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2 A EMERGÊNCIA DO DIREITO À VERDADE

2.6 Verdade, memória e o formação de identidades

O exercício da memória é de fundamental importância para o estudo do direito à verdade. A partir do experiência individual e da retomada da trajetória das vítimas e familiares, forma-se uma memória coletiva, que reflete as diferentes forças existentes na sociedades que enfrentaram períodos de graves violações de direitos humanos.

O direito à verdade e o direito à memória estão intimamente relacionados. O direito à memória implica a necessidade que se tem de refletir sobre o passado.112 É a garantia de que a verdade insculpida no passado será preservada e trazida à luz do debate público. O direito à verdade é, portanto, pressuposto necessário para o exercício do direito à memória, já que a reflexão sobre o passado só é possível - só é dotada de sentido - quando feita a partir do conhecimento dos fatos. O direito à verdade, assim, diz respeito à revelação e elucidação dos fatos. A partir daí é possível a construção de uma memória coletiva. Assim, verdade e memória se entrelaçam em uma relação de sinergia. O direito à memória implica assegurar que os fatos e acontecimentos não sejam simplesmente esquecidos ou ocultados. Tal como o direito à verdade, também a memória pode ser retratada em termos individuais ou coletivos, sendo que ambas têm uma relação de influência recíproca. A memória individual é reflexo do testemunho subjetivo, é a lembrança pessoal. A memória coletiva, por seu turno, é a memória no plural, reflete a história de um povo, de uma comunidade, da conjunção das diferentes narrativas e vozes.

O direito à memória se consubstancia em diversos mecanismos de preservação das narrativas. Assim, a edição de relatos escritos, a preservação de espaços da memória, museus, registros midiáticos e outros recursos permitem que essa memória seja mantida.113

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MENDONÇA, Andrey Borges de. O direito à memória: uma análise de seu conteúdo e efetividade no

contexto brasileiro. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito) – Departamento de Direito Público,

Universidade Pablo de Olavide, Sevilha, 2009, p. 141.

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O retrato e relevância desses mecanismos revela-se, por exemplo, na construção do Arquivo e Museu da Resistência de Timor Leste, instalado na capital Dili, e que tem como objetivo narrar a história da resistência às novas gerações. É não apenas um espaço de memória, mas também de construção da própria identidade timorense.

Através de recursos variados é possível garantir o não esquecimento das experiências vividas individualmente e pela sociedade.

O esquecimento faz parte da natureza humana. Daí a necessidade de se estabelecerem mecanismos para afirmação da memória, pois ela pode facilmente ser apagada pelo esquecimento. Conforme assinala Paolo Rossi:

No caso da historiografia, os processos de rememoração, que a constituem em sua essência mais profunda, parecem guiados por intenções precisas: remediar o esquecimento natural dos seres humanos, atarefados em seu cotidiano presente; conservar e permitir que seja utilizado um grande e rico patrimônio de traduções, instituições e ideias; criar um elo entre diferentes gerações dar lugar a formas de memoria coletiva que podem dizer respeito a pequenas ou grandes comunidades (os tifernantes, os escoceses ou os europeus) ou, até mesmo, a todo o gênero humano.114

O esquecimento pode, por um lado, ocorrer de forma natural como reflexo da natureza humana que escolhe aquilo que deve ser lembrado. Essa seleção é inerente à própria constituição do indivíduo, que não sendo capaz de armazenar todas as informações e experiências vividas, se desfaz de partes dela, num processo de seleção natural. Esse processo diz respeito ao ser subjetivo e à memória individual. Por outro lado, o esquecimento também pode fazer parte de uma política do esquecimento, em uma tentativa de anular a memória coletiva e apagar as diversas vozes. Esquecimento, nesse aspecto, assemelha-se à ocultação. O esquecimento como escolha política, passa igualmente por uma seleção. Mas, o recorte que se faz leva em conta elementos de política de estado e a afirmação de uma ideologia.

Há, portanto, um abismo que separa o esquecimento natural do esquecimento imposto enquanto escolha política. O primeiro é reflexo da própria constituição humana e ocorre na esfera individual. O esquecimento enquanto escolha política é a ocultação deliberada dos acontecimentos. É o apagar dos fatos e por isso pode servir como instrumento perverso de manipulação, a favor de determinada ideologia. Com efeito, a seletividade dos fatos permite a dominação através da formação de uma falsa consciência, ocultando, assim, a realidade.

Além disso, a memória permite que se construa um senso de identidade, a partir da escolha dos fatos a serem valorizados e cultuados. As narrativas comuns levam a um

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senso de proximidade entre os indivíduos. Para dialogar com Zygmunt Bauman: “a ideia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia”.115De maneira que a verdade e a memória, tornam-se eixos fundamentais na construção de identidades, ao permitir o reconhecimento de si no outro. Com efeito, a construção da identidade toma por base os elementos comuns, bem como as lutas históricas, transformando-os em uma narrativa integradora da sociedade.

A partir dessa visão é possível compreender porque a política de estado timorense busca a construção de sua identidade justamente a partir da luta da resistência. A valorização desse movimento imprime uma identidade comum a uma sociedade marcada pela segmentariedade. Em sentido oposto, a Indonésia absteve-se de um amplo debate público a respeito do período de dominação do território timorense e das violações de direito humanos ocorridas nas ilhas periféricas do arquipélago. Com efeito, as violações cometidas em Timor-Leste foram relegadas como um problema do novo país e não como uma mancha na história da sociedade indonésia. De maneira que a Indonésia adotou uma política do esquecimento, não apenas por não garantir a responsabilização penal dos mandantes, mas também por não incorporar os eventos sombrios de sua historia em sua própria narrativa e no debate publico.

A política do esquecimento é também o silenciar das experiências individuais, que compõem a memória coletiva. O direito à memória, portanto, não se traduz apenas na retomada de experiências coletivas, mas também de experiências individuais, que foram silenciadas, ou esquecidas em virtude da política do esquecimento. Há uma tensão permanente entre lembrar e esquecer. A partir dessa tensão emerge a necessidade de garantir mecanismos de preservação da história e da memória. O estudo do passado e dos acontecimento sempre foi objeto de estudo dos historiadores, entretanto ao se reconhecer importância da preservação da memória também no campo dos direitos humanos, essa memória transcende o campo da historiografia. O reconhecimento da memória e da verdade como um direito refletem o fato de que esse elementos são essenciais ao desenvolvimento do indivíduos enquanto seres humanos e da coletividade a que pertencem.

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O reconhecimento do direito à memória não se esgota na narrativa estatal dos acontecimentos, na revelação dos fatos. Uma política de memória deve considerar os males e a violência infligidas às vítimas.116 Nesse sentido, engendra em si a narrativa da experiência individual, a narrativa da subjetividade, ao permitir que as próprias vítimas sejam ouvidas.

Mas, resta em aberto a indagação em torno de como essa memória e experiência individuais permitem a construção da memória e da identidade coletivas. Nesse diapasão, questiona-se de que maneira as experiências individuais, formam a base para a construção da memória coletiva. A esse respeito cumpre retomar o pensamento de Paul Ricoeur, para quem entre os dois polos da memória individual e da memória coletiva há a memória em relação ao próximo. Essa dimensão intermediária permite que as narrativas individuais, sejam trocadas com aqueles indivíduos mais próximos, como amigos e familiares. Assim, afirma que: “a ligação com os próximos corta transversal e eletivamente tanto as relações de filiação e do conjugalidade quando as relações sociais dispersas segundo suas formas múltiplas de pertencimento ou as ordens respectivas de grandeza.”117 Portanto, é na relação com o próximo, que se estabelece o elo de ligação entre a memória individual e a memória coletiva.

A rememoração individual utiliza-se da linguagem, cuja estrutura é publica. A esse respeito, cumpre mais uma vez retomar o pensamento de Hannah Arendt, para quem o debate público deve ser caracterizado pela atribuição verdadeira de significados. Nesse sentido, a verdade factual, informa o debate público. Assim, a passagem da memória individual para a memória coletiva, é dotada de uma estrutura semelhante à passagem do direito à verdade enquanto direito individual, para o direito à verdade em sua dimensão coletiva. O estabelecimento de uma linguagem comum dos fatos, que permita o debate, passa pela rememoração de experiências individuais que tornam-se coletivas, a partir da relação estabelecida com os indivíduos próximos.

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GAUER, Ruth M. Chittó, SAAVEDRA, Giovani Agostini, GAUER, Gabriel J. Chittó. Memória, punição

e justiça: uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011, p. 46.

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