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2 Intervenção estatal nas relações civis

2.2 Dirigismo contratual

Em que momento é permitido limitação da autonomia e qual seria o motivo dessa limitação? Ou seja, quais são os fatores que podem provocar essa limitação da autonomia, seja por um dos contratantes ou pelo próprio Estado? Pretendemos, sem esgotar o tema, tecer algumas digressões a respeito do chamado dirigismo contratual, tema relevante e imprescindível à exata compreensão da revisão judicial de contratos.

Limitar é sinônimo de restringir. A autonomia pode ser restringida pelo próprio particular, o qual detém o poder de alterar as bases do acordo, limitando-as, a depender da situação do caso concreto. É o que se convencionou chamar de dirigismo privado. Ademais, a limitação da vontade, também, pode traduzir a interferência do Estado na liberdade contratual. Essa intervenção estatal pode acontecer de diversas maneiras e, dentre elas, por meio da revisão judicial de contratos. É o chamado dirigismo estatal.

65 Nesse sentido, pondera: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de

Estudios Constitucionales, 2002, p. 225: Simplesmente em la permisión de hacer algo em la permisión de omitirlo, no inclue em tanto ta ningún aseguramiento a través de normas y derechos que protejan La libertad. (...) Toda libertad iusfundamental es una libertad que, por lo menos, existe em relación com el Estado.”

É que o excessivo rigor na aplicação do pacta sunt servanta, com o passar do tempo, foi mitigado para que o contrato fosse ajustado à nova realidade social, objetivando preservar o equilíbrio da relação contratual. Por conta disso o Estado passou a interferir nas relações contratuais, intensificando-se essa interação no início do século passado, porém já se fazia presente desde a Revolução Industrial. Essa intervenção estatal passou a ser chamada de dirigismo contratual, tendo por escopo a limitação da autonomia privada, para que não fosse distanciada a ideia de comutatividade do contrato, com o restabelecimento do equilíbrio das prestações66.

O juiz, dessa forma, pode intervir no caso concreto exercendo controle sobre a forma do contrato, zelando pela manutenção do equilíbrio entre os contratantes. Esse poder de intervenção é prescrito pelo comando do artigo 317 do Código Civil67 para corrigir distorções econômicas nos contratos exequíveis a médio e longo prazo, refletindo os ditames da teoria da imprevisão. Com efeito, as regras genéricas da revisão encontram-se previstas nos artigos 478 a 480 do Diploma Material Civil. Trata-se de aplicação especifica da teoria da imprevisão, apenas para reconhecer ao juiz poderes para atualizar monetariamente a prestação contratual, uma vez que as regras genéricas da imprevisão, autorizadoras da resolução ou revisão dos termos da própria avença, encontram-se consignadas nos arts. 478 a 480 do CC68.

Nem se diga que a resolução do contrato pode ser evitada através da modificação equitativa de seu conteúdo, com preceitua o artigo 479 do Código Civil69, situação na qual há de prevalecer a revisão judicial dos termos contratados, mantendo-se o negócio jurídico em bases mais equilibradas. Daí porque o divisor de águas entre a extinção e a revisão judicial de contratos deve ser a utilidade da prestação e o interesse na manutenção da avença, prestigiando-se a segurança das relações jurídicas e as expectativas de direito.

66 DONNINI, Rogério José Ferraz. Responsabilidade civil pós-contratual no direito civil, no direito do

consumidor, no direito do trabalho, no direito ambiental e no direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 67.

67 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da

prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

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GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v.2. p. 52.

69 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as

Nesse novo contexto trazido pelo Código Civil de 2002, aplica-se ao contrato o princípio da função social em detrimento de ações meramente egocêntricas. Com efeito, “o respeito pelos direitos dos particulares têm como instrumento a relativização dos direitos subjetivos pela função social”70.

Inerente ao Código Civil de 2002, o princípio da função social convalida um dos preceitos esculpidos pela novel legislação, ou seja, a socialização, impregnando pelo aspecto social os direitos e deveres dos contratantes, funcionalizando-os sem comprometer, entretanto, os fins econômicos. É que a noção de função social convida o intérprete a deixar de lado uma leitura do direito civil sob a ótica voluntarista, e a buscar em valores sociais que o ordenamento instituiu como fundamento de todos os ramos do direito71.

Nota-se, nesse mister, que o direito contratual moldou-se a essa necessária função social para efetivar a justiça e preservar o equilíbrio entre as partes, preservando assim a essência do contrato diante da nova realidade socioeconômica. Esta socialização da teoria contratual se fará sentir em um intervencionismo do Estado na vida dos contratos e na mudança dos paradigmas, impondo-se o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações. A reação do direito virá através de ingerências legislativas cada vez maiores nos campos antes reservados para a autonomia da vontade, tudo de modo a assegurar a justiça e o equilíbrio contratual na nova sociedade de consumo72.

Acerca da função social e, em face da necessidade de conciliação entre a liberdade individual, de um lado, e, de outro, um Estado com propósitos assistencialistas, pergunta-se: o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a livre iniciativa se, e somente se, revestida de valor social, ou, ao invés, o valor social é inerente a livre iniciativa como tal 73.

70 GEHLEN, Gabriel Menna Barreto Von. O chamado direito civil constitucional. In: MARTINS-COSTA,

Judith (coord.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2004, p. 174.

71 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. São Paulo: Renovar, 2002, p. 223. 72

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: RT, 2002, p. 155.

Ao se rascunhar qualquer vestígio de resposta chega-se a conclusão de que o problema é solvido pela ponderação de princípios constitucionais. Para superar o aparente impasse colidem a dignidade da pessoa humana com os princípios da livre iniciativa e da intervenção do Estado na relação entre particulares.

Cinge-se a questão a análise do caso concreto na medida em que o poder estatal deve atuar diante do exagero do particular em expressar sua vontade de contratar. Porém, essa atuação do Estado realiza-se para garantir o princípio da livre iniciativa, isto é, o próprio direito individual. Exemplificando, a limitação da autonomia da vontade pode ocorrer em contratos que afrontem diretamente a ordem econômica. Seriam contrários a sua função social os contratos que violassem a ordem econômica, seja determinando o aumento arbitrário de lucro, seja causando o domínio de mercado relevante por parte de uma empresa co-contratante; seja possibilitando o exercício abusivo de posição dominante de uma das partes; bem como contratos onde houvesse desproporcional vantagem patrimonial de uma das partes, em detrimento de outra, por força de circunstâncias tais como o estado de perigo, o estado de necessidade e inexperiência da outra parte74.

O Código Civil de 2002 limitou a autonomia da vontade, codificando determinadas situações. Além da mencionada situação da função social do contrato, a boa-fé objetiva75 passou a balizar as relações contratuais. Não se discute que o princípio da boa-fé objetiva fundamenta todo o direito obrigacional. É que a atividade privada, quando considera a boa-fé objetiva, em verdade se embasa noutros princípios fundamentais inseridos na Constituição Federal, em especial a dignidade da pessoa humana, o valor social da livre iniciativa, a igualdade e a solidariedade social.

A boa-fé objetiva insere-se na proposta social do Diploma Material de 2002, proporcionando certa ingerência nas relações contratuais através da possibilidade

74

Ob. cit., p. 56.

75

A boa-fé subjetiva refere-se ao estado psicológico e de consciência caracterizado pela ignorância de lesar interesses alheios, ao passo que a boa-fé objetiva indica forma de interpretação dos negócios jurídicos, sendo norma de conduta que impõe aos particulares um dever de agir pautado na lealdade.

de intervenção nos contratos, ou seja, facilitando a limitação da autonomia da vontade pelo dirigismo contratual esculpido pelos anseios sociais.