce carregava consigo sua sombrinha,

chegando em frente à Unesp - Rio Claro para mais uma aula do PEJA, começou a chuviscar, então lembrou-se de uma canção de sua infância, e foi cantarolando-a até a sala do PEJA “cai, cai chuva de lá do céu, cai, cai chuva no meu chapéu”. Na sala estavam duas educadoras e D. Dirce contou para elas que estava chuviscando e com sol e que isso fez relembrar uma música dos seus tempos de menina, de mais de 40 anos atrás. Uma das educadoras pediu para D. Dirce falar mais sobre a sua infância e depois de voltar no tempo, a educadora então solicitou à educanda que colocasse no papel a sua infância. D. Dirce contou que a educadora havia preparado outra atividade para a aula, que não sabia o que era, mas ela resolveu mudar. De início, D. Dirce ficou insegura sem saber muito bem como escrever, mas foi escrevendo. Escreveu que andava na enxurrada, e então ficava encharcada e cortava o pé, pois havia pessoas maldosas que jogavam garrafas e arrames na rua. A enxurrada vinha da Avenida 28, descia pela rua de sua casa indo até uma lagoa próxima formando um espumão. A mãe de D. Dirce dizia para ela não descer até o espumão, pois lá tinha sapo e cobreiro. Por sua mãe ter medo de sapo, D. Dirce também tinha e não descia até o espumão. Para ela era uma alegria andar na enxurrada, mesmo ficando encharcada da cabeça até os pés, mas quando chegava em sua casa e seu pai via o corte em seu pé, ficava muito bravo e perguntava “por que andou na enxurrada e veio encharcada pra casa?”. Sem dó, jogava e esfregava álcool com plantas em seu corte e depois ainda lhe dava cintadas, o que doía sua perna e seu bumbum, mas sua mãe cuidava com carinho até o corte sarar, limpava bem, tirando toda a terra e sujeira do corte. Além de andar na enxurrada, D. Dirce passava todos os dias após sair da escola na Unesp da rua 10 próxima a sua casa para ver os bichos empalhados e os vivos em liberdade. Também brincava de andar com a lua cheia, que era uma alegria para ela e as amigas, que davam as mãos e descalça andavam pela rua de terra fofa atrás da lua cheia, que na imaginação inocente de criança a lua estava andando também.

E brincavam na areia, faziam um monte com a areia, davam distância e pulavam em cima, doía o bumbum, mas diz que era uma delícia; quando os meninos vinham antes e chutavam o monte de areia, as meninas ficavam loucas da vida. E toda tarde quando era época de flor maravilha, saiam para colher na rua de sua casa ou na mata próxima, colhiam maravilhas de todas as cores e tamanhos, e quando achavam a maravilha mesclada com duas cores significava sorte. Então D. Dirce e suas amigas pegavam um cordãozinho de capim que dava na grama mais larga e colocavam uma por uma da maravilha no cordãozinho para fazer colar que ficava muito bonitinho, mas no outro dia todas as maravilhas estavam murchas. D. Dirce também contava as estrelas e caçava borboletas. Nesse poema D. Dirce conta a sua infância, a infância que teve compartilhada com os amigos, e ao me relatar sobre o seu processo de escrita, ela diz que vem tudo em sua mente outra vez, como se estivesse revivendo tudo novamente. Um dia, D. Dirce estava sentada tomando café e seu filho mais velho que havia acabado de ler essa poesia que estava em cima da escrivaninha de seu quarto, abraçou-lhe e perguntou “quem colhia maravilhas e rezava Ave Maria?”, “Que linda poesia mãe!”. D. Dirce fica muito emocionada ao falar do orgulho que os filhos sentem dela e de seus escritos.

Figura 5 - Poesia “Mulheres em todos os tempos!”

“Mulheres em todos os tempos!”

Onde: Escreveu em sua casa. Quando: Março de 2011.

Como: Uma educadora lhe enviou um e-mail comunicando sobre um concurso de poesia na cidade de Rio Claro para a Semana da Mulher. Neste e-mail a educadora incentiva D. Dirce dizendo que ela seria capaz de escrever um poema para o concurso; D. Dirce responde a mensagem da educadora com um pouco de insegurança, pois não sabia como iria começar a escrever a poesia, mas a educadora insistiu na capacidade da educanda, lhe incentivando mais uma vez. D. Dirce conta que quando está mexendo na água vêm muitas coisas bonitas em sua mente, e foi na pia que ideias surgiram para essa poesia. D. Dirce estava lavando louça e lembrou-se da tia de seu marido que morava no sítio e quando nascia uma criança sempre dizia “nasceu menino home, nasceu menina muié”. Desta frase, D. Dirce começou a escrever a poesia em um papel de rascunho “Viva, nasceu é mulher” e então foi colocando todas as fases da vida de uma mulher: nascimento; a mulher menina; a mulher jovem; a mulher mãe “majestade é a rainha do lar”; a mulher quando perde um filho, momento este de sofrimento e dor “o que ela tem a fazer é orar sem cessar”; a mulher em uma roda de amigas (felicidade) “numa roda de amigas sempre tem o que falar. Em todos os acontecimentos, haja o que houver, sempre está presente a pessoa da mulher”. O título para esse escrito foi criado quando D. Dirce estava lavando o corredor de sua casa e pensou: “Mulheres em Todos os Tempos”, porque falou de todos os tempos/fases/épocas da vida de uma mulher, de sua vida e para se certificar perguntou para a filha o que ela achava, ela aprovou. D. Dirce fez a inscrição de sua poesia no concurso, como sugeriu a educadora, não ganhou, mas sente muito orgulho de sua produção escrita e do seu certificado de participação no concurso. Nessa poesia D. Dirce escreve momentos de sua vida, seu dia-a-dia e palavras de pessoas conhecidas, que também acredita ser momentos vividos por muitas outras mulheres.

Figura 6 - Texto “O tempo”

“O tempo”

Onde: Lição do PEJA, escreveu em sua casa. Quando: 24 de março de 2009.

Como: Este texto foi escrito a partir da leitura do poema “O tempo” de Mario Quintana. A educadora pediu que os educandos fizessem um texto empregando muitas vezes a palavra “tempo”; D. Dirce achou estranho, pois leu no Jornal Cidade, de Rio Claro matérias de um professor, que não se deve ficar repetindo palavras em redações, mas seguiu as orientações da educadora, utilizando muitas vezes a palavra “tempo”. Ao escrever o texto, D. Dirce lembrou-se de uma mensagem do livro “Mananciais no Deserto” volume 1 que conta a história de um biólogo ansioso para o nascimento de uma mariposa, corta o seu casulo e esta nasce toda torta e acaba morrendo, pois cada coisa tem o seu tempo. Também pensou nas pessoas que dizem não ter tempo, e sente-se feliz por ter o tempo de duas horas por dia de aprendizado no PEJA. D. Dirce agradece a Deus não só pelo seu tempo, mas pelo tempo dos educadores que se dedicam ao projeto. Também pensa que o tempo é a gente que faz. D. Dirce conta que se não tivesse a oportunidade de participar do PEJA, não teria escrito todos os seus textos, dos quais sente muito orgulho, sendo de muita importância em sua vida e valor que não há dinheiro que pague. Inicialmente esse texto foi escrito em uma folha de sulfite rosa, no qual as linhas da folha foram feitas por seu marido, depois D. Dirce passou a limpo em seu caderno de atividades do PEJA.

Figura 7 - Texto “Vou-me para Unesp”

“Vou-me para Unesp”

Onde: Lição do PEJA, escreveu na sala de aula. Quando: 2009.

Como: Foi realizada a leitura do poema “Vou-me embora para Pasárgada” de Manuel Bandeira e D. Dirce comenta que o poema fez relembrar dos tempos de infância, do lugar onde morava e a outra educanda presente no encontro disse o mesmo, e elas começaram a contar sobre a infância vivida. Depois da conversa a educadora perguntou o que D. Dirce vinha fazer na Unesp, e a partir dessa pergunta escreveu esse texto. O primeiro título foi “Vou-me embora para Unesp” bem próximo ao nome do poema de Manuel Bandeira, mas D. Dirce achou que não estava dando certo e resolveu colocar “Vou-me para Unesp”. Ao falar sobre esse escrito, dá destaque á frase “Observando os movimentos”, D. Dirce conta que não se referiu apenas aos movimentos produzidos pelos professores, pelo giz, pelas falas, pelas mãos escrevendo, do apagador, mas também dos movimentos das borboletas, passarinhos, árvores, dos alunos, movimentos que consegue enxergar ao caminhar pela Unesp e ao observar pela janela da sala de aula.

Figura 8 - Poesia “O rio quis abraçar o mar”

“O rio quis abraçar o mar”

Onde: Lição do PEJA, escreveu em sua casa. Quando: Junho de 2010.

Como: Durante a leitura do poema “Água doce do rio” de Tere Penhabe, em uma das aulas do PEJA, D. Dirce lembra-se de família, pois relaciona o momento em que rio desemboca no mar e tem vontade de voltar, mas já é tarde, com situações em que alguém da família vai pra outro lugar e pede a Deus que este seja bem acolhido, ou quando vem visita em sua casa e gosta de receber de braços abertos. Para D. Dirce o rio desejava ser acolhido por outro rio ou pelo mar, do mesmo modo com que as pessoas querem ser bem acolhidas e recebidas por outro alguém. Depois da leitura, a educadora pediu que os educandos escrevessem um poema que falasse do rio. Então D. Dirce manteve os quatro primeiros versos do poema de Tere Penhabe e em seguida cria os próprios versos. Relaciona a mistura da água doce do rio com a água salgada do mar à união de um casal que se apaixona e juntos aprendem a amar. Nos últimos versos, D. Dirce escreve sobre os namorados a contemplar o luar na beira de um rio que se transformou em um grande mar, pois se lembrou da fala de uma amiga, que a família era de Santa Fé onde passa um rio. A amiga disse que era a coisa mais linda sentar na beira do rio e contemplar o luar que refletia nas águas do rio. O filho de D. Dirce ao ler seu poema disse “Nossa D.D, mas você tá poeta mesmo hen! Tá romântica” e agora toda vez que vê a lua cheia fala para o seu filho “a lua dos namorados”.

Figura 9 - Texto “O capinzal extinto”

Figura 10 - Fotos do capinzal extinto

Fonte: Fotografias tiradas por D. Dirce em Rio Claro - SP no inicio dos anos 2000. Material disponibilizado para a pesquisadora.

“O capinzal extinto”

Onde: Lição do PEJA realizada para uma Feira de Ciências. Quando: Maio de 2012.

Como: Em 2012 foi realizada uma feira de ciências com os educandos do PEJA, D. Dirce inicialmente iria desenvolver o seu projeto sobre um xarope caseiro feito de cebola e mel, mas depois de um tempo achou melhor fazer uma experiência com fotografias tiradas por ela. Algumas das fotografias eram de um terreno que ficava ao fundo do quintal de sua casa. Neste terreno havia vários pés de bananeira, porém um dia o dono do terreno resolveu cortar e com isso cresceu um capinzal, era um capim parecido com cana-de-açúcar e davam uns pendõezinhos que pareciam grãozinhos de trigo, mas eram sementinhas que os passarinhos comiam. D. Dirce procurou na internet e descobriu que esses passarinhos chamavam-se Estrilda ou bico-de-lacre. E o capinzal ficou extinto neste lugar porque resolveram fazer um condomínio ao fundo de sua casa, acabando assim com a bonita morada dos passarinhos. D. Dirce conta que já viu esse tipo de capim em outros lugares da cidade. Em seu álbum de fotos há três fotografias do fundo do seu quintal, uma com o muro e ao fundo o capim ainda seco, outra com o capim crescendo parecendo cana-de-açúcar e por fim com os passarinhos. E essa foi a inspiração para a sua produção escrita.

Figura 11 - Poesia “A garça”

Fonte: Arquivos D. Dirce. Material disponibilizado para a pesquisadora.

Figura 12 - Fotografia da garça

Fonte: Fotografia tirada por D. Dirce em Águas de São Pedro - SP em 2011. Material disponibilizado para a pesquisadora.

“A garça”

Onde: Lição do PEJA realizada para a Feira de Ciências, mas escreveu em sua casa. Quando: Julho de 2012.

Como: D. Dirce sempre gostou de garça, na lagoa próxima a sua casa de infância às vezes aparecia uma ou outra garça. Em sua casa também tinha uma garça empalhada que seu irmão matou na espingarda, e D. Dirce perguntava para a sua mãe por quea garça da sua casa ficava quietinha e a outra voava, a mãe respondia que não voava porque estava morta, mas D. Dirce conta que parecia viva. Em um dos passeios realizados pelo PROFIT na cidade de Águas de São Pedro em 2011, D. Dirce viu uma garça descendo na lagoa com as asas bem abertas, mas o ônibus já estava saindo, então D. Dirce falou “eu vou lá” e conseguiu registrar um lindo momento com sua maquina fotográfica, “que gostoso ser bióloga e fotógrafa por um dia”. D. Dirce também pesquisou algumas características sobre a garça em livros e no dicionário. As memórias das garças da infância e a fotografia de uma linda garça com as asas abertas pousando na lagoa motivou D. Dirce a escrever.

Figura 13 - Poesia “O trinar dos passarinhos”

“O trinar dos passarinhos”

Onde: Fez em sua casa quando estava acamada, e também utilizou para a exposição da Feira de Ciências.

Quando: Julho de 2012.

Como: D. Dirce sempre conviveu com passarinhos, na casa de sua infância tinha os passarinhos que os irmãos caçavam que ficavam presos, os passarinhos que desciam e subiam em uma lagoa próxima e também os passarinhos da botânica da Unesp da rua 10. Em sua casa atual D. Dirce começou a observar os passarinhos que ficavam no fio do poste da rua e que desciam para picar o gramado de sua casa. Depois passou a dar farelo de pão e água em uma vasilha de barro, então muitos pássaros (pardais, sabiás, bem-te- vis, rolinhas) ficam cortando o céu de um lado para o outro e não vão embora até D. Dirce jogar o farelo de pão para eles. D. Dirce gosta muito de acordar e ouvir o canto dos pássaros, então decidiu escrever como vê os passarinhos. Para o nome do poema D. Dirce lembrou-se de uma mensagem que leu no livro “Mananciais no Deserto” que fala sobre um navio que transportava 36 mil aves de um continente para outro, os pássaros, a maioria canários, estavam em silêncio, mas no terceiro dia de viagem começou uma forte tempestade e os passageiros ficaram aterrorizados, a medida que a tempestade foi aumentando, os pássaros começaram a cantar, até que os 36 mil se pôs a trinar. Nessa mensagem D. Dirce descobriu a palavra trinar e o seu significado, e achou mais bonito nomear o poema de “O trinar dos passarinhos” do que “O cantar dos passarinhos”. Seu olhar sensível aos seres da natureza, em especial os passarinhos, impulsionou a escrita desse poema, que D. Dirce leu na Semana do Idoso realizada pelo PROFIT e viu pessoas com lágrimas nos olhos após a sua leitura.

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