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4. O duplo grau de jurisdição e o direito estrangeiro: alguns exemplos

4.2. Direito Francês

A Revolução Francesa é considerada um marco no estudo do duplo grau de jurisdição, pois foi em razão dos acontecimentos que a determinaram que tal princípio veio a ser abraçado pelos revolucionários, gerando influência sobre diversos outros ordenamentos, que buscaram se inspirar nos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Através da criação do Tribunal de Cassação, em 1790, órgão político de controle de decisões judiciais, e mais tarde por meio da Corte de Cassação, já atuando como órgão jurisdicional, instituiu-se a possibilidade de revisão das decisões judiciais, com vistas a assegurar a correta aplicação da lei e a igualdade de todos.

A iniciativa francesa refletiu-se aqui no Brasil, tendo sido introduzida expressamente na Constituição de 1824 a garantia do duplo grau de jurisdição.

Desde então, muitas transformações se operaram no sistema processual francês, não havendo mais, como outrora, previsão irrestrita de tal garantia, ao contrário, pode-se dizer que o ordenamento francês é um dos que mais limitações estabelece, nos dias de hoje, ao duplo grau de jurisdição.

A despeito das inúmeras exceções legalmente previstas, boa parte dos doutrinadores continuam defendendo o sistema de revisão autorizado pelo duplo grau, sob diversos fundamentos.

Roger Perrot assevera que “a regra do duplo grau de jurisdição sempre foi considerada como uma garantia fundamental”. Para ele, a justiça dos homens é falível: suas decisões podem conter erros ou revelar a incompetência do julgador. É, portanto, razoável oferecer aos

197 “Art. 715.º - 1. Embora o tribunal de recurso declare nula a sentença proferida na 1.ª instância, não deixará de conhecer do objecto da apelação. 2. Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a

litigantes a possibilidade de submeter o julgamento ao conhecimento de dois órgãos jurisdicionais sucessivamente.198

Adverte o ilustre autor que não se pode perder de vista que a jurisdição de segundo grau se beneficia de todo o trabalho de pesquisa e de debate que teve lugar em primeiro grau, de tal maneira que as discussões se tornarão mais claras, levando-se a pensar que a decisão de segundo grau será melhor que o julgamento ocorrido em primeira instância.199

Mais recentemente, Nicolas Molfessis, discutindo a constitucionalidade do princípio do duplo grau, chama a atenção também para sua importância, destacando seu papel essencial no âmbito da organização judiciária, como forma de assegurar ao jurisdicionado o direito de que seu litígio seja julgado por dois órgãos jurisdicionais distintos, situados em diferentes níveis na hierarquia judiciária. Da mesma forma, destaca que a credibilidade da justiça está ligada à visão binária do processo em relação ao jurisdicionado.200

A propósito, o Conselho Constitucional Francês tem se recusado a incluir o princípio do duplo grau de jurisdição no bloco dos princípios constitucionais, embora, pela análise de suas decisões, não se possa negar que o direito de apelar e até mesmo o próprio duplo grau tenha alguma proteção constitucional, o que impediria, por exemplo, sua mais absoluta supressão.201

Afirmam Jean Vincent et Serge Guinchard que “le Conseil d’ État considère que la règle du doublé degré de juridiction est un principe general du droit, le législateur seul pouvant y déroger. Mais le Conseil constitutionnel se contente d’estimer qu’il serait contraire au principe de l’égalité devant la Justice que la garantie d’un doublé degré de juridiction puisse dépendre de l’une des parties au procès ou du retard de la cour d´appel à se prononcer sans reconnaître à cette règle la valeur d´un principe general du droit d´une garantie de nature législative, dans une matière qui, traditionnellement, il est vrai ne connaît pas l´appel. Elle a néamoins une valeur ‘para-constitutionnelle’, puisque le legislateur ne peut y deroger em raison de circonstances particulières lorsque, dans um contentieux apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

198 Le principe du doublé degré de juridiction et son évolution en droit judiciaire privé français. Studi in onore di

Enrico Tullio Liebman, volume terzo. Milano: Dott. A Giuffré Editore, 1979, pp. 1971-1993, p.1971. 199 Idem.

200 Protection constitucionnelle. Justices. Revue Générale de Droit Processuel – Justice et doublé degré de

juridiction – n. 4, juill. – déc. Paris: Dalloz, 1996, pp. 17-33, p. 17.

201 Afirma o mesmo autor: “...le Conseil constitucionnel s’est toujours refusé, jusqu’alors, à inclure le principe

du doublé degré de juridiction dans le bloc de constitucionnalité. Mais pour autant, il serait hâtif de conclure que le droit d’appel n’est l’objet d’aucune protection constitucionnelle. Em effet, bien que l’analyse des décisions rendues par le Conseil oblige à conclure à l’absence de valeur constitucionnelle du principe du doublé

déterminé, la loi a posé cette règle; le fait que de nombreuses lois dérogent à cette règle empêche de transformer ce caractère para-constitucionnel en valeur constitutionnelle au titre des principes fondamentaux reconnus par les lois de la République”.202

O Código de Processo Civil francês, em seu art. 527203, prevê os seguintes meios recursais: apelação (arts. 542 e ss), oposição (arts. 571 e ss), oposição de terceiro (art. 582 e ss.), revisão (art. 593 e ss) e cassação (arts. 604 e ss), sendo os dois primeiros considerados ordinários e os demais extraordinários.204 Dentre os recursos citados, apenas a apelação está efetivamente assegurada pelo duplo grau de jurisdição, na medida em que enseja o amplo reexame da decisão proferida em primeira instância, por órgão hierarquicamente superior – Cour d’Appel, o qual poderá resultar na sua eventual anulação ou reforma (art. 542).

O duplo grau de jurisdição, como antes afirmado, vem sofrendo profundas restrições no ordenamento francês, as quais se acentuaram com o Código de Processo Civil de 1976, de modo a provocar também relevantes alterações no recurso de apelação, por ele assegurado. Roger Perrot, analisando criticamente as reformas e não se mostrando muito simpático às mesmas, afirma que a causa fundamental dessas transformações está na tentativa de superar os problemas causados pela lentidão da justiça, além disso como o aumento no volume dos processos não encontra correspondente expansão do pessoal e estrutura judiciária, expande-se a idéia de que o duplo grau de jurisdição seria um luxo excessivamente oneroso e uma fonte de complicações.205

O apontado declínio do duplo grau é sentido de duas maneiras diferentes, a primeira através da supressão ou restrição do direito de interpor apelação, a segunda mediante a ampliação do conhecimento, pelo tribunal, de matérias não apreciadas e julgadas em primeira instância, o que se daria, em geral, pelo mecanismo da avocação, já que o efeito devolutivo, a rigor, possibilita a devolução para reexame de matérias efetivamente enfrentadas em primeiro grau.

Roger Perrot assim define a avocação: “le pouvoir qui appartient à la juridiction du second degré, saisie de l’appel d’un jugement qui a statué sur une exception de procédure

degré de juridiction, elle témoigne dans le même temps que le doublé degré de juridiction ne reste pás sans protection constitucionnelle.” (art. cit. , p. 19)

202 Procédure Civile, 24ª édition. Paris: Éditions Dalloz, 1996, pp. 819-820.

203 “Les voies ordinaires de recours sont l’appel et l’opposition, les vois extraordinaires la tierce opposition, le

recours en révision et le pourvoi en cassation”.

204 A classificação dos recursos em ordinários e extraordinários possui justificativa diversa daquela concebida pelos autores pátrios. No sistema francês e italiano, os recursos ordinários obstam o trânsito em julgado da decisão impugnada, enquanto os recursos extraordinários pressupõem o trânsito da decisão. Estes últimos são similares às ações autônomas de impugnação previstas no ordenamento nacional.

ayant mis fin à l’instance ou qui a ordonné une mesure d’instruction (une expertise, par exemple, pour évaluer lê montant du dommage em matière de responsabilité civile), d’attraire à elle l’ensemble du litige pour lui donner immédiatement une solution définitive sur le fond”.206207

A supressão do direito de apelar, no Direito Francês, está geralmente ligada ao valor da causa, de modo que dependendo do valor envolvido no litígio não se autoriza a interposição de apelação.

Quanto às limitações impostas ao duplo grau, fruto de conhecimento, pelo tribunal, de matérias não apreciadas pela primeira instância, essas podem ser verificadas em diversos casos autorizados em lei, senão vejamos: a) quando a parte alegar, pela primeira vez, em sede de apelação, compensação, ou quando pretender o julgamento de questões que tenham origem em intervenção de terceiros (arts. 554 e 555 do CPC Francês) ou na revelação de algum fato novo (art. 564); b) quando se pretender, na apelação, reunir à pretensão inicial deduzida em primeira instância outras demandas consideradas acessórias ou complementares (art. 566); c) quando houver a propositura de reconvenção em sede de apelação (art. 567); d) na hipótese do exercício da avocação, que autoriza o tribunal a enfrentar matérias e a julgar pedidos não abrangidos pela apelação, podendo resultar até mesmo na análise do mérito quando a decisão recorrida for interlocutória, quando não tiver decidido o mérito ou quando a causa ainda não se encontra madura para julgamento, já que até medidas instrutórias podem ser determinadas pelo órgão ad quem (art. 568).

Com as transformações sofridas, vê-se que mais do que uma revisão, a apelação no sistema francês autoriza a inovação no julgamento da causa - ius novorum. Edoardo Ricci, comentando as reformas sofridas pelo Código de Processo Civil Francês, no tocante à avocação e ao flagrante declínio do duplo grau de jurisdição, afirma que “a garantia do duplo grau no mérito é portanto encarada como algo renunciável a critério do órgão ad quem”.208

Realmente surpreende como o sistema francês foi de um extremo ao outro na aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição. Apesar da realidade daquele país, ainda encontramos, no âmbito jurisprudencial, interpretações restritivas às regras aparentemente tão permissivas na limitação ou supressão do duplo grau, bem como o entendimento de

206 Art. cit., 1990.

207 Roger Perrot, segundo Ricardo Aprigiliano, afirmou em resumo que a avocação é a “faculdade reconhecida à jurisdição de segundo grau de investir-se de toda a causa para julgá-la no mérito, quando rescinde ou anula uma decisão, seja preliminar seja de mérito”. (A apelação e seus efeitos. São Paulo: Atlas, 2003, p. 89)

208 Il doppio grado di giurisdizione nel processo civile. Rivista di Diritto Processuale, volume XXXIII (II Serie). Padova: CEDAM, 1978, pp. 59-85, p. 71.

doutrinadores no sentido de ainda reconhecê-lo como uma garantia do processo, na busca de uma decisão mais justa.