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CAPÍTULO 2. RELAÇÃO DA PESQUISADORA COM O TEMA: PELAS TRILHAS DO

2.3. O encontro com a Teologia da Libertação e a consciência das injustiças

As experiências comunitárias de modos de vida coletivos e de espiritualidade popular encontraram-se em certo momento com a espiritualidade das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),42 fundamentada na Teologia da Libertação, quando ainda morava na Região do Sisal. Isso fortaleceu em mim a consciência das injustiças e fui cada vez mais me tornando, também insubmissa, como os povos que me antecederam com resistência e luta naquele lugar, juntando-me, desde cedo, a movimentos populares e coletivos de resistências que lutavam por direitos e contra as injustiças sociais.

41 LIMA, Eduardo. Retirantes II. Capim Grosso, BA: Facebook, 2018. Disponível em:

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=334990776643261&set=pb.100003970248262.-

2207520000.1533390723.&type=3&theater . Acesso em 04/6/2018. Eduardo Lima é um artista plástico baiano, negro, que com as cores fortes de suas tintas e com os seus pincéis, retrata o cotidiano do povo e da cultura nordestina.

42 As CEBs surgiram no Brasil em 1960. São comunidades que reúnem pessoas que têm a mesma fé e moram na

mesma região. Vivem unidas em torno de seus problemas e lutam por melhores condições de vida. Eclesiais porque vinculadas à Igreja e de base porque são pessoas das classes populares do campo e da cidade que se reúnem em torno de uma espiritualidade libertadora e comprometida com a justiça.Disponível em: <file:///C:/Users/mrosa_000/Downloads/livro%20-%20O%20que%20%C3%A9%20cebs%20-

46 Ao me aprofundar no Pensamento Decolonial, tenho percebido o quanto a Teologia da Libertação, base de minha espiritualidade, está relacionada com esse marco teórico, podendo citar, a título de exemplo, a "Filosofia da Libertação" de Enrique Dussel e a relação desse autor com o tema.

"Uma infinidade de expressões, tais como: nova teologia, teologia dos pobres, teologia dos oprimidos, teologia revolucionária, entre outras" (MITIDIERO JÚNIOR, 2008, p. 4) são usadas para se referir à Teologia da Libertação e aos movimentos desencadeados por ela e que, no Brasil e na América Latina, levaram algumas igrejas, não apenas a católica, por meio de alguns de seus integrantes, incluindo mulheres e homens, religiosas/os ou não, ao compromisso com a causa das pessoas injustiçadas e às denúncias das injustiças. Em decorrência desse modo de viver a fé, muitas pessoas foram perseguidas, assassinadas, excomungadas e até excluídas, como foi o caso do Leonardo Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação.

Como diversos eram os nomes utilizados para designar a Teologia da Libertação, diversas também são suas disseminações como, por exemplo, a Teologia Feminista, Teologia Ecológica, Teologia da Terra, etc. A Teologia da Libertação, embora tenha alçado voo com o Concílio Vaticano Segundo (1962-1965), tanto esta Teologia quanto o próprio Concílio Vaticano Segundo, foram resultado de um grande movimento que vinha provocando mudanças da concepção teológica e das práticas eclesiais, inclusive, desencobrindo as históricas opressões da Igreja que legitimaram a violência dos processos de colonização. Pode-se dizer que a Teologia da Libertação pode significar, de algum modo a decolonialidade da fé e do cristianismo, mostrando que a pessoa humana e histórica de Jesus de Nazaré e seu projeto de vida (que teve como consequência a sua condenação à pena de morte, como preso político, condenado pelos poderes de seu tempo, inclusive o poder religioso) nada tem a ver com o projeto messiânico trazido pela Igreja vinda com os colonizadores, apesar de, mesmo naquele tempo, já haver pequenas vozes, como a de Bartolomeu de Las Casas que denunciava isso. Mitidiero Júnior afirma:

A América Latina, mergulhada em um ambiente de miséria e exploração, foi o centro geográfico para o encaminhamento dessa nova teologia. Foi nesse continente que perguntas indigestas mexeram com os dogmas de muitos religiosos. A questão fundamental foi contestar que aquela organização social marcada pela pobreza não estava nos projetos de Deus e que a igreja se mostrava inerte e, muitas vezes, colaborava com a realidade injusta presente no cotidiano dos latino-americanos (MITIDIERO JÚNIOR, 2008, p. 6).

47 Importante frisar que o movimento da Teologia da Libertação não foi o único movimento que denunciou as opressões clericais, as contradições religiosas e as injustiças sociais às quais estavam submetidas o povo empobrecido. Também não foram só os adeptos da Teologia da Libertação que sofreram as retaliações da Igreja e do Estado. Contra os movimentos de "heresia popular", desde a Idade Média (europeia), a mando da Igreja, dos Senhores Feudais e dos Reis, foram decretadas as Cruzadas, com as mais terríveis penas e tipificação penal da heresia como crime. Tais movimentos, ao contrário de serem, como acusados, de desviantes da doutrina ortodoxa, eram movimentos de protestos que aspiravam à democratização radical da vida, como demonstra em sua pesquisa, Silvia Federici:

A heresia era o equivalente à teologia da libertação para o proletariado medieval. Selou um marco às demandas populares de renovação espiritual e justiça social, desafiando em seu apelo a uma verdade superior, tanto a igreja quanto a autoridade secular. A heresia denunciou as hierarquias sociais, a propriedade privada e a acumulação de riquezas, e difundiu entre o povo uma concepção nova e revolucionária de sociedade que, pela primeira vez na Idade Média, redefinia todos os aspectos da vida cotidiana (o trabalho, a propriedade, a reprodução sexual e a situação das mulheres), colocando a questão da emancipação em termos verdadeiramente universais [...] A Igreja, por sua vez usava a acusação de heresia para atacar toda forma de insubordinação social e política [...] A heresia constituía tanto uma crítica às hierarquias sociais e à exploração econômica quanto uma denúncia da corrupção clerical (FEDERICI, 2017, p. 70; 73).

Conhecendo esse outro modo de ser igreja, da perspectiva da Teologia das Libertação, entrei para a vida religiosa e me tornei freira. Nesse tempo, sempre estive nas chamadas ‘comunidades de inserção’, inserida nas periferias de algumas cidades do Brasil, como por exemplo, com as/os moradoras/es do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro; com a juventude camponesa do Piauí e com mulheres "quebradoras de coco", na divisa com o Maranhão e, em Belo Horizonte, no trabalho com a população em situação de rua; as/os catadoras/es de materiais recicláveis e com os sem teto (ocupações urbanas), na luta por moradia. Decidi sair da Congregação religiosa, em 2010 e continuei o trabalho com o povo, em apoio às suas lutas por direitos, como advogada popular. A busca pelo curso de Direito se deu em decorrência dessa trajetória de vida, na tentativa de ter mais ferramentas para instrumentalizar a luta por direitos.

Nesse percurso, conheci a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), da qual continuo fazendo parte. No último ano do Curso de Direito, em 2009, passei a acompanhar a Ocupação Comunidade Dandara, em Belo Horizonte, chegando à

48 ocupação no seu segundo dia de existência. Nesse mesmo ano, ao ser aprovada na prova da OAB-MG, minha primeira petição, juntamente com mais dois companheiros43, também advogados populares, foi na defesa da Ocupação Dandara, assumindo a defesa jurídica até então feita pelo professor Fábio Alves dos Santos que saiu por motivos de saúde. Advogar para a Ocupação-comunidade Dandara e construir com as famílias e movimentos a luta jurídica e política daquela comunidade foi, para mim, a melhor escola de direito.

A conclusão a que chego ao final deste capítulo é que minha relação, enquanto pesquisadora, com o tema deste trabalho passa pelas trilhas do ser nordestina e essas trilhas estão marcadas por diversas formas de lutas, de resistências populares, de experiências de trabalho coletivo, e tudo isso permeado pela cultura popular nordestina da Região do Sisal. Esta cultura é marcada pelos saberes tradicionais da cultura indígena e do povo negro que resistiram à colonização no Nordeste brasileiro, mas também pelas diversas lutas e formas de resistência do povo camponês daquela região. Marcada também pela cultura e espiritualidade popular e pela experiência da migração do povo do campo para as grandes cidades, o que também tive que experimentar com minha família. Minha relação com a AJP se deu como uma espécie de continuidade dessa trajetória que, ao ser relida neste trabalho, com as lentes do Pensamento Decolonial, compreendi que minhas narrativas pelas trilhas do ser nordestina são, também, narrativas decoloniais. Unindo a Bahia com Minas Gerais, como se deu em minha trajetória de vida, relevante trazer Guimarães Rosa para dizer que "o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia" (GUIMARÃES ROSA, 1994, p. 85).

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CAPÍTULO 3. O ESTADO DA ARTE DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR E A