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CAPÍTULO 3. O ESTADO DA ARTE DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR E A

3.3.1. O Direito Achado na Rua

Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas (LYRA FILHO, 2003, p. 86).

O Direito Achado na Rua é uma vertente crítica do pensamento jurídico que está "de modo incindível, colocado ao percurso de Roberto Lyra Filho72" (SOUZA JÚNIOR, 2015, p. 8) e é construção do seu movimento de crítica jurídica que

procurava construir uma base epistemológica para a formulação de uma nova construção de sentido em que o Direito fosse entendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade. Esta era sua definição de Direito (SOUZA JÚNIOR, 2009, p. 11).

Inspirado na Teoria Marxista e no Humanismo Dialético, Roberto Lyra Filho contesta o monismo jurídico e o monopólio da legitimidade do Direito pelo Estado revelando a existência de um Direito e de um antidireito ao afirmar que

a lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção [...] também não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós nos deixaríamos embrulhar nos "pacotes" legislativos, ditados pela simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado

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Roberto Lyra Filho (1927-1986), formado em Língua e Literatura Inglesas no ano de 1942, estudou também francês, alemão, italiano e russo. Em 1949, bacharelou-se em Direito. Obteve seu doutorado em 1966, especializando-se em Criminologia e Direito Criminal. Foi membro da OAB. Foi professor titular de Filosofia e Sociologia Jurídica da Universidade de Brasília (UNB).

69 pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido (LYRA FILHO, 2003, p. 8).

Acerca do que é "O Direito Achado na Rua" e sua origem, Jacques Távora Alfonsin, em entrevista concedida à Revista IHU Unisinos, afirma que se trata de um Direito plural e o exemplifica com "os antigos quilombos dos negros fugidos da escravidão, igualmente, constituíram-se em formas visíveis de um direito existente, válido e eficaz, a favor da liberdade, completamente estranho e até oposto ao direito vigente no Estado" (ALFONSIN, 2009, p. 4-6).

Consultado sobre a origem do Direito Achado na Rua, José Geraldo de Souza Júnior, que conviveu com Roberto Lyra Filho na UNB e integrou o seu grupo de estudos, sendo um dos continuadores desse trabalho no Brasil, recorda que os anos 70, quando o Direito Achado na Rua ganhou visibilidade, foram anos em que a crítica jurídica repercutiu em vários lugares do mundo, como, por exemplo, na Europa, com os movimentos de uso alternativo do Direito; na França, com o "Critique de Droit;" o criticismo nos Estados Unidos e o movimento do direito alternativo no Brasil, do qual Lyra Filho fazia parte. José Geraldo explica:

[...] na UNB um professor que fazia parte desta reflexão crítica, Roberto Lyra filho, lançou um manifesto em 1978, mesmo ano em que Graboble e o grupo Critique de Droit também lançavam seu manifesto. Lyra Filho falava do direito sem dogmas, buscando uma leitura mais problematizada. [...] Lyra queria aplicar no campo do direito a extensão da metáfora e procurar o direito na rua. Desta origem do direito achado na rua está em causa o movimento de crítica jurídica que procurava construir uma base epistemológica para a formulação de uma nova construção de sentido em que o direito, segundo Lyra Filho, fosse entendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade. Esta era sua definição de Direito (SOUZA JÚNIOR, 2009, p. 11).

A concepção do Direito Achado na Rua como um movimento teórico-político de afirmação de um modo específico de fazer o Direito, característica que muito se aproxima da AJP pelo seu modo próprio de pensar e de (des)construir o Direito, é abordada por Roberto Efrem Filho nos seguintes termos:

O direito achado na rua constituiu um movimento teórico - inexoravelmente político - de afirmação de um estilo específico de fazer o direito, aquele conduzido pelos movimentos sociais em meio às suas lutas por libertação. Isso significa, em outras palavras, que, como o direito achado na rua, os movimentos sociais puderam começar a ser reconhecidos, embora não sem a

70 resistência dos setores conservadores do campo jurídico, como sujeitos coletivos de direito (EFREM FILHO, 2009, p. 18-19).

As décadas de 1980 e de 1990, períodos em que se deu uma das tentativas de redemocratização do Brasil, pós-ditadura civil-militar-empresarial, Lyra Filho contribuiu com a perspectiva crítica do Direito, publicando uma série de obras que visavam "profanar73 o Direito", no sentido de "dessacralizá-lo" e devolvê-lo para o uso comum. Obras, tais como "Para um Direito sem Dogmas" (1980), "O Direito que se ensina errado" (1980), "O que é o Direito?" (1982), "Pesquisa em que Direito" (1984), dentre outras, demonstram isso. Para Roberto Lyra Filho,

o Direito não é estático, algo perfeito e acabado, mas é processo, dentro do processo histórico. É o vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes, mas que se definha nas explorações e opressões que o contradizem, embora acredite que dessas contradições brotarão as novas conquistas (LYRA FILHO, 2003, p. 86).

Após a morte de Roberto Lyra Filho, em 1986, o professor José Geraldo Sousa Júnior deu continuidade ao trabalho iniciado na Universidade de Brasília. Importante destacar nesse processo o projeto de educação à distância do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), cujo programa recebeu o nome de 'O Direito Achado na Rua' e que visava à formação de advogadas/os dos movimentos sociais, comissões de direitos humanos, movimentos sociais populares, organizações não governamentais, professoras, professores e estudantes de Direito que buscavam uma forma crítica de compreensão do fenômeno. Sobre isso vale destacar o depoimento do professor José Geraldo:

Trabalhei com o professor Roberto Lyra Filho na revista "Direito e Avesso" e chegamos a editar três números. Ele era o presidente do Conselho Editorial da revista e eu, diretor. Com sua morte, pensei que, ao invés de dar continuidade à revista, que era muito identificada com a construção editorial de Lyra Filho, o melhor era trabalhar em outro projeto que realizasse o seu programa. Como professor da UNB, propus à universidade, no ano de 1987[...] criar um programa de capacitação jurídica de assessorias populares de movimentos sociais por meio da educação à distância. Buscamos uma construção interdisciplinar que envolvesse o diálogo à luz dessas premissas, do direito como liberdade e a dimensão emancipatória do direito, e chamamos o programa de "O direito achado na rua". Esse curso de capacitação recebeu várias edições e foi reeditado inúmeras vezes, ganhando

73 No sentido agambeano, de negligenciar o sagrado (AGAMBEN, 2007), de desconsiderar o uso para o qual

71 uma atenção muito grande, não só das assessoras jurídicas dos movimentos sociais, mas, surpreendentemente, dos estudantes de direito das escolas brasileiras, que encontraram na proposta uma espécie de alternativa crítica ao estudo formal do direito nos manuais tradicionais (SOUZA JÚNIOR, 2009, p. 11-12).

A narrativa acima tem bastante relevância para a AJP no Brasil, pois a visibilidade do Direito Achado na Rua e seus processos de insurgências são contemporâneos aos processos de organização da AJP e advogadas/os populares no país. As assessorias jurídicas dos movimentos sociais populares que participavam do Programa 'O Direito Achado na Rua', da UNB, sobre as quais narra José Geraldo de Souza Júnior, revelam a relação de proximidade entre o Direito Achado na Rua e a AJP e o quanto este Direito serviu e serve de referência para a AJP em seus processos de construção, organização e prática do Direito.

Do trabalho organizado com a educação jurídica a partir do Direito Achado na Rua, organizações de advogadas e advogados populares cresceram no Brasil, constituindo-se em diversos coletivos, redes e associações. A RENAP, por exemplo, nasceu e cresceu inspirada pelo Direito Achado na Rua e, atualmente, muitas/os pesquisadoras/es deste Direito são advogadas/os populares.

Para Souza Júnior, o Direito Achado na Rua busca ser expressão do processo que reconhece, na prática jurídica dos novos sujeitos coletivos, "a criação de novos direitos, a possibilidade de determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, ainda que contra legem" (SOUZA JÚNIOR, 2011, p. 193).

No mesmo sentido, Alayde Sant’anna afirma que

a práxis sócio-política revela que o Direito nasce das lutas sociais, do desejo permanente de libertação. Manifesta-se, pois ao longo da história, como liberdade conquistada em permanente transformação. É processo, em devir, no processo histórico. Afirmar, contudo, o caráter histórico-dialético do fenômeno jurídico significa adoção de metodologia que permita perceber as várias abordagens possíveis (SANT'ANNA, 1988. p. 31).

Advogada popular e pesquisadora filiada ao pensamento do Direito Achado na Rua, Carlet afirma que "o direito e o sistema judiciário têm de estar abertos às novas condições sociais e à emergência dos novos sujeitos coletivos de direitos" (CARLET, 2010, p. 13). Ao desconfiarem do monismo jurídico e do monopólio estatal como fonte única de juridicidade, o Direito Achado na Rua e o Pluralismo Jurídico rompem, em certa medida, com o Direito Moderno de valores iluministas.

72 Nas palavras de José Geraldo de Souza Júnior o "Direito Achado na Rua" passa a ser uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília para capacitar assessorias jurídicas de movimentos sociais e busca

[...] ser a expressão do processo que reconhece na atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito, a possibilidade de: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra

legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um

projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas (SOUZA JÚNIOR, 2011, p. 193).

A Teoria do Direito Achado na Rua dialoga com a perspectiva do direito insurgente e do pluralismo jurídico, pois, para Lyra Filho, Direito não é algo pronto e acabado, mas "é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas" (LYRA FILHO, 2003, p. 86).

Nessa frequência, o pluralismo jurídico reconhece que o Direito possui múltiplas fontes, além da fonte oficial do Estado, pois, "se o direito é uma manifestação para além do Estado e do texto legal, podem-se apreender diferentes formas de criação jurídica, seja achado na rua, alternativo, insurgente", etc. (RIBAS, 2009, p. 23).

Recorrer ao Direito Achado na Rua e lutar pela construção do Direito na perspectiva defendida por Lyra Filho é uma prática das/os advogadas/os populares em suas assessorias jurídicas a movimentos e organizações populares. Uma forma progressista de atuação ou uma forma de combate ao colonialismo do saber jurídico e seu monopólio, que é centralizador e excludente.

Verifica-se que o processo de semeadura e de germinação do Direito Achado na Rua se deu em terra fértil da academia conjugada com as lutas sociais que buscam a reconstrução da educação, sobretudo da educação jurídica, comprometida com a formação de juristas assessoras/es das lutas populares por direitos, mas também de militantes dos movimentos populares, de professoras/es e estudantes, com o objetivo de fortalecer a concepção crítica do Direito, colocando-o como instrumento de transformação, mas também de ruptura com o direito hegemônico colocado a serviço dos interesses das classes opressoras.

73 O aspecto educativo do Direito Achado na Rua sempre esteve presente nas experiências dos coletivos de AJP que adotam também uma pedagogia com princípios freirianos, precisamente centrada na Pedagogia do Oprimido. Nesse sentido, os atos de assessorar, advogar, aprender e ensinar são perpassados por uma pedagogia que visa, ao mesmo tempo, aprender e ensinar, para libertar-se e libertar as vítimas das opressões e injustiças impostas pelos poderes opressores. Sobre a pedagogia freiriana, chamada de Pedagogia do Oprimido, é que se discorre no tópico seguinte.