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Escrita e leitura que se tecem Um arquivo em produção produz o que?

3 LEITURA E ESCRITA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

4.2 Escrita e leitura que se tecem Um arquivo em produção produz o que?

Um modo possível de adentrar e organizar o farto material em mãos, por D. Dirce e pelas leituras que busquei e / ou me deparei ao longo deste estudo, foi pensar em eixos temáticos. São eixos temáticos que emergem do próprio material, mas não só; na ato de escolha dos textos para a constituição do que chamamos de Arquivo, outras possibilidades de entrelaçamento, outras tessituras, outros modos de compor vão emergindo.

Os eixos temáticos, quais sejam, práticas da leitura e escrita na infância; leitura e escrita após conhecer o PEJA; seu caderno de registros diversos; livro PEJA e anseio de publicações outras, apresentados e comentados acima em forma de tópicos, foram delineados através das leituras das transcrições das entrevistas (do material coletado), pois há recorrentes passagens em que D. Dirce cita as práticas de escolarização, principalmente as práticas de ler e escrever efetivadas na infância, constituindo então, o primeiro eixo temático. Também são constantes as conversas em que ela aponta as práticas significativas de leitura e escrita, efetivadas principalmente a partir de sua participação no PEJA, e aí apresenta suas leituras/livros preferidos, o início de uma escrita mais significativa/íntima/com valor e sua percepção dessas práticas relacionando sempre com a própria prática, compondo o segundo eixo temático. O terceiro eixo temático aparece quando D. Dirce aponta a importância de passar a limpo/registrar/guardar seus escritos, pois seu caderno de registros diversos é uma forma de deixar uma lembrança sua para os seus filhos. As conversas em torno da sua participação escrita na construção de um livro e anseios de outras publicações, que a apresenta no oficio de autora, compõe o último eixo temático. Em meio a isso, estavam seus escritos, são constantes os apontamentos do seu processo de escrita, da construção dos textos, momento de criação, das histórias e leituras que a inspiraram, e isso ajudou no levantamento dos escritos por ela elaborados, de modo a construir um Arquivo em Produção de sua escrita, como já apresentado.

Ao escolher, junto com D. Dirce oito textos, Infância, Saudade Tamanha!, Mulheres em todos os tempos!, O tempo, Vou-me para Unesp, O rio quis abraçar o mar, O capinzal extinto, A garça, O trinar dos passarinhos, para compor o Arquivo em Produção, os eixos temáticos aparecem interligados/associados as temáticas dos escritos, quais sejam, infância; percepções e vivências enquanto mulher, mãe e dona de casa; experiências de aprendizado e educação; e natureza. Estão interligados/associados, entrecruzados, pois no primeiro escrito, ao falar sobre as práticas na infância, as brincadeiras, passeios, as relações estabelecidas com

os pais, a religiosidade, etc. também aponta a ida à escola; não diz/ não escreve sobre as práticas realizadas na escola, mas este espaço está presente em sua escrita, deixando claro a sua importância na infância. O segundo escrito, diz sobre as fases da vida de D. Dirce e de tantas outras mulheres, quando criança se apresenta meiga, angelical e inocente, na juventude é atraente, bonita, e de uma união passa para a próxima fase de sua vida, ser mãe carinhosa e amorosa, és a rainha do lar, diz também sobre a religiosidade para enfrentar momentos de tristeza e as conversas entre amigas nos momentos de alegria, ao final diz da presença da mulher em todos os acontecimentos, não aponta a presença da mulher na escola ou em espaços de aprendizado/escolarização, mas a partir de nossas conversas, D. Dirce sempre coloca seus esforços para poder frequentar espaços “escolares” e sua dedicação com relação aos estudos, deixando pistas para pensar na importância que tem para D. Dirce a presença de mulheres em ambientes escolares/sociais. No texto, “O tempo” enfatiza e se apresenta feliz pelo tempo dedicado ao aprendizado no PEJA e também agradece aos educadores pelo tempo e oportunidade de aprender o que ainda não aprendeu; e no texto “Vou-me para Unesp” também aponta que a ida à Unesp é para aprender, estudar, escrever e ler junto com os colegas e educadores; se D. Dirce aponta esses textos como sendo significativos em seu processo de escrita, e estes diz respeito ao aprendizado, aos encontros do PEJA, então isso nos remete as práticas de ler e escrever efetivadas após conhecer o projeto - PEJA. Por fim, no texto “O rio quis abraçar o mar” estabelece uma relação entre o desembocar do rio no mar com a união de um casal, metaforizando acontecimentos da vida com os da natureza. Em “O capinzal extinto” escreve sobre a alegria em ter/ver os passarinhos no terreno ao fundo do seu quintal e expressa sua preocupação em relação à nova morado dos pássaros, já que estes perderam o seu lar depois da construção de um condomínio no terreno; para escrever esse texto pesquisou na internet o nome dos pássaros, o que nos alude sobre sua preocupação com os estudos/pesquisa/atualização/informação. No texto “A garça” apresenta toda a sua admiração por garças, o que levou também a outras pesquisas sobre as características dessa ave. E em “O trinar dos passarinhos” escreve sobre a alegria de acordar com o canto dos pássaros e seu contentamento em tê-los em seu quintal para alimentá-los com água e farelo de pão; no título desse texto a palavra “trinar” é sinônimo da palavra “cantar”, em que D. Dirce encontrou ao ler um livro e procurou o significado no dicionário, apontando nas entrelinhas mais uma vez a importância da leitura e da pesquisa. Nesses últimos escritos, D. Dirce se apresenta enquanto amante da natureza e uma pessoa de olhar sensível.

Os temas de seus escritos e os eixos temáticos delineados no material coletado junto a D. Dirce, fazem referência aos acontecimentos marcantes do passado e presente de sua vida, o que relaciono, me remete, à pesquisa de Bosi (2007). Assim, um outro elemento aqui emerge: o entrelaçamento presente-passado, a memória é a conexão entre a prática de hoje, os motivos de hoje...ou de ontem?

A partir dos estudos de Henri Bergson, sobre a memória enquanto conservação total do passado, Bosi (2007) apresenta duas formas da memória, de um lado, a memória-hábito, a memória dos mecanismos motores, que diz respeito a um processo que se adquire através das exigências da socialização, um exercício praticado até a fixação que se transforma em hábito, como por exemplo: comer, escrever, dirigir um automóvel, etc. muitas vezes essas ações sobre as coisas são realizadas pelo corpo automaticamente, pois o corpo guarda esquemas de comportamento. “A memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural” (BOSI, 2007, p. 49). De outro lado, a imagem-lembrança faz referência a um momento da vida que é único, definido, singular, que não se repete, irreversível, tem um caráter evocativo e aparece por meio da memória. “Sonho e poesia são, tantas vezes, feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a que Bergson não hesitará em dar o nome de ‘inconsciente’” (BOSI, 2007, p. 49). Nas pesquisas de Bergson, toda lembrança “vive” em estado latente, ou seja, no inconsciente, antes de ser atualizada pelo consciente. “[...] o papel da consciência, quando solicitada a deliberar, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz [...] É precisamente nesse reino de sombras que se deposita o tesouro da memória” (BOSI, 2007, p. 52).

O método introspectivo de Bergson, seguindo Bosi (2007), leva a uma reflexão da memória enquanto uma subjetividade livre e uma conservação espiritual do passado, não há em seus estudos relações entre os sujeitos que lembram e as coisas lembradas e nenhum tratamento da memória como fenômeno social. Bosi (2007) encontra nos estudos do sociólogo Maurice Halbwachs as lacunas deixadas por Bergson. Ao estudar a memória pela via da realidade interpessoal das instituições sociais, e não restrita ao mundo da pessoa (como por exemplo, corpo e espírito) Halbwachs modifica e ou rejeita os resultados de Bergson. Para Halbwachs a memória depende do relacionamento do sujeito com os grupos de convivência (família, trabalho, escola, igreja, classe social), e se lembramos de algo é porque alguma situação do presente nos fez lembrar.

O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos parece a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 2007, p. 55).

Halbwachs liga a memória do sujeito à memória do grupo, e a memória do grupo à memória coletiva de cada sociedade, sendo assim até as imagens dos sonhos são determinações do presente, contradizendo a lembrança apresentada por Bergson como conservação total do passado, pois isso só seria possível se não houvesse alterações no ambiente que não atingissem a memória, o que não acontece. “O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural a imagem do sonho, a imagem lembrada e as imagens da vigília atual” (BOSI, 2007, p. 56).

Para Bosi (2007), a dualidade entre os pressupostos sobre a memória faz com que seja complexo saber qual é a forma predominante de memória do sujeito, então, a melhor forma de saber como a pessoa lembra é através da narração da própria vida pelo sujeito.

Ao conversar com D. Dirce sobre suas práticas de ler e escrever efetivadas em seu cotidiano, ela se lembra de momentos do passado a partir de situações do presente. Ao falar/contar sobre as temáticas ou passagens de seus escritos, remete também aos espaços frequentados na infância (a própria casa, o bairro, a rua, a lagoa próxima, a chácara do vizinho, a faculdade, a escola); aos espaços frequentados enquanto mulher (PEJA, PROFIT, as aulas de croché, Igreja, a cidade, etc.); às pessoas (mãe, pai, irmãos, sobrinhos, tias, avós, marido, filhos e colegas); aos objetos (caderno de registros diversos, fotografias, cartões, cartas, livros), aos sons (o cantar dos pássaros, as músicas), etc. e esses espaços, pessoas, objetos e sons são refeitos, repensados e reconstruídos por meio imagens e ideias do presente, de nossas conversas, da leitura individual ou conjunta de seus escritos, da leitura de trechos de livros, etc. D. Dirce (re)cria as situações vividas no passado consultando os materiais diversos do presente e/ou do passado (livros, fotografias...) e através de sua própria produção escrita, de seus textos. Poderia dizer que tem na escrita a possibilidade de uma experiência - aquela

que forma, deforma, transforma? Que se abre a espaços inusitados de invenção? De constante (re) invenção de si mesma? A experiência da escrita pode ser compreendida como uma “aventura de escrever” (CAMARGO; AGUIAR, 2004) que se faz presente e necessária no cotidiano. Um recurso inventivo e criativo de linguagem utilizado por D. Dirce que reflete a inventividade de seus modos de vida. Os diferentes modos de registros, entendidos como práticas culturais manifestam conhecimentos e saberes sociais representativos das noções que os sujeitos têm de si e do mundo que os rodeia.

Além de contar sua própria vida, D. Dirce através de sua escrita também nos diz sobre sua subjetividade e sobre a leitura que faz de si e do seu entorno. Foucault (1992) aponta a escrita de si como uma exposição daquele que escreve/ dar a ver a si mesmo; desta forma através dos materiais escritos D. Dirce se faz ver para si e para o outro. E seu caderno de registros diversos se estabelece como forma de constituição de si, não só como um suporte de memória, mas como um material para ler, reler e conversar consigo mesmo e com outros.

A escrita é constituinte de D. Dirce que faz de sua vida, obras. Independente da forma e tema, seus textos trazem momentos, acontecimentos vividos, são obras de experiências singulares, prática efetiva de estar no mundo, portanto os modos de se apresentar beira o que temos buscado como uma escrita autobiográfica.

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