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2 A EMERGÊNCIA DO DIREITO À VERDADE

2.3 O direito à verdade no contexto da justiça de transição

2.3.1 As origens da justiça de transição

As transições políticas carregam consigo uma necessidade inerente de transformação da ordem jurídica, a fim de que esta possa garantir a sobrevivência do novo regime escolhido. A mudança de regime político pode tomar sentidos variados abrindo-se a possibilidade de instalação das mais variadas formas de organização política. Portanto, a queda de um regime autoritário e sua substituição por uma democracia é apenas um dos possíveis cenários de uma transição política. Ademais, a caracterização de um regime político, na prática, pode muitas vezes não ser evidente, já que comumente regimes autoritários transvestem-se de uma falsa legitimidade popular. Mas, independentemente da caracterização do regime anterior e do regime que o substitui, a modificação da organização política, reflete uma mudança na ordem jurídica e de suas instituições.

Portanto, em uma acepção genérica, justiça de transição não necessariamente tipifica o processo de abandono de regime autoritário em nome de um novo regime democrático.

Entretanto, a terminologia justiça de transição é normalmente empregada na literatura em seu sentido mais estrito: caracterizando a passagem do regime autoritário ao regime democrático ou o fim da fase de conflitos, bem como as implicações advindas desses processos. Portanto, a esse respeito é importante ressaltar que a justiça de transição em sua concepção estrita abrange tanto contextos de repressão autoritária por parte do governo, como contextos de ruptura social, caracterizada pelo conflito armado. Em ambos os casos a justiça de transição marca o encerramento das tensões e a passagem a uma nova etapa nas relações que se estabelecem. Contudo, conforme observa Gonzáles:

Essa distinção baseada na observação de determinada forma de autoritarismo ou de conflito interno, assim como outras generalizaçãos, tem um valor limitado. Há muitos casos híbridos, porque conflitos armados internos muitas vezes resultam da escalada de tensões causadas por um regime opressor…37

O autoritarismo, tal como qualquer outro regime político, está sempre resguardado por normas de conduta que garantem a manutenção do sistema. No momento em que essa forma de organização política é abandonada e passa-se à democracia é preciso haver também uma transformação por completo do sistema jurídico, de maneira a garantir o efetivo funcionamento de mecanismos democráticos. Essa transformação não se faz espontaneamente. É preciso um processo – muitas vezes longo – a fim de se desconstruir o ordenamento jurídico anterior até que um novo sistema seja implementado. Daí a necessidade de transformação do próprio direito diante dos processos de democratização. Esses processos engendram em si não apenas a reconstrução das estruturas políticas, mas também de uma mudança social e cultural muito mais abrangente.

Por seu turno, o término da fase de conflito traz consigo também a necessidade de reestruturação das instituições, que frequentemente encontram-se destruídas. Assim, mesmo nos casos de pós-conflito a necessidade de erigir novas bases institucionais, que

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“However, this distinction is based on observations of a certain type of authoritarian regime and eternal conflict, and, like any generalization, it has limited value. There are many mixed cases, because internal armed conflicts sometimes result from escalating tensions caused by an oppressive regime...” GONZÁLES, Eduardo. Set to fail? Assessing tendencies in Truth Commissions Created after Violent Conflict. In: ICTJ.

Challenging the Conventional: Can truth Commissions Strengthen Peace Processes? Jun 2014, tradução

livre. Disponível em: <http://www.ictj.org/publication/challenging-conventional-can-truth-commissions- strengthen-peace-processes> Acesso em: 06.12.2014.

sejam capaz de absorver os anseios dos diferentes grupos políticos orienta o planejamento dos mecanismos da justiça de transição.

A análise dessas rupturas no ordenamento e das consequências delas advindas traduz-se, portanto, em objeto de estudo do que se convencionou chamar justiça de

transição. A justiça de transição caracteriza-se por um processo de abandono dos

paradigmas anteriores, que tenham ocasionado violações de direitos humanos e de início de uma nova fase na relação do estado com os indivíduos. É o laço que une o passado repressor à almejada democracia.

Os processos transicionais são tão diversos quanto os regimes e sociedades existentes. Cada processo de transição é marcado por uma história completamente distinta. Ao mesmo tempo, o conceito de justiça de transição permite aproximar essas realidades distantes, podendo-se falar em traços comuns que marcam os processos de democratização. Mesmo diante da dificuldade em se estabelecer com precisão em que se traduz a justiça de transição, justamente por abarcar realidades tão divergentes, é possível afirmar que a justiça de transição é a maneira como esse processo de democratização e de mudança das estruturas estatais é conduzido.

O conceito de justiça de transição é definido pelo Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ) como: “um conjunto de abordagens e mecanismos destinados a endereçar a questão das violações maciças de direitos humanos ocorridos durante um período de repressão ou conflito”.38 Em relatório endereçado ao Conselho de Segurança da ONU, o Secretário Geral definiu justiça de transição como: “toda a gama de processos e mecanismos associados a uma tentativa da sociedade para chegar a termos com um legado de abusos cometidos no passado em grande escala, a fim de garantir a prestação de contas, servir a justiça e a reconciliação”.39 A justiça de transição assinala, portanto, essa passagem entre um regime de violência para uma nova etapa de reconstrução dos alicerces da sociedade, que pode ser levada a cabo de maneiras diversas. É justamente essa variedade

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“Transitional Justice refers to a set of approaches and mechanisms designed to address the situation of massive violations of human rights in the Wake of repressive rule or conflict”. ICTJ. Transitional Justice in

the United Nations Human Rights Council. jun de 2011, p. 2, tradução livre. Disponível em:

<http://www.ictj.org/publication/transitional-justice-united-nations-human-rights-council> Acesso em: 01.09.2014.

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“Comprises the full range of processes and mechanisms associated with a society’s attempts to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation” ONU. Secretary General. Report on the Rule of Law and Transitional Justice in Conflict and

Post-conflict Societies. Ago de 2004. Disponível em: <http://www.unrol.org/files/2004%20report.pdf>Acesso em 01.09.2014.

de mecanismos que tem trazido o estudo da justiça de transição para o centro das discussões de direito internacional e direitos humanos.

Nesse sentido, as comissões da verdade são fio condutores desses processos de transição – são instrumentos dentro de um contexto maior. A enorme diferença nos processos de transição também se traduz em uma grande discrepância entre as comissões da verdade, seu funcionamento, objetivos e resultados. Na mesma medida em que é difícil chegar a uma única definição de justiça de transição, a dificuldade também se estende à conceituação de comissão da verdade.

Compreender em que consiste uma comissão da verdade e o trabalho que ela executa, passa preliminarmente por sua contextualização no âmbito da justiça de transição, que é tão complexo quanto a mudança de regime político que a caracteriza. Jon Elster identifica processos transicionais já na restauração da democracia ateniense, em 411 e 406 a.c., bem como na restauração monárquica da dinastia Bourbon, na França do século XIX.40 Assim, enfatiza que processos transicionais não são exclusividade da era moderna e nem se limitam a regimes democráticos. A mudança de regime político não é um fenômeno exclusivo da contemporaneidade. Com efeito, a história é repleta em exemplos de quedas de regimes políticos e de sua substituição por novos. Mas o olhar e o estudo dessas transições, sob a perspectiva dos direitos humanos, é muito mais recente.

É possível afirmar que o estudo da justiça de transição tem seu embrião no período após a I Guerra Mundial. A partir de então, o tema foi ganhando força, com as sucessivas redemocratizações ao redor do mundo como: A Revolução dos Cravos, em Portugal em 1974; a redemocratização da América Latina no final dos anos 80; o fim do

Apartheid na África do Sul, em 1994 e posteriormente com o fim do regime de Suharto na

Indonésia, em 1998. De maneira que a justiça de transição constituiu-se como ramo de estudo cada vez mais complexo, diante das mudanças na política global.

Para Ruti Teitel a genealogia da justiça de transição pode ser divida em três períodos: um que vai do fim da II Guerra Mundial ao início da Guerra Fria, um segundo período que se inicia logo após o fim da Guerra Fria, no fim dos anos 80, seguido do terceiro período, em que a noção de justiça de transição está associada ao que chama de

normalização da justiça de transição, que passa a ser um instituto não do estado

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ELSTER, Jon. Transitional Justice in Historical Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. I.

excepcional, mas sim a regra geral.41 O primeiro período ficou marcado por uma construção nacional a partir de uma visão internacional com os julgamentos de Nuremberg. O segundo período está associado a soluções que envolvem a comunidade local e as vítimas, enquanto que o primeiro período tinha por foco a responsabilização dos líderes políticos. No terceiro período, assevera Teitel, a justiça de transição deixa de ser uma exceção e passa a estar inserida no contexto de estado estáveis. É isso que chama de normalização.

A partir dessa periodização é possível ter uma visão geral da evolução do tema ao mesmo tempo em que se coloca em perspectiva a transição ocorrida em Timor Leste. O fim da dominação indonésia e a instauração de um novo regime, deram-se no contexto de desmilitarização dos regimes apoiados pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria em contraposição à ameaça comunista, refletindo, portanto, o segundo período a que se refere a Ruti Teitel. À retirada das tropas indonésias seguiu-se a construção de um novo estado (statebuilding) timorense, marcado pela influência internacional.

O segundo período na genealogia da justiça de transição foi marcado, sobretudo, pelo dilema entre responsabilização penal e a coesão social trazida pelo estado de direito. De fato, essa dicotomia permanece até hoje no seio das discussões em torno da democracia em Timor-Leste. É possível compreender melhor essa tensão ao se observar que não se trata de um fenômeno isolado, mas reflete uma problemática corrente quando se coloca em foco a teoria e prática da justiça de transição. Assim, é sempre pertinente imprimir um olhar sobre o todo, sobre as próprias limitações da uma justiça de transição a fim de possibilitar uma melhor compreensão dos processos locais.