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O direito à educação em sua dimensão de liberdade individual

2. SOBRE A EDUCAÇÃO

2.2. DIMENSÕES DO DIREITO À EDUCAÇÃO

2.2.1. O direito à educação em sua dimensão de liberdade individual

Nesta primeira dimensão ressaltam a laicidade e a liberdade de ensino, aspectos integrantes do direito à educação antes mesmo deste se conformar como direito a prestações positivas. Trata-se da perspectiva referida por TAVARES como a “dimensão não- prestacional do direito à educação, consistente no direito de escolha, livre, sem interferências do Estado, quanto à orientação educacional, conteúdos materiais e opções

178 No caso brasileiro o crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal (Decreto Lei

nº 2.848/40), in verbis: “Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”.

179

HOROWITZ, Jonathan Thompson, The Right to Education… cit., pp. 250 e 251.

180 R

ideológicas”181. A satisfação do direito à educação, nessa dimensão, se dá pela abstenção estatal em impor uma religião oficial nos estabelecimentos de ensino, em definir versões da história ou em restringir a pluralidade de conteúdos.

Conforme ensina CAGGIANO, o direito à instrução constou das declarações de direitos de liberdade, tal como no preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e da Declaração Jacobina de 1793. Também na Constituição Francesa de 1795, que em seu artigo 300 previu o direito dos cidadãos de estabelecerem livremente estabelecimentos particulares de educação182. Sua feição nesses documentos era de liberdade individual, ligada às idéias de liberdade de informação e de manifestação do pensamento.

Recorde-se que no Antigo Regime a instrução, como as demais prerrogativas feudais, era para poucos, e, com algumas exceções no ambiente universitário, quase integralmente controlada pela Igreja. De modo que no momento do amanhecer republicano, na ruptura definitiva com as instituições feudais, a educação foi tida como instrumento liberador, da mesma forma que os direitos civis.

Nesse sentido, basta recordar que os fundamentos da defesa de CONDORCET à educação pública eram, antes de tudo, fundamentos de defesa dos valores republicanos contra a interferência da Igreja e das instituições absolutistas. Considerado o momento, era natural que o caráter fosse mesmo liberatório. CONDORCET viu na educação pública o modo de forjar entre o povo a igualdade necessária à liberação da tirania e à igualdade real de direitos. Nesse contexto, afirmou que “quando a lei fez dos homens todos iguais, a única distinção que permaneceu dividindo-os em diversas classes foi a sua educação” (tradução livre)183.

Em seu discurso CONDORCET esclareceu que apenas a educação como res publica, conduzida pela sociedade, poderia impedir que as luzes do conhecimento concentrassem-se em classes pouco numerosas, e assim servissem de instrumento de dominação. Em suas palavras, “[o]s padres, os jurisconsultos, os homens que possuíam o segredo das operações de comércio, os próprios médicos formados num pequeno número de escolas não eram

181 T

AVARES, André Ramos, Direito Fundamental à Educação, in SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, e SARMENTO, Daniel (coords.), Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2008, p. 777.

182 “Article 300. - Les citoyens ont le droit de former des établissements particuliers d'éducation et

d'instruction, que des sociétés libres pour concourir aux progrès des sciences, des lettres et des arts’’

183

CONDORCET, Marquis de (Marie Jean Antoine Nicola de Caritat), Premier Mémoire sur L’instruction Publique (1791), Paris, Mille et une nuits, 2002, p. 10.

menos mestres do mundo que guerreiros inteiramente armados; e o despotismo hereditário daqueles guerreiros estava fundado na superioridade que lhes conferia, antes da invenção da pólvora, seu conhecimento exclusivo da arte de manejar as suas armas”184 (tradução livre). No ideário republicano do século XVIII educação livre e provida igualmente a todos, retirada do clero e das corporações, era imperativa para o fim da servidão.

Todavia, a despeito da clareza presente no momento da ruptura com o antigo regime, o tema da laicidade, o da atividade educacional pública e o da liberdade de ensino tornam-se uma questão de profunda complexidade em face do próprio ideal liberal- republicano. Ao mesmo tempo em que se necessita da educação para a viabilização das instituições republicanas e democráticas, também é necessário delimitar-se bem o limite da interferência do próprio Estado no ensino, sobretudo no que diz respeito à absoluta neutralidade em matéria de consciência. Em diversos momentos da história mundial recente, uma dita educação de Estado foi utilizada com os mais terríveis fins, inclusive no Brasil185.

A laicidade foi das conquistas mais importantes para o desenvolvimento da República e do próprio Estado de Direito. Mas não deve ser objeto de abuso, nem mal interpretada, algo que conflitaria com a própria prevalência da liberdade do ideal republicano. Proibir o ensino religioso, suprimindo a liberdade para a Igreja, implicaria tão simplesmente suprimir a liberdade e, por decorrência lógica, uma renúncia ao liberalismo em si186.

Sobre isso, vale a anotação da lição de CURY, para quem “[a] laicidade, ao condizer com a liberdade de expressão, de consciência e de culto, não pode conviver com um Estado portador de uma confissão. Por outro lado, o Estado laico não adota a religião da irreligião ou da anti-religiosidade. Ao respeitar todos os cultos e não adotar nenhum, o Estado libera as igrejas de um controle no que toca è especificidade do religioso e se libera do controle religioso”187.

Do mesmo modo, de nada adiantaria o desmantelamento de um dogmatismo anterior para adoção de um novo dogmatismo. Um dogmatismo religioso substituído por um dogmatismo de Estado. De modo que o surgimento da liberdade de ensino se dá como

184

CONDORCET, Marquis de (Marie Jean Antoine Nicola de Caritat), Premier Mémoire… cit., p. 9.

185 Ver F

AUSTO, Boris, O Pensamento... cit..

186 Cf. P

RÉLOT, Pierre-Henri, La Séparation des Églises et de l’État, in Revue du Droit Public, t. 122, n. 3, 2006, p. 625.

187

CURY, Carlos Roberto Jamil, Ensino religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente, in Revista Brasileira de Educação, n. 27, 2004, p. 183.

uma necessidade prática diante da possibilidade de sua negação pela própria autoridade estatal. Nesse sentido, o direito à educação enquanto liberdade de ensinar e de aprender apresenta-se como direito civil, típico da primeira dimensão de direitos fundamentais.

Trata-se de uma realidade do direito à educação que muitas vezes resta desapercebida na atualidade, uma vez que se habitou a encará-lo unicamente através do prisma das imposições de concretização e regulação que esse direito também cria ao Estado, prisma que indubitalvelmente prevalece. No entanto, conforme ensinam ABRAMOVICH e COURTIS188, o Estado assume um duplo perfil em relação a todo direito, integre ele o conjunto das liberdades civis ou o dos ditos direitos sociais.

Por um lado, o poder público assume obrigações de abstenção ou obrigações negativas, no sentido de uma imposição ao Estado de evitar lesar ou ameaçar de lesão os direitos dos particulares. Por outro lado, também sempre assume obrigações positivas (ou de ação), também chamadas de obrigações de concretização e regulação, consistentes na definição de condições e conseqüências do exercício dos direitos. Embora quanto às liberdades civis prevaleça o primeiro perfil, ao qual se está habituado, também é necessária a atuação estatal no sentido de regular e concretizar. São exemplos a criação e a manutenção de serviços notariais e de registro para o exercício da propriedade imóvel, a criação e a manutenção de juntas comerciais e cartórios de protesto para as atividades societárias e mercantis, a organização de uma justiça eleitoral para o exercício dos direitos políticos etc.

E também é verdade que, quantos aos direitos sociais, sempre subsistem obrigações negativas: “o Estado deve abster-se de atingir indevidamente a saúde, a educação, o trabalho, a previdência etc. (...) É dizer, todo direito social supõe também uma dimensão de liberdade ou autonomia frente à ingerência arbitrária do poder público”189 (tradução livre).

O assunto é cotidiano e relaciona-se com inúmeras fontes de complexidade, como o

homeschooling, os direitos dos pais quanto à educação de seus filhos, os direitos dos

estudantes e o ensino religioso, algumas das quais serão revisitadas mais adiante.