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CAPÍTULO II. Procriação Assistida e Direitos Fundamentais

B. Os direitos fundamentais e a Procriação Assistida heteróloga

1. Direito à Identidade Pessoal

O primeiro direito ao qual dedicaremos o nosso estudo em sede de PMA heteróloga será o direito à identidade pessoal que se encontra no artigo 26.º124 da nossa Constituição, supra

referido.

121 Cfr. Maria do Céu Patrão NEVES, “Mudam-se os tempos, manda a vontade …”, op. cit., p. 144.

122 Sobre as questões inerentes ao recurso aos métodos de manipulação da fertilidade por casais homossexuais,

veja-se José Miguel GUIMARÃES, “As dificuldades do acesso de casais homossexuais à Procriação Medicamente

Assistida”, 2012, p. 16, texto disponível em: http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/hpm_MA_15762.pdf

[12.12.2016]. Este autor refere: “Acreditamos, no entanto, que a argumentação que é dada hoje-em-dia para justificar esta limitação da liberdade procriativa dos homossexuais parece não ser suficiente e que a disparidade de opiniões científicas sobre os factores relevantes para o bem-estar de uma criança deve levar-nos a discutir aprofundadamente o tema e pôr, pelo menos, em cima da mesa a possibilidade de remover algumas barreiras que impedem os casais homossexuais de aceder à PMA.”.

123 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2009, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de abril de

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O direito à identidade pessoal garante ao indivíduo o conhecimento da sua individualidade125 enquanto ser humano, permitindo-lhe o acesso às circunstâncias que

determinam a pessoa como um ser único e inigualável. A identidade pessoal trata-se de algo intrínseco à pessoa, determinando a sua singularidade.

Pese embora o direito à identidade genética não se achar expressamente previsto na Constituição, é possível encontrar, nos seus artigos 1.º, 25.º, 26.º e 27.º, fundamento de tutela do direito ao conhecimento das origens genéticas126, que, assim, integra a categoria

constitucional dos direitos fundamentais, mais concretamente, a subcategoria dos direitos liberdades e garantias127.

Autores como Pedro Pais de Vasconcelos também entendem ser de integrar no direito à identidade pessoal a identidade e o património genéticos de forma a afastar possíveis tentativas de duplicação do ser ou ofensas ao genoma humano128. Por outras palavras, considera que este

direito deverá proteger a individualidade da pessoa.

No que se refere aos casos de inseminação artificial heteróloga, a questão de saber se este direito implica necessariamente um direito ao conhecimento da progenitura significaria que o direito à identidade pessoal reclamava o direito à identidade genética como seu substituto129.

Quer isto dizer que o direito de que agora nos ocupamos (direito à identidade pessoal) integra o

124 Citando o artigo 26.º que se refere a “Outros direitos pessoais”: “1. A todos são reconhecidos os direitos à

identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. 3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica. 4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.”.

125 “O surgimento de uma individualidade autónoma e livre [e] o entendimento que o conhecimento das próprias

origens genéticas constitui um factor primordial nesse processo construtivo (que pode ser gravemente afectado se a vontade de conhecer as circunstâncias da própria geração, gestação e nascimento […], for injustificadamente cerceado), determina a incontornável relevância do contributo daquela previsão constitucional no processo de

delimitação de uma tutela específica do direito à historicidade pessoal.”. Cfr. Rafael Luís Vale e REIS, O direito ao

conhecimento das origens genéticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 66-67 (introdução nossa).

126 Cfr. Carlos Pamplona CORTE-REAL, “Os efeitos familiares …”, op. cit., pp. 354-355 (itálicos no original) “[…] a

ideia certeira de uma regra de subsidiariedade aplicativa das técnicas de PMA, circunscritas às ditas situações de

infertilidade do mais variado tipo, parece justificar, face à sobrevalorização de claros objectivos de terapia, uma

interpretação ampla do direito à identidade pessoal de qualquer indivíduo artificialmente procriado, embora com a inerente negação de qualquer vínculo familiar decorrente da dação de gâmetas, apenas medicamente significante. Julga-se que tal conclusão se estriba harmonicamente na leitura dos valores fundamentais do nosso sistema legal (maxime, no at. 26.º, n.ºs 1 e 3 da CRP) […].”.

127 Cfr. Rafael Luís Vale e REIS, O direito ao conhecimento …, op. cit., pp. 98 e ss..

128 Cfr. Pedro Pais de VASCONCELOS, Direito de personalidade, Coimbra, Almedina, 2006, p. 73.

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direito à identidade genética, pois que o conhecimento da pessoa como um todo implica seguramente o conhecimento da sua ascendência genética e, consequentemente, o direito ao conhecimento dos seus progenitores.

Entendemos que o direito à identidade pessoal se baseia na individualização de cada pessoa que é única e tem dignidade própria. Do mesmo modo, no conceito de identidade pessoal terá de ser abrangida a identidade genética130, uma vez que o ser humano, sendo único,

comporta em si a dimensão física, biológica (genética) e social das quais não se dissocia. A nossa perspetiva condiz com a que reconhece que o direito ao conhecimento das origens genéticas ou biológicas se poderá alicerçar em vários preceitos da nossa Constituição como é o caso do, já estudado, princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à identidade pessoal e ainda do direito ao desenvolvimento da personalidade analisado supra.

Julgamos que será mais equitativa a solução que admite o conhecimento do dador, isto é, a prevalência do direito à identidade sobre o princípio do anonimato. “Uma coisa é o reconhecimento da relevância da paternidade social, outra é sacrificar, postergar, em função da ênfase na paternidade social, o direito à identidade, mesmo que não tenha qualquer efeito patrimonial.”131.

Qualquer pessoa deve poder inteirar-se da sua própria verdade, desde a sua conceção, sob pena de lhe ser vedado o acesso a uma parte substancial da sua existência, em prol da defesa de um sigilo que, a ser derrogado, não originaria qualquer alteração significativa na vida do dador, podendo ter uma importância inegável na vida da criança.