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O direito à educação como direito social

2. SOBRE A EDUCAÇÃO

2.2. DIMENSÕES DO DIREITO À EDUCAÇÃO

2.2.2. O direito à educação como direito social

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BRAMOVICH, Víctor e COURTIS, Christian, El Umbral de la Ciudadanía. El significado de los derechos sociales em el Estado social constitucional, Buenos Aires, Del Puerto, 2006, pp. 8 a 10.

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Como mencionado, não há dúvida de que em relação ao direito à educação prevalece a dimensão social, ou seja, preponderam as obrigações de ação do Estado. No caso brasileiro, isso se explica facilmente diante da realidade econômica e social do país e do panorama jurídico que o constituinte organizou em resposta.

Conforme visto na exposição sobre o pensamento de MARSHALL, a crescente incorporação aos ordenamentos de obrigações estatais positivas tem seu ponto de partida mais emblemático nas lutas de aprimoramento das condições dos trabalhadores da sociedade industrial do século XIX e na percepção de que a aplicação de noções jurídicas típicas dos ordenamentos liberais às relações laborais produzia distorções insustentáveis. Constatou-se que desigualdades materiais e de diferenças de oportunidade obstaculizam a satisfação das necessidades pessoais através unicamente da livre atuação individual no mercado. Isso impele o Estado a modificar seu papel e assumir, direta ou indiretamente, um grande número de obrigações que até então se inseriam exclusivamente na esfera da autonomia privada individual.

Segundo ensinam ABRAMOVICH e COURTIS190, essa modificação supõe um novo modelo normativo, diferente do modelo liberal anterior por (i) caracterizar um direito de grupos e não de indivíduos, em que os direitos dos indivíduos diferem segundo os grupos sociais a que pertençam (empregados, empregadores, mulheres, crianças, indígenas, portadores de deficiências etc.); (ii) constituir um direito de desigualdades, organizando-se a partir da identificação das desigualdades existentes entre os diversos grupos sociais para, então, buscar sua eliminação ou redução; e (iii) achar-se ligado a uma sociologia (ou avaliação sociológica), que lhe serve de instrumento necessário na identificação dos grupos sociais com menores oportunidades, das relações sociais pertinentes a tais grupos, de suas necessidades etc. Essa nova estrutura normativa, que expande os limites de atuação do direito, extravasando o foco no indivíduo, permite compreender os direitos sociais como utilização do poder estatal para atenuar situações de desigualdade material e para equilibrar as oportunidades.

Assim, o direito à educação enquanto direito social (ou eminentemente de caráter social) traduz uma imposição de ação ao Estado quanto à regulação da atividade educacional e quanto ao fornecimento de prestações que possibilitem a todos a

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concretização do direito. No caso brasileiro, conforme ensina SILVA191, este é o sentido a ser extraído da declaração constitucional de que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família”, constante dos artigos 205 e 227. Assim declarando, a Constituição Federal de 1988 determina que o Estado proceda ao aparelhamento suficiente para fornecer serviços educacionais a todos; que amplie, continuamente, as condições para que todos exerçam igualmente o direito; e que todas as normas relacionadas à atividade educacional sejam interpretadas segundo aquela declaração.

CANOTILHO192 afirma que os direitos sociais constituem autênticos direitos subjetivos inerentes à própria existência digna do indivíduo. Disso decorre o seu caráter prestacional, uma vez que, assim considerados, deles decorre um dever simultâneo do Estado de criação de condições materiais de exercício e uma aptidão do indivíduo para exigir as prestações que lhe são devidas.

Trata-se do notório jargão: a todo direito corresponde um dever, que pode ser de abstenção ou de ação, ou de ambos. Ao se reconhecer o direito à prestação positiva exigível em face do Estado, pode-se falar em direito público subjetivo. O tema da efetividade do direito subjetivo à educação será explorado mais adiante.

Mas aqui se volta ao problema inicial: há clareza acerca de quais sejam as obrigações de ação do Estado? Há clareza quanto à estrutura normativa que o Estado deve instituir através do legislador e da regulamentação executiva? Há clareza sobre que tipo de prestação desincumbe o Estado de seu dever constitucional de concretizar o direito à educação? Há clareza quanto ao que o cidadão pode exigir de modo a ver satisfeito o próprio direito? São questões essenciais ao exercício do direito à educação.

O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas e TOMASEVSKI, na posição de Relatora Especial sobre o Direito à Educação, propuseram um modelo de solução. Trata-se do Comentário Geral n° 13 ao já citado Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. O propósito do documento é justamente definir o conteúdo normativo do também já mencionado artigo 13 do Pacto. Nesse sentido, concebe o direito à educação como sendo composto por quatro elementos: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade, cujos termos compreenderiam o seguinte:

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SILVA, José Afonso da, Curso... cit., p. 313.

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“(a) Disponibilidade - instituições e programas educacionais em funcionamento têm de ser disponíveis em quantidade suficiente no interior da jurisdição do Estado parte [signatário do Pacto]. O que eles requerem para funcionar depende de inúmeros fatores, incluindo as condições de desenvolvimento dentro das quais operam; por exemplo, todas instituições e programas necessitam de prédios ou outra forma de proteção dos elementos naturais, instalações sanitárias para ambos os sexos, água potável, professores treinados recebendo salários domesticamente competitivos, materiais de ensino e aprendizagem, e assim por diante; enquanto alguns ainda precisarão de mais instalações como biblioteca, salas de informática e tecnologia da informação;

(b) Acessibilidade - instituições e programas educacionais devem ser acessíveis a todos, sem discriminação, dentro da jurisdição do Estado parte. Acessibilidade abrange três dimensões sobrepostas:

(i) Não-discriminação - a educação deve ser acessível a todos, especialmente àqueles grupos mais vulneráveis, de direito e de fato, sem discriminação nas formas proibidas [conforme parágrafos 31 a 37 do Comentário Geral];

(ii) Acessibilidade física - a educação deve poder ser alcançada de modo seguro, seja por freqüência a locação razoavelmente conveniente do ponto de vista geográfico (por exemplo uma escola na vizinhança), seja através de tecnologias modernas (por exemplo a participação de programas de ensino à distância);

(iii) Acessibilidade econômica - a educação deve estar ao alcance financeiro de todos. Esta dimensão da acessibilidade é sujeita a diferentes tratamentos pelo artigo 13 (2) conforme se trate de educação primária, secundária ou superior: enquanto a educação primária deve ser ‘gratuita a todos’, os Estados partes deverão progressivamente introduzir a educação secundária e a superior gratuita;

(c) Aceitabilidade - a forma e a substância da educação, incluindo currículo e métodos de ensino, têm de ser aceitáveis (ou seja, relevantes, culturalmente apropriadas e de boa qualidade) para estudantes e, nos casos apropriados, pais; isso está submetido aos objetivos da educação conforme estipulados pelo artigo 13 (1) e a padrões educacionais mínimos tais como estejam estipulados pelo Estado (artigo 13 (3) e (4));

(d) Adaptabilidade - a educação deve ser flexível de modo a poder adaptar-se às necessidades de sociedades e comunidades dinâmicas e a responder às necessidades dos estudantes quanto à diversidade de seu contexto social e cultural.”193 (tradução livre)

Como se observa, na dimensão de direito social, o direito à educação poderia ser sintetizado como imposição ao Estado de duas grandes linhas de obrigação positiva: (i) uma atividade interventiva legiferante, porque sendo o responsável final pelo direito cumpre-lhe regulá-lo e fiscalizá-lo quando não o preste diretamente, além de prever e

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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, General Comment 13: The Right to Education, 1999.

viabilizar instrumentos jurisdicionais de tutela; e (ii) uma imposição de disponibilização de uma educação acessível, aceitável e adaptável a todos que não possam ou não queiram satisfazer-se por seus próprios meios. Esclareça-se, como faz RANIERI194, que, justamente pelo caráter social, essa prestação estende-se à atenção às diferenças existentes entre os diversos grupos sociais, tarefa da qual o Estado se desincumbe ao proporcionar educação preparada para atender alunos regulares e com necessidades especiais, educação de jovens e de adultos, educação direcionada à cultura indígena etc.

Porém, embora contribuam para a necessária delimitação jurídica do direito e do dever envolvidos no direito à educação, essas constatações teóricas ainda não exaurem o tema. Trata-se, sem dúvida, de um ponto de partida de grande relevância, inclusive por representar obrigações internacionalmente assumidas pela maioria dos países195. Todavia, entende-se, nesta Dissertação, que a delimitação final do conteúdo jurídico do direito à educação somente pode ser atingida mediante a investigação do sistema jurídico positivo. Significa dizer que a formatação final do direito à educação e do modo de seu exercício somente pode ser definida em relação a determinado ordenamento jurídico.

Partindo-se da premissa de que, eminentemente desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a titularidade dos direitos fundamentais possui previsão que extravasa as fronteiras nacionais, aos Estados impõe-se a tarefa de procederem ao detalhamento desses direitos, de modo a concretizar seu exercício, como exigência de cidadania. Tal detalhamento de exercício, certamente, condiciona o conteúdo do direito.

O Capítulo III deste trabalho é dedicado à análise de como se dá esse detalhamento quanto ao direito à educação no sistema jurídico positivo brasileiro196.

2.2.3. A dimensão coletiva do direito à educação: sua relação com o bem