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2 A SOCIEDADE DO CRÉDITO AO CONSUMO E O DESAFIO GLOBAL DO

2.5 O direito de recomeçar

Em um primeiro momento, devemos analisar os pressupostos psicológicos do perdão do consumidor inadimplente. Na sociedade de consumidores existem muitos consumidores impulsivos, que agem em desfavor ao seu próprio futuro, optando por consumir para obter gratificações momentâneas e imediatas. Para tanto, é necessário a criação de uma lei que auxilie o consumidor a controlar seus impulsos, utilizando de mecanismos que diminuam a

frequência desse risco. São muitos os consumidores que não conseguem reconhecer e admitir o endividamento como causa decorrente do consumo excessivo de bens sem utilidade funcional e acreditam na ilusão de que estão consumindo apenas o necessário para o mínimo existencial, ou seja, para sua sobrevivência digna.

O reconhecimento do próprio comportamento como pessoa consumista é um desafio muito grande, principalmente quando esse vício é confundido como algo totalmente normal. Os consumistas sempre procuram esconder esse comportamento em silêncio por um longo período, uma vez que tem a consciência de que seus atos fogem um pouco da realidade, do padrão, e até mesmo sabem das consequências e os problemas que geram a partir dessas atitudes descontroladas.

O aceitamento já é uma tarefa bem mais complicada, uma vez que o indivíduo precisa admitir o fato de que é consumista e deverá suportar todas as consequências, pois o acordo contratual obriga por escrito a cumpri-lo, mesmo contra a vontade do devedor. O comprometimento da aceitação é a sinceridade de querer ajuda frente ao comportamento consumista, quando tudo já saiu fora do controle e, ainda, ser humilde para iniciar um novo caminho em descoberta de algo melhor para sua vida.

O tratamento do consumismo pode ser feito através do uso de medicamentos, grupos de ajuda, tratamento psicológico e psiquiátrico, utilizar de mecanismos estratégicos de como prevenir o descontrole e a impulsividade pelas compras. No entanto, é evidente que sempre irão surgir desafios e dificuldades que poderão desviar a atenção pela busca do controle comportamental do consumismo, de tal forma que essas incitações deverão ser enfrentadas pelo indivíduo.

Na sociedade de consumidores atual, evidencia-se ainda muitos indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade, situação gravíssima que compromete a socialização e o acesso a economia, de tal forma que os mesmos viabilizam como única saída a força do trabalho como fonte exclusiva para pagamento de suas dívidas, sacrificando a própria dignidade humana. Isso ocorre pelo motivo de que o ordenamento jurídico não dispõe de um tratamento especial para pessoas físicas superendividadas, abrangendo somente as pessoas jurídicas o gozo do benefício do sistema de falência.

O autor Paiva (2013, p. 119) corrobora com o seguinte:

No campo do direito do consumidor, a “hipervulnerabilidade” seria a situação fática e objectiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, por circunstâncias pessoais, aparentes ou conhecidas do fornecedor. Poder se temporária (prodigalidade, incapacidade, necessidades físicas ou mentais especiais) ou permanente (doença, gravidez, analfabetismo, idade). Em relação às pessoas com necessidades especiais, pessoas com idade avançada, crianças e adolescentes, a hipervulnerabilidade tem garantia constitucional (ver, por exemplo, os arts. 226 a 230 da CF/1988), mas como se trata de um estado subjetivo pluriforme e multidimensional, outros grupos de pessoas especialmente fragilizadas podem estar abrangidos.

O princípio pacta sunt servanda, segundo o qual estabelece que as partes de um contrato estão obrigadas entre si nos limites da lei, pode não ser defendido diante da situação do perdão das dívidas, uma vez que são totalmente contraditórios, pois o credor concede ao devedor a extinção de uma obrigação. Para a criação de uma lei de falência para pessoas físicas se faz mister criar um modelo econômico que permita a recuperação financeira do devedor e também assegure ao credor o reembolso dessas dívidas.

No ordenamento jurídico brasileiro, o tratamento do inadimplemento procura “[...] acertar e definir o estado patrimonial do devedor e declarar quais são os credores que participarão do resultado da execução coletiva” (LIMA, 2010, p. 220). Isto posto, é possível identificar que inexiste uma tutela jurídica que vise prevenir o superendividamento, bem como investigar as possíveis causas que são geradoras desse comportamento. A revisão judicial é um instrumento processual restrita a individualidade dos contratos, ao passo que a elaboração de uma lei para disciplinar sobre o superendividamento seria uma solução mais eficaz, pois permitiria obter uma visão de todas as obrigações que estão em situação de pendência e inadimplidas pelo consumidor.

O descumprimento da obrigação de consumo, no tempo e modo devido, pode resultar na exclusão social do devedor, mesmo que cumprida num momento posterior, de forma que inexiste um instituto que regule a extinção da obrigação, sem que seja aplicado uma forma de sanção ao consumidor em virtude do inadimplemento. A solução para o superendividamento não deve servir de base exclusivamente do perdão das dívidas, pois nem todos os consumidores são merecedores desse fenômeno de recuperação financeira.

O perdão das dívidas pode auxiliar no restabelecimento de acesso a economia de crédito, estimulando o devedor a usar de tais meios não somente para honrar com seus credores, mas também para seu próprio benefício e de sua família. A honestidade também é característica importante para um devedor, pois uma vez que age com empreendedorismo tem o direito de recomeçar em caso de falhas, não estando sujeito a trabalhar para seus credores durante um período longo tão somente para adimplir com as suas dívidas. A inserção da renegociação das dívidas pode ser um elemento que beneficie os consumidores no que tange a exclusão social decorrente do superendividamento e a consequente inadimplência de dívidas.

Nesse sentido, Lima (2010, p. 223) nos ensina que:

[..] o reconhecimento do dever implícito de renegociação poderá oferecer elementos de análise tanto sobre a conduta do fornecedor de crédito em cooperar com a minoração dos danos resultantes do inadimplemento do consumidor superendividado, como sobre a atuação do devedor de boa-fé em buscar meios de efetiva quitação das dívidas, dentre elas a renegociação, afastando, assim, a recorrente arguição das instituições financeiras sobre a indústria das ações revisionais e o pretenso rolamento das dívidas por elas provocado. Da mesma forma, o dever de renegociação dos contratos atenuaria a avassaladora procura do Poder Judiciário para o ajuizamento de ações revisionais e a consequente incerteza quanto ao resultado do provimento jurisdicional.

O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 480, dispõe sobre o dever de renegociação, a partir do pressuposto legal de que quando houver onerosidade excessiva, poderá uma das partes pleitear sobre a redução da prestação ou então a alteração do modo de executá-la. No entanto, o dever de renegociar precisa ser decorrente do princípio da boa-fé, de ambas as partes coobrigadas, em que o credor deve ser responsável quanto a concessão ou oferecimento de bens e serviços e o devedor detentor da vontade de extinguir com a obrigação da melhor maneira possível.

Em primeiro lugar, é pertinente que a renegociação se faça voluntariamente pelas partes contratantes e, caso não havendo êxito na conciliação, é pertinente que as mesmas devam procurar o Poder Judiciário para readequar a obrigação e todas as suas disposições contratuais. A pretensão judicial deve estar fundamentada e justificada para uma renegociação positiva ou negativa, sempre respeitando o princípio constitucional da preservação da

dignidade da pessoa humana e a proteção do consumidor. No entanto, como já citado anteriormente, é ainda mais benéfico se existisse uma legislação que tutelasse sobre as situações de superendividamento, bem como as medidas de prevenção e resolução desse fenômeno resultante do consumismo excessivo.

CONCLUSÃO

Na sociedade de consumidores, a ideia de felicidade está entrelaçada com a atividade de consumir. No entanto, o consumo não deve ser algo que apenas lhe traz sensações prazerosas, mas deve ser considerada uma atividade onde é possível obter a satisfação das necessidades básicas de um indivíduo. Os consumistas são aqueles que buscam satisfazer suas necessidades com o consumo de bens ou serviços que acreditam ser realmente importantes para a sua sobrevivência e alcançar o bem-estar social.

O mercado de consumo está cada vez mais crescente e em constante movimento na produção e venda de bens ou serviços, de tal forma que ser consumidor já não é mais uma tarefa tão fácil. Os consumidores precisam estar atentos a qualquer tipo de publicidade de consumo, uma vez que é imensa a quantidade de propagandas comerciais que induzem o indivíduo a consumir cada vez mais, muitas vezes produtos ou serviços que são inúteis para o proveito do consumidor.

O marketing, no sentido de influenciar as pessoas, começou a ser uma atividade bastante eficaz e passou a ser pouco percebida, sendo o único objetivo alcançar futuros consumidores. As propagandas são, anteriormente, organizadas e analisadas para que possam atingir de forma influenciadora um determinado perfil de indivíduos, de tal forma que venham a obter, sem mais delongas, o bem ou serviço em destaque.

A função social da economia deve sempre estar de acordo com a lei, respeitando todos os princípios sociais do Direito do Consumidor. Os fornecedores de crédito devem observar os direitos fundamentais do consumidor, para que sejam aplicados de forma eficaz, de forma que não comprometa a liberdade de escolha dos consumidores. Os credores, agindo com lealdade e transparência, podem evitar o superendividamento dos consumidores, pois assim os devedores poderão adimplir com suas dívidas.

O superendividamento, considerado um problema social, não possui uma forma específica para regularizar essa situação, uma vez que não permite uma discussão uniforme acerca do problema. Ressalta-se que é de extrema importância a criação de um sistema de falências para o consumidor pessoa física, pois o ordenamento jurídico brasileiro não possui um tratamento específico para a regulação e a prevenção do superendividamento. O Projeto de Lei do Senado Federal nº 283 de 2012 é um grande avanço para a solução, parcial, das lacunas no que diz respeito ao superendividamento, pois tem como finalidade garantir o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana, como também abrange diversos institutos de prevenção, tratamento e conciliação de conflitos referente a esse fenômeno. O fornecedor também precisa mudar a sua cultura para que ocorra mudanças nessa realidade, não pensando somente no lucro expansivo, mas que seja responsável quanto ao oferecimento de bens e serviços.

A renegociação de dívidas é um ponto importante para resolver com o superendividamento, partindo primeiramente do pressuposto da conciliação entre as partes e, em últimos casos, procurar o Judiciário para resolver o litígio que envolve o inadimplemento. No entanto, ainda é pertinente que seja criada uma legislação que tutele sobre as situações de superendividamento, bem como elencar quais as possíveis medidas a serem tomadas como meio de prevenção e resolução desse fenômeno resultante do consumismo excessivo que afeta grande parte da população.

REFERÊNCIAS

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LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

LIMA, Clarissa Costa de. Superendividamento aplicado: aspectos doutrinários e experiência no Poder Judiciário. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010.

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