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5 CRITÉRIOS E LIMITES DE GASTOS COM DIREITOS SOCIAIS E A

5.1 A reserva do possível

A reserva do possível é uma construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que recorreu a ela no julgamento do caso Numerus

Clausus I, uma política adotada na Alemanha, em 1960, para limitar numericamente os

ingressos de estudantes em determinados cursos universitários em face da grande quantidade de interessados em áreas como Direito, Medicina, Farmácia, entre outras. Estudantes que não conseguiram vagas nas escolas de Medicina das Universidades de Hamburgo e Munique contestaram a limitação, usando como argumento o art. 12 da Lei Fundamental, que prevê o direito de todo alemão à livre escolha de sua profissão, seu posto de trabalho e seu centro de formação162.

No julgamento, o Tribunal Constitucional entendeu que o direito ao aumento do número de vagas na universidade “encontra-se sujeito à reserva do possível, no sentido de que o indivíduo possa esperar razoavelmente da sociedade”163.

Alexy alega que, no julgamento, o tribunal adotou um modelo baseado no sopesamento, no qual aquilo que é devido prima facie é mais amplo do que aquilo que é devido definitivamente. Assim, o tribunal parte de um direito subjetivo prima facie e vinculante, de todo cidadão que tenha concluído o ensino médio, a ser admitido no curso universitário de sua escolha, ou seja, um direito que é conferido a seu titular como um direito “em si”, mas que é restringível. A reserva do possível surge então como uma cláusula de restrição desse direito, com a ressalva de que essa cláusula não pode levar a um esvaziamento do próprio direito164.

Nessa mesma esteira Sarlet defende que a reserva do possível não é elemento integrante dos direitos fundamentais, nem faz parte do seu núcleo essencial, ou mesmo um limite imanente dos direitos fundamentais. A reserva do possível para o autor constituiria um limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, podendo atuar ainda como garantia do

162 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 98.

163 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 439. 164 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 514-515

mínimo existencial de todos os outros direitos, ante a indisponibilidade de recursos para salvaguardar outro direito fundamental além do seu núcleo essencial165.

Torres, por sua vez, defende que a reserva do possível não é um princípio jurídico, nem um limite dos limites, mas um conceito heurístico aplicável aos direitos sociais, que na Alemanha não se consideram direitos fundamentais. Para ele, equivale a uma “reserva democrática”, no sentido de que as prestações sociais se legitimam pelo princípio democrático da maioria e pela sua concessão discricionária pelo legislador166.

Em sua origem, portanto, a reserva do possível estava mais ligada ao princípio da razoabilidade da pretensão aduzida do que à disponibilidade orçamentária. Krell, entretanto, afirma que essa teoria representa uma adaptação de um topos da jurisprudência constitucional alemã que entende que a construção de direitos subjetivos à prestação material de serviços públicos pelo Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos recursos e que a decisão sobre essa disponibilidade estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e dos parlamentos, mediante a composição dos orçamentos públicos. O autor alemão critica ainda a recepção da teoria da reserva do possível no Brasil como sendo fruto de um Direito Constitucional Comparado equivocado. Para ele, os problemas de exclusão social no Brasil se apresentam numa intensidade tão grave que não podem ser comparados à situação social dos países-membros da União Europeia167.

Sarmento, por sua vez, discorda desse posicionamento, já que a maior carência econômica, presente em países do Terceiro Mundo, torna ainda mais evidente a impossibilidade de realização ótima e concomitante de todos os direitos sociais. Por isso, para ele, embora a intervenção judicial nessa seara seja legítima e necessária, o índice maior de pobreza não afasta a incidência da reserva do possível, pelo contrário, acentua a sua importância168.

No Brasil, a teoria da reserva do possível tem sido usada como uma espécie de reserva orçamentária ou financeira, dentro do âmbito discricionário do legislador. Na tentativa de delimitar seu conteúdo Sarlet sustenta que a reserva do possível apresenta pelo menos uma

165 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 288.

166 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista

Forum de Direito Econômico e Financeiro, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 313-339, 2012, p. 159.

167 KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 28-29.

168 SARMENTO, Daniel. A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: alguns parâmetros Ético-Jurídicos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. (Org.). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 533-586.

dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos que guarda íntima conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras; e c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nessa quadra, também da sua razoabilidade169.

Tal teoria, entretanto, ainda carece de conteúdo preciso, o que dificulta a sua aceitação tanto pela doutrina170 quanto pela jurisprudência, que afirma que a referida teoria, salvo em situações devidamente justificadas, não pode ser usada pelo Poder Público como justificativa para o descumprimento dos seus deveres constitucionais171.

A esse respeito, cumpre destacar que embora a teoria da reserva do possível seja condicionada pelas disponibilidades orçamentárias, os legisladores não têm ampla liberdade para elaborar o orçamento, estando vinculados ao princípio da supremacia constitucional, devendo cumprir seus objetivos e normas-guia. Como ressalta Scaff, essa teoria somente pode ser arguida quando for comprovado que os recursos públicos estão sendo utilizados de forma proporcional aos problemas enfrentados pela parcela da população que não puder exercer sua liberdade jurídica172.