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3 DIREITOS SOCIAIS E A SUA APLICABILIDADE NO CONTEXTO

3.1 Direito social como direito subjetivo

Uma das dificuldades de se definir os direitos sociais como direito subjetivo encontra-se na utilização de conceitos próprios de Direito Privado para definição de institutos de Direito Público.

Com efeito, o direito subjetivo, conceito oriundo do direito privado, é um poder jurídico conferido a um indivíduo, por uma norma jurídica53, de fazer valer o não

conta, portanto, o emprego da força física”. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 71).

52Como destacam Holmes e Sustein, os custos só interessam aos direitos morais, se esses estiverem positivados:

“Pero el costo de los derechos es en primera instancia un tema descriptivo, no moral. Los derechos morales

sólo tienen costos presupuestarios si su naturaleza y su alcance preciso están estipulados e interpretados políticamente, es decir, sólo si son reconocidos por la ley”. (HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. El costo

de los derechos: por qué la libertad depende de los impuestos. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012,

p. 36). 53

“Diz-se que uma norma garante um direito subjectivo quando o titular de um direito tem, face ao seu

destinatário, o ‘direito’ a um determinado acto, e este último tem o dever de, perante o primeiro, praticar esse acto. O direito subjectivo consagrado por uma norma de direito fundamental reconduz-se, assim, a uma relação trilateral entre o titular, o destinatário e o objeto do direito. Assim, por ex., quando a Constituição consagra, no art. 24º., o direito à vida, poder-se-á dizer que: (1) o indivíduo tem o direito perante o Estado a não ser morto por este (proibição da pena de morte legal); o Estado tem a obrigação de se abster de atentar

cumprimento de um dever jurídico de outrem, de fazer, permitir ou omitir, mediante uma ação judicial54.

Como destaca Arango, é possível distinguir três características na definição de direito subjetivo: a) uma norma jurídica; b) uma obrigação jurídica de outrem derivada dessa norma; e c) um poder jurídico para a consecução de interesses próprios reconhecidos a um sujeito (uma posição jurídica)55.

Em relação aos direitos a prestações ou direitos sociais a relação se estabelece entre o titular do direito, o Estado, e a ação estatal positiva. Assim, aplicando-se o conceito de direito subjetivo aos direitos fundamentais sociais tem-se que se o sujeito (A) tem um direito a uma ação positiva (p) em face do Estado (E), então o Estado (E) tem o dever de realizar essa ação (p) em relação a A56. E mais: caso não seja possível o cumprimento da prestação, o Estado tem o dever de indenizar A pelos danos causados por esse não cumprimento. Uma vez configurada essa relação envolvendo um direito subjetivo, o titular do direito poderá exigir judicialmente o cumprimento da obrigação do Estado de realizar a prestação ou ainda a reparação dos danos pelo não cumprimento da mesma.

Exatamente nesse ponto, quando o direito fundamental à prestação segue o seu curso natural de concretização, surgem os problemas relacionados com orçamento, escassez de recursos financeiros, origem dos recursos para o pagamento dessas prestações ou indenizações, escolhas públicas de alocações de recursos, além de com o papel do Judiciário na configuração do Estado.

contra a vida do indivíduo; (2) o indivíduo tem o direito à vida perante os outros indivíduos; estes devem abster-se de praticar actos (activos ou omissivos) que atentem contra a vida de alguém”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 533).

54É a lição de Kelsen: “O direito subjetivo de um indivíduo ou é um simples reflexo, isto é, o reflexo de um dever jurídico existente em face deste indivíduo; ou um direito privado subjetivo em sentido técnico, isto é, o poder jurídico conferido a um indivíduo de fazer valer o não-cumprimento de um dever jurídico, em face dele existente, através da ação judicial, o poder jurídico de intervir na produção da norma individual através da qual é imposta a sanção ligada ao não-cumprimento”. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 162).

55No original: “Por derecho subjetivo, en su sentido más estricto, se entiende generalmente ‘el poder legal reconocido a un sujeto por medio de una norma leal, para la persecución de intereses propios mediante la exigencia a otro hacer, permitir u omitir algo’. Según esta definición, es posible distinguir tres características del derecho subjetivo: (i) una norma jurídica, (ii) una obligación jurídica de otro derivada de esta norma, y (iii) un poder jurídico para la consecución de intereses propios reconocidos al sujeto (es decir, una posición jurídica)”. (ARANGO, Rodolfo. El concepto de derechos sociales fundamentales. Bogotá: Legis, 2005, p. 8- 9)

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“Enquanto direitos subjetivos, todos os direitos a prestações são relações triádicas entre um titular do direito

fundamental, o Estado e uma ação estatal positiva. Se o titular do direito fundamental a tem um direito em face do Estado (s) a que o Estado realize a ação positiva h, então, o Estado tem, em relação a a, o dever de realizar h. Sempre que houver uma relação constitucional desse tipo, entre um titular de direito fundamental e o Estado, o titular do direito fundamental tem a competência de exigir judicialmente esse direito”. (ALEXY, Robert.

Questiona-se inclusive a respeito da natureza dos direitos a prestações como direito subjetivo ou como verdadeiros direitos, em virtude da correlação entre o direito garantido e o dever correspondente do Estado de cumprir as promessas constitucionais, criando meios materiais para o exercício desses direitos. Além disso, o reconhecimento do direito dá ao indivíduo a prerrogativa de exigir judicialmente a prestação a que tem direito.

Canotilho, ilustrando as dificuldades inerentes aos referidos direitos, pergunta se a partir do direito ao trabalho pode derivar, por exemplo, o dever do Estado de criar postos de trabalho e a pretensão dos cidadãos a um posto de trabalho. Do mesmo modo, com base no direito de expressão, indaga se é legítimo derivar o dever do Estado de criar meios de informação e de colocá-los à disposição dos cidadãos, reconhecendo-lhes o direito de exigir sua criação57.

Nesse sentido, Alexy, ressaltando a diferença entre os direitos a ações negativas e os direitos a ações positivas, afirma que enquanto os primeiros impõem limites ao Estado na persecução de seus objetivos, os segundos, por impor ao Estado a persecução de alguns objetivos, suscitam o problema de saber se e em que medida a persecução de objetivos estatais pode e deve estar vinculada a direitos constitucionais subjetivos dos cidadãos58.

Na doutrina brasileira, Amaral afirma que os direitos fundamentais têm natureza própria, inconfundível com as categorias moldadas à luz do direito privado59, de forma que as pretensões voltadas a prestações positivas que podem ser formuladas com amparo em direitos humanos não encontram correlação necessária em deveres estatais60.

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“Afirma-se a existência de direitos originários a prestações quando: (1) a partir da garantia constitucional de

certos direitos (2) se reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao exercício efectivo desses direitos; (3) e a faculdade de o cidadão exigir, de forma imediata, as prestações constitutivas desses direitos. Exs.: (i) a partir do direito ao trabalho pode derivar-se o dever do Estado na criação de postos de trabalho e a pretensão dos cidadãos a um posto de trabalho?; (ii) Estes problemas apontam para o problema fundamental dos direitos originários a prestações: a garantia da proteção jurídica pressupõe uma actuação positiva dos órgãos dos poderes públicos, o que leva a uma significativa parte da doutrina a negar a sua configuração como verdadeiros direitos”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes.

Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 543).

58ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 444.

59 “Ao nosso ver, os direitos fundamentais têm natureza jurídica própria, inconfundível com as categorias moldadas à luz do direito privado. Não são eles meras regras de estrutura, pois indisfarçavelmente há direitos fundamentais voltados a prestações positivas e, por outro lado, os conflitos intersubjetivos baseados em direitos fundamentais obrigam a uma intervenção estatal nas esferas protegidas por esses direitos, muitas vezes para limitá-los, o que seria impensável se sua natureza fosse de norma de estrutura, hipótese em que faltaria competência ao Estado. Não são eles meros valores jurídicos a orientar a formação do ordenamento ou concessões estatais, mas, ao contrário, investem o particular em diversas prerrogativas, legitimando-o a exigir dadas condutas estatais”. (AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 96). 60Nesse mesmo sentido, Canotilho destaca que “[...] o mundo de hoje dos direitos não se reduz ao ‘direito

hohfeldiano’ – afirmar um direito hohfeldiano é afirmar uma tripla relação entre duas pessoas e o acto de uma delas, na medida em que esse acto afecta a outra –, antes exige uma aguda consciência das ‘nuances’ ou

Nesse aspecto, o autor destaca que a doutrina se divide basicamente em três correntes: a dos que negam eficácia aos direitos sociais, já que a carga positiva depende de mediação do legislador e da existência de meios materiais, a dos que colocam esses direitos no mesmo nível que os direitos individuais, e uma terceira que os visualiza sob a ótica da “reserva do possível”, visto que a sua realização demanda emprego de recursos financeiros61.

No Direito brasileiro, a Constituição de 1988 incluiu os direitos sociais no “Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, considerando-os, portanto, um direito fundamental, tal como os direitos individuais e coletivos, sem distinção. Além disso, estabeleceu que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata62, afastando assim as teorias que definem as normas de direitos sociais como programáticas.

Silva ressalta, porém, que o fato de a Constituição estatuir que as normas definidoras de direitos fundamentais tenham aplicabilidade imediata não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados entre os direitos fundamentais63.

Alexy destaca, ainda, que saber quando uma norma confere direitos subjetivos é uma questão que tem importância prática, sobretudo processual. Para ele, esse problema surge quando o texto normativo deixa a questão em aberto, atribuindo ao Estado a obrigação de realizar uma determinada ação, mas sem definir se o particular tem direito à realização dessa ação estatal64.

Por outro lado, há autores cuja opinião é contrária ao reconhecimento dos direitos sociais como direito subjetivo, a exemplo de Timm, que afirma que o que caracteriza um direito como social é a sua não apropriação por um indivíduo, mas estar, ao invés, à disposição de toda a sociedade65. Comparato, por sua vez, defende que o objeto dos direitos

Joaquim José Gomes. Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais. In: ______ (Org.). Estudos

sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008c. p. 35-68, p. 67).

61AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 61.

62CF, Art. 5º, §1º. 63

“Por regras, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia

contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade imediata, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais”. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 184). 64ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 500-501.

65O autor prossegue afirmando que: “[...] o direito social à saúde é um direito de todos terem um hospital funcionando com um nível x de funcionamento, ainda que limitado (por exemplo, urgências). Não significa o direito de um indivíduo contra todos da sociedade obter um medicamento que poderá provocar o fechamento

econômicos, sociais e culturais é sempre uma política pública, de forma que os direitos sociais não criam pretensão individual a favor do titular66.

Sarmento critica esse posicionamento por não proporcionar aos titulares desses direitos uma proteção adequada. Para ele, do ponto de vista dogmático, se os direitos sociais são autênticos direitos fundamentais eles possuem titulares e se radicam na pessoa humana, de forma que é incorreta a posição que lhes nega dimensão subjetiva. O autor também não considera viável conceber os direitos sociais como direitos subjetivos definitivos, em virtude da escassez de recursos e da existência de diversas formas de sua realização, além do que o legislador tem primazia sobre o Judiciário na adoção das decisões competentes sobre o que deve ser priorizado e como deve ser concretizado cada direito. Para ele, o modelo mais comprometido com a efetivação dos direitos sociais é o proposto por Alexy, segundo o qual os direitos sociais são direitos subjetivos garantidos prima facie, ou seja, são direitos subjetivos, mas possuem natureza principiológica, de forma que se sujeitam a um processo de ponderação no caso concreto, anterior ao seu reconhecimento definitivo. Nesse processo de ponderação entrariam em jogo os princípios da separação de poderes, da democracia, além dos direitos de terceiros afetados pela decisão, inclusive do ponto de vista financeiro67.

A respeito do assunto, o presente trabalho segue o posicionamento defendido por Alexy, por ser o que melhor alia o conceito constitucional de direito fundamental com a realidade prática, de forma que, embora seja possível pleitear judicialmente a proteção de um direito social, a tutela deve ser ponderada com os demais princípios constitucionais.

do posto de saúde. Este não é um direito social ou coletivo, mas individual”. (TIMM, Luciano Benetti. Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamentais: uma perspectiva de direito e economia? In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 61).

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“Ora, uma das grandes insuficiências da teoria dos direitos humanos é o fato de se não haver ainda percebido

que o objeto dos direitos econômicos, sociais e culturais é sempre uma política pública. A generalidade dos autores continua a repetir, sem maior aprofundamento, que se trata de direitos a uma prestação estatal positiva, em contraste com o dever de abstenção dos Poderes Públicos, característico das liberdades individuais. Mas como o direito a uma prestação estatal positiva supõe uma relação direta do titular com o Estado, tropeça-se, inevitavelmente, com o obstáculo pragmático de que, salvo em raras hipóteses, das quais me ocuparei mais adiante, o ordenamento não cria pretensão a ação individual do particular contra os Poderes Públicos, para a realização desses direitos. É claramente impossível compelir o Estado a providenciar imediatamente, a todos os que demandem, um posto de trabalho, uma moradia, uma vaga em creche, um tratamento cirúrgico de alta complexidade, e outras prestações dessa natureza”. (COMPARATO, Fábio Konder. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo.

Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p.

244-260).

67SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: alguns parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Org.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 533-586.