• Nenhum resultado encontrado

2. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O

2.1 Direitos humanos

2.1.2 Direitos humanos e direitos fundamentais

Também em caráter meramente preliminar, e com a finalidade de delimitar os conceitos envolvidos na presente pesquisa, cabe explorar a problemática terminológica enfrentada pela doutrina brasileira e estrangeira referente à distinção entre os direitos humanos, os direitos do homem e os direitos fundamentais.

A necessidade do exame de tais noções parte do fato de que o constituinte brasileiro decidiu empregar, na Constituição Federal de 1988, a denominação “direitos fundamentais”, do que é demonstrativo o Título II da Carta Magna, que terminou batizado como “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Entretanto, a expressão “direitos humanos” também aparece no texto constitucional, com destaque para o artigo 4º, II, e para o artigo 5º, § 3º, focos desta pesquisa295. Pode também causar confusão o fato de o § 3º do

294 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 1, p. 355.

295 Recorde-se que os dispositivos legais em apreço referem-se expressamente ao termo “direitos humanos”, ao enunciar, respectivamente, que “A República Federativa do Brasil rege- se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos

humanos” e que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que

forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (Grifos nossos). De resto, a expressão “direitos humanos” aparece por mais quatro vezes no texto constitucional.

artigo 5º, que menciona explicitamente a expressão “direitos humanos” estar no bojo do artigo referente aos direitos fundamentais. Por isso entendemos por bem apontar precisamente o escopo de ambos os termos.

A doutrina aponta para o emprego indiscriminado das expressões em apreço, naquilo que Paulo Bonavides caracteriza como “uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica296”, embora o mesmo autor aponte o emprego mais freqüente das expressões “direitos humanos” e “direitos do homem” na doutrina latino-americana e anglo-americana e do termo “direitos fundamentais” no universo jurídico germânico.

José Afonso da Silva, por exemplo, não aparenta distinguir entre as diversas expressões referentes aos direitos que contam como titulares a pessoa, com vistas a proteger a dignidade humana, afirmando que:

"Direitos naturais", "direitos humanos", "direitos do homem", "direitos individuais", "direitos públicos subjetivos", "direitos fundamentais", "liberdades fundamentais", "liberdades públicas" são todas expressões utilizadas para designar uma mesma categoria jurídica.297

Para outros autores, porém, a questão reveste-se de importância no contexto jurídico, apontando para diversos desdobramentos concretos, não figurando apenas como mera discussão acadêmica, tal qual se induz dos ensinamentos de Gerardo Eto Cruz, constitucionalista peruano, professor da Universidad de Santiago de Compostela, in verbis:

El tema no debe ser visto desde una exquisita reflexión de un simple ejercicio teórico sin efectos prácticos. Antes bien, el tema tiene ineludiblemente efectos concretos; y dependerá de ciertas pautas del juez intérprete de la Constitución para que, en su momento, verifique sus fallos a favor o no del justiciable que solicita una tutela judicial.298

296BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 514.

297SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p.179.

298Tradução livre: “O tema não deve ser visto como uma mera reflexão, um simples exercício teórico, desprovido de efeitos práticos. Muito pelo contrário, o tema tem, inegavelmente, efeitos concretos; e da elucidação da questão dependerá o juiz-intérprete da Constituição para que, no momento oportuno, decida em suas sentenças a favor ou não do requerente que solicita uma tutela jurisdicional”. CRUZ, Gerardo Eto. Âmbito de protección del proceso constitucional del

amparo– Algumas precisiones en torno al concepto de derechos humanos y otros conceptos

afines. Disponível em: <http://www.galeon.com/donaires/REVISTA6/amparo.htm>. Acesso em: 25/04/2007.

Como mencionamos anteriormente, o poder constituinte brasileiro decidiu empregar preferencialmente, na Constituição Federal de 1988, a denominação “direitos fundamentais”, a exemplo do que consta no Título II da Carta Magna (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), designando aqueles direitos que dentro do ordenamento jurídico brasileiro são considerados, no dizer de Konrad Hesse, “os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana”299.

O constitucionalista português Canotilho identifica os direitos humanos como aqueles direitos de dimensão jusnaturalista e universalista, ou seja, que são válidos em caráter universal, não importando o tempo ou o povo a que deverão ser aplicados. Neste sentido, equiparar-se-iam os direitos humanos aos direitos naturais, estes também de caráter universal e imutável, eis que decorrentes da própria natureza humana, inerentes ao indivíduo e anteriores a qualquer estrutura social. Os direitos fundamentais, por outro lado, seriam aqueles positivados e garantidos por determinado Estado e, portanto, limitados no espaço e no tempo. Nesse sentido, afirma o autor:

Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.300

Em outro ponto de sua obra, Canotilho identifica os direitos fundamentais como “direitos jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional”301, ou seja, direitos da pessoa humana entendidos como

naturais e inalienáveis que são positivados numa Constituição, contando com o caráter de supremacia e a proteção inerentes a essas normas e vinculando efetivamente o comportamento na sociedade. Já os direitos ditos “do homem” são simplesmente meras “esperanças, aspirações, idéias, impulsos ou até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de

299 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 514. Cabe destacar que não há, pelo menos aparentemente, citação literal das palavras de Hesse, cuja obra mencionada é: “Grundrechte. In: Staatsleksikon, Herausgegeben von goeresgesselschaft. Bd. 2, 7 Auflagen 1986.

300CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 387. 301Id. p. 371.

normas (regras e princípios) de direito constitucional”302, não obrigando, pois,

juridicamente.

O entendimento de Ingo Sarlet diferencia-se marginalmente do de Canotilho, apontando aquele autor para a dimensão histórica e relativa dos direitos humanos que, desta maneira, se afastariam, ainda que apenas em parte, dos direitos naturais303. Nesse sentido, e ainda que apenas com fins de cunho didático e como forma de afastar os direitos humanos dos direitos naturais, Sarlet distingue as expressões “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, utilizando-se, para tanto, de critério que tem por base a positivação ou não destes direitos. Dessa forma, os direitos do homem equivaler-se-iam aos direitos naturais, isto é, àqueles não necessariamente positivados no plano internacional. Os direitos humanos seriam aqueles positivados no âmbito internacional, positivação essa, cabe ressaltar, feita por meio dos tratados internacionais, o que também explica a atenção que daremos no bojo desta pesquisa ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Por fim, os direitos fundamentais seriam aqueles inseridos nas Constituições dos Estados. Para Ingo Sarlet, esta classificação tem por mérito possibilitar a identificação dos direitos positivados no âmbito internacional e interno daqueles que ainda não o foram, sendo estes os denominados “direitos do homem”, os quais, nas palavras do autor, consistiriam na “pré-história dos direitos fundamentais”304. Em outras palavras,

tem a classificação de Sarlet o mérito de distinguir claramente os direitos humanos dos direitos naturais, o que nos interessa no bojo deste trabalho, já que o nosso foco são os direitos positivados pelos tratados internacionais.

Outra classificação é a elaborada por Otfried Höffe, aludida por Ingo Sarlet, in verbis:

Os direitos humanos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato de ser pessoa humana) ao passo que os direitos fundamentais (positivados nas Constituições) concernem às pessoas como membros de um ente público concreto.305

302CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 371.

303Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 36. 304Id. p. 26.

Já Gregorio Robles identifica os “direitos humanos” com os “direitos do homem” e até com os “direitos naturais”, chamando-os também de “direitos morais”. A partir disso, afirma que os direitos humanos são apenas “pautas ou valores morais de bondade intrínseca”306 ou “critérios morais de especial relevância para a vida humana”307, que não se configuram como autênticos

direitos, já que não se encontram positivados e não podem ser invocados perante o Judiciário. Já os direitos fundamentais, por sua vez, são aqueles direitos humanos que são positivados em determinado ordenamento jurídico, normalmente na Constituição, adquirindo status especial de maior importância em relação a outros direitos. Tratam-se, para Robles, de “derechos humanos

positivados, esto es, concretados y protegidos especialmente por normas del mayor rango (...) auténticos derechos subjetivos dotados de mayor protección

(...)”308.

Sumariamente, Robles diferencia os direitos humanos dos fundamentais da seguinte maneira:

Mientras que los llamados derechos humanos no son verdaderos derechos, sino tan solo una forma de hablar para referirse a criterios morales, los derechos fundamentales son auténticos derechos subjetivos a los que el ordenamiento jurídico distingue de los derechos subjetivos ordinários mediante um tratamiento normativo y procesal privilegiado. Los derechos fundamentales son derechos subjetivos privilegiados.309

Gérson Marques diferencia os direitos humanos dos fundamentais, aduzindo que aqueles adquiriram o caráter de direitos fundamentais quando foram incluídos nas Constituições dos Estados310. Afirma também o mesmo autor que os direitos humanos dizem respeito a uma pauta de direitos estabelecida internacionalmente, ao passo que os direitos fundamentais são direitos que ganham positivação meramente interna, nos seguintes termos:

306 Aqui, o autor trata de analisar o emprego indiscriminado do termo “direitos humanos” em pautas políticas ou reivindicatórias, explicando que o que é comum a essas pautas é “el hecho

de que se exige el reconocimiento de determinados valores o criterios morales en virtud de su bondad intrínseca”. ROBLES, Gregorio. Op. cit., p. 18.

307 ROBLES, Gregorio. Op. cit., p. 20. No original: “criterios morales de especial relevancia

para la vida humana”.

308Ibid. p. 20. 309Ibid. p. 22-23

310 Sobre os direitos humanos, o autor afirma literalmente que “Foram elevados às Constituições dos países, assumindo a forma de direitos fundamentais”. LIMA, Francisco Gérson Marques de. Por uma visão internacional antropocêntrica dos direitos humanos, num

A expressão direitos humanos é mais utilizada em documentos internacionais e revela a existência de um bloco de direitos aceitos internacionalmente, enquanto a expressão direitos fundamentais revela a positivação interna, em determinado país, dos direitos humanos, dentro de sua opção política, através de seu ordenamento jurídico.311

Com foco nos direitos fundamentais, Carl Schmitt veio a estabelecer critérios formais e materiais para sua caracterização. Do ponto de vista formal, esse autor alemão designa por direitos fundamentais “todos os direitos e garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional”312, bem como aqueles direitos que “receberam da Constituição

um grau mais elevado de garantia ou segurança”313, sendo ora imutáveis, ora de mudança dificultada, a partir da exigência de um processo mais complexo de alteração. Já do ponto de vista material, seriam os direitos fundamentais os valores e princípios consagrados pela Constituição, variando de acordo com a ideologia e a organização do Estado.

Também com atenção exclusivamente aos direitos fundamentais, Robert Alexy os define como “determinados derechos fundamentales

positivamente válidos”314.

Destacamos, por fim, que a expressão “direitos do homem” é criticada por Carlos Weis, para quem seus termos encerram duas impropriedades. A primeira consiste em, ao empregar o gênero masculino para designar toda a humanidade, trazer em seu bojo conteúdo machista; a segunda, visa a evitar que se vislumbre a errônea idéia de que os direitos do homem se contrapõem aos direitos da mulher315.

Em todo caso, reconhecer a diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais não implica em excluir a relação entre ambos, já que a maior parte das atuais Constituições em vigor no mundo, incluindo a

311LIMA, Francisco Gérson Marques de. Op. cit., p. 9.

312 SCHMITT, Carl. Verfassunglehre. Unveraenderter Neudruck, Berlim, 1594, p. 163-173. Apud. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 515.

313Id. p. 163-173. Apud. BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 515.

314 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 28. Na tradução de Gérson Marques, são direitos fundamentais “aqueles positivamente válidos, aclamados pela Lei Fundamental”. LIMA, Francisco Gérson Marques de. Por uma visão internacional

antropocêntrica dos direitos humanos, num mundo de terrorismo, guerras, insegurança e avançadas tecnologias, p. 9.

Constituição brasileira, ou formou seus respectivos catálogos de direitos fundamentais a partir de referenciais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os demais tratados internacionais de direitos humanos, ou inclui direitos e garantias comuns às encontradas no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ao mesmo tempo, dado o papel primordial do Estado na promoção dos direitos humanos e a possibilidade de que, no âmbito estatal, sejam desenvolvidas soluções inovadoras no campo da proteção da pessoa, nada impede que os direitos consagrados nos ordenamentos dos Estados como “direitos fundamentais” venham a ser positivados internacionalmente como “direitos humanos” a partir de negociações internacionais. Nesse sentido, afirma Ingo Sarlet:

Reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam, de tal sorte que – no que diz com o conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais – está ocorrendo um processo de aproximação e harmonização, rumo ao que já está sendo denominado (e não exclusivamente – embora principalmente –, no campo dos direitos humanos e fundamentais) de um direito constitucional internacional316.

Cançado Trindade também registra a influência que os tratados internacionais exercem sobre as ordens jurídicas nacionais, por meio da consagração dos direitos protegidos internacionalmente no âmbito interno:

Os direitos pessoais, alçados no plano internacional pela Declaração Universal de 1948, também se estenderam, efetivamente a quase todas as Constituições nacionais (não raro em termos equivalentes aos da Declaração Universal), sendo ao mesmo tempo invocados no âmbito do direito interno.317

316SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 38.

317CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Op. cit., p. 19. A respeito, o autor cita também Mirzine-Guétzevich, que registra que, já no período entre a I e a II Guerra Mundial, se notava a “influência do espírito internacional” na elaboração de novas Constituições e no direito público interno. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. (editor). A incorporação das normas internacionais de direitos humanos no direito brasileiro, p. 211.

Acerca do conteúdo dos direitos fundamentais no Brasil, Celso de Albuquerque Mello também registra que “a maioria deles já consta de tratados internacionais de que o Brasil faz parte”318.

Além disso, terão os direitos humanos e os direitos fundamentais uma característica comum, qual seja a de estarem voltados à proteção do indivíduo e à promoção de sua dignidade. É o que afirma Gregorio Robles, em análise sobre as diferenças entre os direitos humanos e os fundamentais:

Pero a pesar de su diversa naturaleza puede encontrarse uma característica que les es común: su conexión con el individuo o persona humana bajo la forma de lo que le es propio, lo que le pertenece como suyo.319

Assim, à guisa de conclusão, poderíamos conceituar os direitos fundamentais como aqueles direitos reconhecidos positivamente no plano estatal, constantes nas Constituições de cada Estado, e que, assim como no tocante aos direitos humanos, têm como titular o ser humano. A contrario

sensu, os direitos humanos, que também teriam como titular o ser humano,

seriam direitos universais, válidos para todos os povos, independentemente de sua vinculação ao ordenamento constitucional de determinados Estados, estabelecidos, portanto, numa esfera supranacional.

De resto, apesar dos diversos termos empregados para a designação do mesmo objeto, utilizaremos a expressão “direitos humanos” para designar os direitos assegurados ao ser humano por meio dos tratados internacionais, inclusive porque é comum sua utilização nos instrumentos internacionais, bem como por se tratar da expressão empregada pelo constituinte derivado no parágrafo terceiro do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, inserido pela Emenda Constitucional 45, de 8/12/2004, consagrando claramente a diferenciação entre os direitos fundamentais e os direitos humanos.

318

MELLO, Celso de Albuquerque. Direito constitucional internacional, p. 179. 319ROBLES, Gregorio. Op. cit., p. 23.