• Nenhum resultado encontrado

3 – AUTONOMIA COMO FUNDAMENTO PARA O RESPEITO À MORTE E À INTEGRIDADE DO PACIENTE TERMINAL

3.2 DELIMITAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO AO LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE AOS CONFLITOS DO PACIENTE TERMINAL

3.2.2 O conteúdo essencial dos direitos fundamentais

Constatou-se que o livre desenvolvimento da personalidade, ao exaltar a liberdade, mostra-se condizente com o axioma bioético da autonomia. Verificou-se também que, no campo ético,esse valor sofre limitações, principalmente no âmbito de incidência da beneficência, de modo que não é de causar surpresa o fato de, no âmbito jurídico,os direitos fundamentais e da personalidade também serem passíveis de limitações, conforme restou demonstrado.

Em se tratando das tomadas de decisões dos pacientes terminais, o grande questionamento que reside no cerne dos conflitos – os quais deixam de ser apenas éticos,e passam a ser jurídicos – é a análise sobre se o exercício do direito de liberdade abarcaria a possibilidade de se restringir direitos fundamentais, como a vida e a saúde. Para elucidar essa questão, imprescindível se mostra a percepção de qual é o conteúdo essencial resguardado por tais direitos presentes no constitucionalismo brasileiro.

Pode-se asseverar que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais é delineado analisando-se as seguintes variáveis: o que é protegido pelas normas de direitos fundamentais; como esses bens se relacionam com as suas possíveis restrições; e verificando-se os fundamentos para os bens que se protegem e para os que se restringem (SILVA, V., 2014, p. 183). Essa preocupação busca assegurar esse respeito ao conteúdo, para que não desnaturalizem o direito fundamental, tornando-o impraticável, desprotegido; ou dificultando o seu exercício além do razoável. Compete, então, ao legislador não somente concretizar o

conteúdo normativo desses direitos, garantindo sua aplicação, mas, também, o dever de respeitar esse valor mínimo (LOPES, 2004, p. 7-8).

A teoria em enfoque confessa a limitação dos direitos, ao mesmo tempo em que traça barreiras materiais para que a atuação discricionária não o modifique a tal ponto que perca suas essências e razões para existir. Apesar de, em uma abordagem inicial, verificar-se o seu direcionamento à atividade legislativa, é incontestável a sua aplicabilidade na realização da interpretação do direito e na tomada de decisão judicial diante dos conflitos concretos instaurados.

Dois critérios são propostos pela doutrina para a demarcação desse conteúdo. De acordo com a dimensão objetiva, ele é definido pautando-se no significado que o direito tem para a vida social como um todo. Já de acordo com a dimensão subjetiva, que se centra na função de proteger as condutas e posições jurídicas individuais, esta prevê que é possível que uma restrição ou eliminação da proteção de um direito fundamental em um caso concreto individual possa implicar a violação ao conteúdo essencial dele, sem afetar a sua dimensão objetiva (SILVA, V., 2014, p. 185). Dispõe, então, ser necessário o exame da gravidade da limitação em relação ao indivíduo – sujeito de direito fundamental (LOPES, 2004, p. 7-8).

Mostra-se, pois, que a dimensão subjetiva é consonante com a visão humanística do direito. Ela obedece à lógica da proteção da pessoa, individualmente considerada, devendo, pois, ser a priorizada quando da análise dos casos concretos de limitação à liberdade, ao direito à saúde, e, por vezes, até limitação à vida, em âmbito hospitalar.

Entretanto, verifica-se que essa distinção estabelecida entre dimensão objetiva e subjetiva aplica-se de forma mais direta aos poderes públicos. Quando se trata das relações entre particulares, principalmente entre médico e paciente, faz-sede grande valia a análise das teorias relativa e absoluta acerca da determinação do conteúdo essencial, para que se delimite a esfera de ingerência do profissional nos direitos dos enfermos submetidos aos seus cuidados.

À luz da teoria relativa, o conteúdo essencial do direito fundamental é conhecido por meio da análise de cada caso concreto, centrando-se nos valores e interesses em questão, de forma que defende que as exigências do momento são capazes de ampliá-lo ou restringi-lo (LOPES, 2004, p. 8). Nessa acepção, rejeita-se, pois, um conteúdo definido em contornos fixos e definíveis a priori para cada direito fundamental (SILVA, V., 2014, p. 186).

Conforme a teoria absoluta, o conteúdo de um direito não é modificado por força das circunstâncias. Funda-se em critério fixo e predeterminado, de modo que o âmbito protetivo dos direitos fundamentais deve consistir em barreira intransponível contra o abuso de poder, havendo, pois, um conteúdo mínimo desses direitos, capaz de resistir a todas as situações sociais. A teoria do conteúdo essencial absoluto dinâmico pressupõe a existência de uma área intangível, porém mutável do direito a ser protegido; e a teoria absoluta-estática defende que essa intransponibilidade abrange valores imutáveis com o tempo (SILVA, V., 2014, p. 187- 189).

A importância dessas definições teóricas para a presente pesquisa deve-se ao fato de se buscar esclarecer em que condição se encontra a dignidade humana, se é valor absoluto no sentido material-temporal, ou se é relativo. Em se adotando a concepção relativa, poder-se-ia correr o risco de relativizar demasiadamente o princípio que se encontra no cerne de todo o constitucionalismo pautado em direitos humanos.

Filiando-se à teoria do conteúdo absoluto-estático, poder-se-ia colocar a dignidade na posição intangível, mesmo em meio a outros valores variáveis; mas a teoria do conteúdo absoluto-dinâmico, ao dispor que há direitos não relativizáveis que podem ser mutáveis ao longo do tempo, serviria para defender as diferentes formas necessárias de tutela da dignidade ante a revolução biotecnológica, readequando seu conceito às mudanças científicas e sociais, sem comprometer a sua essência.

Seguindo-se esse raciocínio, tem-se que, na aplicação da proporcionalidade,deve ser tida como sagrada a proteção contra a ingerência alheia, estatal ou particular, nessa esfera mínima do indivíduo, de modo que nenhuma restrição deve ultrapassar essa barreira, principalmente quando os direitos fundamentais que estiverem em questão forem os direitos à vida, à saúde e à liberdade.

Nesse sentido, a dignidade constitui limite absoluto do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, por ser base de todos os direitos, e princípio da sua unidade material. Apesar de os direitos poderem ser restringidos– devido à existência de outros princípios ou valores – ,esse limite absoluto ao poder de restrição pauta-se na ideia de que o homem é ser digno e livre, raciocínio este que embasa os direitos, liberdades e garantias (ANDRADE, J., 2012, p. 306).Desse modo, em face das dificuldades de limitação do conteúdo essencial de determinados direitos fundamentais, mostra-se relevante, na qualidade de aspecto limitador, o uso da dignidade humana, protegendo e servindo de suporte para outros direitos

fundamentais, tanto alargando o seu âmbito de proteção quanto limitando as possibilidades de renúncia que afetem seu conteúdo essencial (ADAMY, 2011, p. 154).

Nenhuma renúncia a direito fundamental pode importar limitação demasiada no que diz respeito às possibilidades de desenvolvimento das potencialidades do renunciante. Nesse caso, deixaria de ser considerada como forma de conformação da sua personalidade, passando a configurar uma intromissão na dignidade e na liberdade do indivíduo, de modo que se pode afirmar que a garantia ao livre desenvolvimento apresenta-se também como limitação ao instituto da renúncia (ADAMY, 2011, p. 158). Nessa acepção, a liberdade deve ser compatibilizada com valores inabaláveis, protegendo, quando necessário, o indivíduo inclusive de si mesmo, sem que, no entanto, implique desconsiderá-lo como sujeito de direitos.

Vê-se, pois, que,consonante com a noção de pessoa como fim do Direito, por vezes o ser humano, que é considerado autônomo em vários aspectos, não será tido como apto para consentir acerca de um tratamento médico, devido ao fato de a sua escolha contrariar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais à vida, à saúde e à liberdade.Nesse sentido, para a valoração dos casos concretos, mostra-se de essencial importância o princípio da proporcionalidade, para se verificar quais restrições a direitos serão justificadas.

3.2.3 A proporcionalidade aplicada aos direitos à vida e à liberdade: em prol da solução