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1.3 O DIREITO AO LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE

1.3.4 Liberdade geral de ação

Na vivência da pessoa em sociedade, muitos bens individuais e comuns acabam por ser compartilhados, o que faz com que a valoração da importância que deve ser atribuída a cada bem na vida de um indivíduo dependa do valor designado a esses bens para a vida da comunidade, de forma que as possibilidades abertas para a vida de qualquer pessoa estão determinadas pelas decisões políticas acerca do que é prioritário em sentido comunitário. Por tal razão, o pensador prático tende a ser também político (COTARELO, 2002, p. 692).

Entretanto, quando se defende que a tônica do constitucionalismo é a proteção da pessoa individualmente considerada, quando se entende que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade tutela a individualidade do ser humano e das suas necessidades, o pensamento seria contraditório se não visasse ao afastamento do viés político das escolhas pessoais de cada um. O quesito relacional da vida humana deve servir para se estipularem as barreiras de ingerência alheia na privacidade e intimidade dos outros, e não para ditar regras sobre como elas devem ser almejadas.Por tal razão, denota-se a importância da delimitação dos direitos da personalidade, de modo a compatibilizar a individualidade com a coletividade.

Sabendo-se que a liberdade não atende somente ao problema físico, não se ocupa apenas do movimento, da locomoção, mas concerne à expressão de ideias e realização de atos ou negócios, sem óbice por força física ou espiritual (CIFUENTES, 1999, p. 55), o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, além de abarcar o resguardo da integridade, engloba a liberdade de comportamento, em prol da proteção à atividade humana, designado de

liberdade de ação geral, abrangendo a liberdade física, de expressão, de criação, entre outras especialidades, e seu exercício é condicionado à obediência de limites da Ordem Jurídica e dos bons costumes (PINTO, P., 2000, p. 198-199).

Evidencia-se, pois, um conceito de liberdade distinto e mais completo do que aquele defendido pela Revolução Francesa, e que se amplia cada vez que urgem novas necessidades humanas, cada vez que a dinâmica social apresenta novos riscos de violação à personalidade e à integridade. Ao se considerar que as barreiras às quais podem ser sujeitos os homens não necessariamente são físicas, aproxima-se o Direito da realidade, e se aproxima do alcance da eficácia social dos direitos da personalidade.

Esse desdobramento do direito ao livre desenvolvimento da personalidade trata-se de cláusula geral de liberdade, consagrada como direito pessoal, suprindo as omissões legadas pelos direitos especiais de liberdade, sendo garantida independentemente das características valorativas ou qualitativas, possuindo como objeto toda forma de comportamento humano, dotando o seu titular de autonomia para escolher o fazer ou não da ação, incluindo o direito a que tal conduta não seja vedada, o direito a recusar-se a imposição de uma conduta (PINTO, P., 2000, p. 201-204).

Trata-se de um argumento jurídico válido contra qualquer autoridade, pública ou privada, que desvincula a sua obediência de demonstração de previsão positivada ou de persecução de requisitos para a sua defesa. O agir e o omitir humanos mostram-se passíveis de respeito, independentemente do âmbito em que se insira, contanto que obedeçam aos preceitos gerais jurídicos, previamente delimitados. Os juízos exteriores contrários à eleição de conduta individual não deverão repercutir ativamente na esfera autônoma da pessoa. Esse respaldo é dado pela liberdade geral de ação.

Acresce-se à proteção de construção da personalidade, no sentido subjetivo da pessoa, a materialização em atos em que haja a manifestação objetiva e concreta da personalidade. Por tal razão, a liberdade geral de ação é uma liberdade ampla, que visa à proteção de ações de qualquer espécie e valor (MIRANDA, F., 2013, p. 11183-11184), até porque, quando se trata de respeito à individualidade, a valoração das ações é excessivamente subjetiva, não sendo condizente com qualquer apreciação externa.

Tomando como base o artigo 2°, do §1°da Constituição Alemã, o Tribunal Constitucional Federal do país adotou a compreensão de que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade trata-se de liberdade geral de ação, considerado como

direito de fazer ou se abster, em uma concepção ampla e subjetiva. Conforme salienta Alexy (2014, p. 341-343), a liberdade geral de ação contém norma permissiva do agir no limite das restrições, mas abarca também uma norma de direitos, com o fito de impedir que o Estado intervenha na liberdade do indivíduo. Desta forma, o autor defende que no suporte fático do direito em questão existam as ações dos titulares de direitos fundamentais, bem como as intervenções do Estado nas ações daqueles.

Constata-se, pois, a existência de um direito com carga positiva e negativa. A primeira característica se observa porque, ao se defender que o indivíduo é ser livre, atribui-se a ele a faculdade de gerenciar seus desígnios, até o ponto em que sua expressão de independência não interfira na dos demais, e contanto que não seja obstruída a obediência aos preceitos legais. A carga negativa se evidencia na imposição de abstenção de interferência de terceiros nas ações autônomas pessoais. Quanto a terceiros, incluem-se os médicos e a equipe de saúde, que se devem abster de invadir a esfera individual do paciente submetido a seus cuidados.

Na busca pelo direito exaustivo à liberdade geral contra intervenções, há de se proteger tanto o fazer quanto as posições e situações jurídicas, direta e indiretamente. A amplitude desse direito irradia para a sua cláusula de restrição, qual seja, a totalidade de normas jurídicas compatíveis, no tocante à forma e à matéria, com a Constituição Federal (ALEXY, 2014, p. 343-345). Apesar de o posicionamento expresso por Alexy ter como base o constitucionalismo alemão, há de se constatar compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, já que também se tem a liberdade como direito fundamental, bem como se efetua um controle de constitucionalidade em relação às ações humanas, para valorá-las como adequadas ou não. Ademais, preconiza-se a interpretação dos direitos de forma sistêmica e conforme a Carta Magna.

A amplitude do suporte fático do direito geral de liberdade, ao abarcar normas permissivas gerais e específicas, não atinge o conteúdo do seu direito, não toca a sua adequação como meio de descrição daquilo que é prima facie protegido (ALEXY, 2014, p. 346-348). Tal abrangência permite que se enxerguem liberdades que em uma visão positivista e dogmática não se conseguiria, podendo-se incluir em tal rol o direito de exercer a autonomia em relação ao prolongamento ou não do processo de morte de um paciente em estágio terminal.

Sob essa perspectiva, a liberdade geral de ação deve ser acionada quando da ausência de direitos especiais, já que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade tem a função

de complementar ou suplementar, atuando subsidiariamente ao abrigar vários direitos de liberdade inominados, incluindo-se nesse rol o direito à livre escolha do médico. Entretanto, há que se ressaltar que a natureza de cláusula geral e a extensão indeterminada dos direitos inominados de liberdade e da liberdade geral de ação dificultam o delineamento de deveres de proteção mais que em relação à dimensão de tutela da personalidade (PINTO, P., 2000, p. 205-209). Tal dificuldade demanda dos doutrinadores e dos demais hermeneutas o esforço de esboçarem os deveres decorrentes do Direito, de modo a garantir a realização prática deste.

Como em toda escolha está contida uma perda, a adoção de critérios amplos para abranger o máximo de casos concretos sob a égide do direito à liberdade, do ponto de vista prático evidencia um problema no tocante à demarcação de limites e à previsão normativa para efetivar essa tutela. É necessário que nos contextos específicos em que seja aplicável o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e consequentemente, a liberdade geral de ação, delineiem-se os pontos mínimos de intersecção, os traços marcantes e comuns de necessidade de preservação da autonomia.

Nesse sentido, Paulo Pinto (2000, p. 212-214) assevera que a liberdade geral de ação avulta o problema da tutela constitucional da autonomia privada, por fundar-se na liberdade geral da pessoa, principalmente na liberdade jurídica, que em direito privado situa-se dentro dos direitos da personalidade. O problema dos limites ao livre desenvolvimento da personalidade e a correlação daqueles em relação ao direito à vida será abordada no terceiro capítulo da presente pesquisa.

Em síntese, pode-se afirmar que o direito geral de liberdade possui uma concepção formal, na medida em que pressupõe uma liberdade negativa e a considera como um valor em si mesmo; mas também apresenta uma concepção material, uma vez que,nos casos de colisão, determina o peso relativo da liberdade no caso concreto, considerando também outros princípios (ALEXY, 2014, p. 359). É justamente a análise desse peso da liberdade na casuística que justifica a necessidade de se abordar o tema, pois tão importante quanto é o estabelecimento da extensão do direito é o reconhecimento dos limites do direito. É nessa perspectiva que se questiona se o direito ao livre desenvolvimento da personalidade é argumento legitimador para a expressão máxima da autonomia de um paciente, a confecção de diretivas antecipadas sobre a sua terminalidade.

2 – A CAPACIDADE DO PACIENTE TERMINAL E O SEU DIREITO DE ESCOLHA