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Direito geral da personalidade e o confronto com a classificação dos direitos da personalidade

1.3 O DIREITO AO LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

1.3.3 Direito geral da personalidade e o confronto com a classificação dos direitos da personalidade

O professor Paulo Mota Pinto (2000, p. 171-177) defende a existência de um direito geral da personalidade, excluindo direitos autônomos e particulares dessa classe, representando o princípio superior de constituição dos direitos concernentes aos diferentes modos de ser da personalidade. A proposta apresentada visa à inclusão de direitos não tipificados, englobando um conjunto variado de bens da pessoa. Apesar dessa tutela geral da personalidade, confessa que a simples consagração desses direitos não é capaz de resolver os problemas complexos de aplicação e demarcação práticas, carecendo, pois, de uma delimitação clara.

O direito geral da personalidade presente no Direito Português decorre da interpretação do artigo 70 do Código Civil daquele país, que expressa a tutela geral da personalidade nos seguintes termos: “1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. Em interpretação ao dispositivo, Rabindranath Sousa (1995, p. 513) explica que essa tutela geral da personalidade não é reconhecida de forma abrupta, ilimitada e separada do sistema jurídico, mas trata-se de uma peça integrante desse complexo, que exige averiguação de limites e de conteúdo, por meio de regras gerais de interpretação jurídica, em conjunto com outras proposições jurídicas. Em contraposição, a opção por um pluralismo de direitos da personalidade baseia-se no fato de cada interesse protegido ter características próprias, sendo preferível uma diferente valoração e tutela (SALAS; ORTEGA, 1995, p. 208-209). Mas Beltrão (2014b, p. 42) esclarece que o fundamento para as críticas à teoria pluralista reside nas características dos bens jurídicos, que incorporavam o elemento individualidade, elemento este que não se

identifica em alguns direitos da personalidade, face à dificuldade de se efetuar a separação entre direito e pessoa, não podendo, pois, ser considerado isoladamente.

Já Szaniawski (2005, p. 122) alerta que essa pluralidade contribuiu para o surgimento de uma enxurrada de direitos e classificações de direitos da personalidade, abarcando direitos que não se caracterizam como tais, desvinculados da natureza que lhes é inerente. Fiuza (2010, s/p) tece críticas às duas teorias, afirmando que nelas há a tentativa de enquadrar os direitos da personalidade nos modelos clássicos de direitos subjetivos pessoais ou reais; refuta a aplicação dos mesmos em situações-tipo, em que se reprimem apenas sua violação; bem como considera inconsistente a adoção de um único direito geral da personalidade. Como solução, propõe o estabelecimento de uma cláusula geral de tutela da personalidade, a dignidade e a promoção humana, como valores máximos do ordenamento, com a finalidade de orientar toda a atividade hermenêutica.

A dificuldade em se aceitar essa teoria monista deve-se ao fato de que se pretende da especialidade partir-se para a generalidade, visa desconsiderar a especificação já delineada nos corpos normativos, mas se contradiz quando se atesta a necessidade de delimitação. A classificação didática dos direitos da personalidade não implica necessariamente vinculação ao numerus clausus, mas consiste na tentativa de se proteger o máximo de bens possíveis, considerando as particularidades de cada caso em concreto.

É possível se estabelecer um rol de direitos da personalidade, não taxativo, considerando que a interpretação de tais direitos possa ser extensiva à medida que a dinâmica social demande novas tutelas. Essa possibilidade não exclui a utilização da dignidade como vetor de interpretação do direito, visto ser compatível a convivência entre o sistema plural de direitos da personalidade e a utilização da cláusula geral nos casos de omissão e nas operações hermenêuticas que antecedem a aplicação do Direito.

Como subsídio para o entendimento adotado, de grande valia é o posicionamento de Perlingieri (2007, p. 155) ao afirmar que a cláusula geral de tutela da pessoa humana possui conteúdo que não se limita a resumir os direitos tipicamente previstos, mas possibilita a sua extensão à tutela de situações atípicas, já que a pessoa não se realiza por meio de um único esquema de situação subjetiva, mas, sim, por um esquema de situações que podem se apresentar como poder jurídico, como interesse legítimo, ou como direito subjetivo, faculdade, poderes.

Nesse diapasão, o caso da fragilidade em que se encontram pacientes terminais que “sobrevivem” graças à ação de equipamentos mantenedores da existência pode ensejar uma nova tutela específica, capaz de evitar os abusos em âmbito hospitalar. Apesar de quanto mais pormenorizada for a previsão legislativa em prol da proteção da personalidade dos enfermos mais se aproximará da eficácia social do preceito geral de livre desenvolvimento, a inexistência expressa desse direito específico não impede a sua defesa, pois, implicitamente, suscitando a cláusula geral da dignidade, pode-se afirmar que tanto é direito existente no ordenamento jurídico pátrio, como plenamente defensável.

Em sede de direito colombiano, para Rocío Gómez (2011, p. 2) os direitos da personalidade são classificados em atributos da personalidade – aqueles elencados no Código Civil–, e direitos fundamentais – aqueles contidos na Constituição Nacional, incluindo-se nesse rol o direito à vida, à igualdade e à livre expressão da personalidade. Vê-se, pois, uma classificação vinculada à fonte de positivação.

Em relação ao Direito Brasileiro, tem-seque os direitos fundamentais são os previstos na Constituição Federal, os Direitos da Personalidade e os dispostos no Código Civil de 2002. Como ambas as categorias possuem a dignidade em seu cerne, pode-se a priori afirmar que, independentemente do instrumento de positivação, protegem a personalidade, sendo plenamente compatíveis entre si.

Dessa forma, é mister atentarmos para o enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil, que, em comento ao artigo 11 do Código Civil, expressa que nesse diploma os direitos da personalidade não são regulados de maneira exaustiva, contendo nele expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, previstas no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana), e que, caso haja conflito entre eles, deve ser aplicada a técnica da ponderação. Corroborando com esse entendimento, Donizetti e Quintella (2013, p. 58) acentuam que, no ordenamento pátrio, pode-se afirmar que tal classe de direitos é ilimitada, por derivarem infinitamente da tutela da dignidade humana, não sendo, pois, o rol contido no Código Civil, taxativo.

Da análise do enunciado verifica-se a tendência de constitucionalização do Direito Civil, desprendendo o direito privado da noção clássica de divisão jurídica, em prol da homogeneização de interpretação do direito. A pluralidade de espécies de direitos da personalidade não deve ser percebida como forma de exclusão de proteção das hipóteses não

previstas, mas como tentativa de o Direito se debruçar sobre a quantidade máxima de conflitos existenciais que estiverem ao seu alcance.

A riqueza das relações pessoais é tanta que muitas vezes esses vínculos acabam por não se enquadrarem nas hipóteses normativas, e leva em consideração os grupos de interesse (CALDANI, 2001, p. 41). A necessidade de ampliar o rol dos direitos da personalidade decorre do fato de o Código Civil de 2002 não ter regulamentado a matéria de forma mais abrangente, englobando temas já discutidos na doutrina e jurisprudência, ou estabelecido elementos mínimos de ponderação, a fim de propiciar ao juiz critérios razoavelmente objetivos e seguros para a tutela da personalidade, fazendo com que a carência de regulação geral seja preenchida pelas súmulas do Superior Tribunal de Justiça e por Enunciados doutrinários (ANDRADE, F., 2013, p. 123-124).

França (1999, p. 939) divide a classe de direitos da personalidade em três grandes grupos: direito à integridade física – que abarca o direito à vida e ao corpo; direito à integridade intelectual – no qual estão contidos os direitos autorais e a liberdade de pensamento; e direito à integridade moral – concernente à identidade pessoal, familiar e social, à imagem, ao segredo, à honra, ao recato e às liberdades política e civil.

Gonçalves (2012, p. 69) distingue os direitos da personalidade inatos, a exemplo do direito à vida e à integridade física e moral, dos direitos da personalidade adquiridos, provenientes do status individual, existentes na extensão da disciplina que lhes foi conferida pelo direito positivo.

Já Bittar (1995, p. 17) classifica os direitos em: direitos físicos – concernentes aos componentes materiais da estrutura humana, ligados à integridade corporal; direitos psíquicos – referindo-se aos elementos intrínsecos da personalidade, relacionados à integridade psíquica; e direitos morais – relacionados a atributos valorativos da pessoa em sociedade, concernente ao patrimônio moral.

Utilizando essas classificações supraelencadas, pode-se afirmar que os maiores riscos aos quais se submetem os pacientes terminais concernem aos direitos à integridade física e moral, conforme a classificação de França; aos direitos inatos, na perspectiva de Gonçalves; adotando-se a concepção de Bittar, pode-se dizer que em todas as dimensões pode haver transgressão.

“A evolução da pessoa, desde o seu nascimento até a morte, é potencializada com a formação de sua estrutura física e moral, que merece tratamento de acordo com a expressão

de sua personalidade” (BELTRÃO, 2005, p. 81). É com base nessa premissa que, independentemente do tipo de classificação doutrinária a ser adotada, o mais importante é que se tenha em mente qual a extensão dos bens protegidos pelo direito em questão, e qual o embasamento jurídico para, em casos de conflitos, eleger-se qual deles deve ser priorizado.

Em face do personalismo que permeia o Código Civil, evidencia-se a supremacia da essência humana frente ao patrimônio, sendo justificável pela cláusula geral da dignidade. Nesse sentido, cada indivíduo deve ter seu valor reconhecido, independentemente das suas condições econômicas e do seu estado de saúde, não devendo, pois, ter sua autonomia tolhida ao se submeter a um tratamento médico.