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2 A EMERGÊNCIA DO DIREITO À VERDADE

2.5 Direito à verdade e a reordenação do papel da vítima

Conforme apontado na seção anterior, o direito à verdade foi reconhecido inicialmente enquanto direito individual, no contexto de reparação das vítimas. Portanto, para análise do direito à verdade, é essencial compreender-se o papel exercido por elas, pois ocupam um lugar central nas discussões em torno do assunto.

Ao longo do curso da história, o papel das vítimas nos sistemas legais sofreu modificações, algumas vezes adquirindo centralidade e outras vezes sendo meramente secundário. Conforme aponta M. Cherif Bassiouni, os direitos das vítimas foram marginalizados com a centralização da administração da justiça nas mãos do estado.108 De fato, durante o período em que a justiça tinha um caráter privatista, as vítimas assumiam um papel central, que entretanto, foi modificado quando o monopólio da força e da justiça passou a pertencer ao estado.

Juntamente com a própria ideia de estado, como detentor do monopólio do poder, nasceu o conceito de jurisdição estatal. Assim, a jurisdição encerra a ideia de substitutividade ao impor a vontade coercitiva do estado a partir do seu poder de

imperium.109 Ao tornar-se público, o processo retirou a vítima do centro desse processo. Essa perda de espaço foi ainda mais contundente na esfera da responsabilidade penal, onde o próprio estado é ao mesmo tempo julgador e acusador. Com efeito, a partir da publicização do processo a vítima passou a ser mera expectante, não sendo-lhe facultado exercer qualquer tipo de influência sobrea decisão final ou no processo como um todo.

Só no final do século XIX é que as vítimas passaram a novamente ganhar espaço, a partir dos questionamentos a respeito da justiça retributiva. Surgiram, então, num movimento reflexo as teorias em favor de uma justiça com caráter restaurativo. A justiça restaurativa parte da visão de que há uma ruptura das relações entre a vítima e o autor no momento da agressão. Com isso, procura-se modificar essa dinâmica, reestabelecendo o balanço das relações, utilizando-se métodos de reconciliação e mediação.

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BASSIOUNI, M. Cherif. International Recognition of Victims Rights.In: Human Rights Law Review,62, 2006, p. 208.

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Apesar dessa substituição da justiça privada pelo estado, em alguns países admiti-se que o julgamento seja feito por particulares através por exemplo do tribunal composto por representantes da sociedade. Essa tradição esta presente sobretudo nos países de common law, onde a competência dos tribunais do júri é alargada. Ainda sim permanece o caráter público do processo, que é conduzido pelo estado.

A revalorização do papel da vítima é reflexo não apenas das novas teorias acerca da justiça e da solução de conflitos, mas também das grandes perdas humanas ocorridas nas duas grandes guerras, que chamam a atenção para a necessidade de garantir mecanismos de reparação. O julgamento de Eichmann é paradigmático do sentido de integrar as vítimas no processo. A partir de então a vítima passou a ter maior participação no julgamento de crimes graves. Nesse sentido, o próprio Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, conta com inúmeras previsões que asseguram os interesses das vítimas no processo. Assim, a medida em que a responsabilização individual pelas violações de direitos humanos ganha força, passa-se também a atribuir maior peso ao papel das vítimas.

Portanto, o papel desempenhado pela vítima passa a ganhar destaque tanto no plano internacional, quanto no plano interno. No plano interno, as teorias mais modernas de direito penal e processual penal preocupam-se não apenas com o acusado e com a sanção a ele imposta, mas com os danos causados à vítima. No plano internacional, a vítima também passa a ter um papel proeminente na análise de crimes internacionais e contra a humanidade. Aponta o Secretário Geral da ONU que é necessário assegurar-se a centralidade das vítimas ao se projetarem os processo e mecanismos transicionais.110

Partindo-se desse ponto de vista, as comissões da verdade, enquanto mecanismos da justiça de transição, tornam-se um importante fórum de participação das vítimas. Essa participação ativa, simboliza por um lado uma espécie de catarse. Por outro lado, possibilita a reconstrução dos eventos, servindo como material essencial para o reconhecimento oficial das violações perpetradas.

Ao se ouvirem as diversas vozes, é possível traçar um panorama acerca do período vivido. Conforme apontado pelo ICTJ, ao se colocar foco sobre a violação de sofrida, permite-se maior objetividade política. Isso porque para ocupar a qualidade de vítima é imprescindível a experiência da violação e independente de qual lado estivesse ocupando durante o conflito.111De maneira que a importância adquirida pelas vítimas nos processos transicionais caminha paralelamente ao reconhecimento do direito à verdade.

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A. Guiding Principles

6. Ensure the centrality of victims in the design and implementation of transitional justice

processes and mechanisms. ONU. Secretary General. Guidance Note -United Nations Approach to

Transitional Justice -2010.

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“The focus on having suffered a human rights violation allows political objectivity, because a person is a victim if he or she experienced a violation regardless of what “side” he or she fought on in the conflict.” ICTJ. Unfulfilled Expectations: Victims’ Perceptions of Justice and Reparations in Timor-Leste.2010, p. 12. Disponível em: <http://www.ictj.org/sites/default/files/ICTJ-TimorLeste-Unfulfilled-Expectations-2010- English.pdf> Acesso em: 05.09.2014.

Nesse sentido, as comissões da verdade exercem um papel essencial, na reordenação do papel exercido por elas, pois permite-lhes que sejam ouvidas e participem da narração histórica.