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ARABESCO DA NARRATIVA: MEMÓRIAS DA DANÇA DO ORIENTE QUE AGUARDAM PARA SEREM CONTADAS

8. UMA DISCÍPULA

Seu claro riso e humana compreensão e universal doçura revelam que pensar não é triste. Pensar é exercício de alegria entre veredas de erro, cordilheiras de dúvida, oceanos de perplexidade. Pensar, ele o provou, abrange todos os contrastes, como blocos de vida que é preciso polir e facetar para a criação de pura imagem: o ser restituído a si mesmo. Contingência em busca de transcendência.

Carlos Drummond de Andrade, “Alceu, radiante espelho”.

Quando assisti às primeiras apresentações vislumbrei uma dança mística e, as dançarinas, verdadeiros seres superiores. Imaginava que ao iniciar o aprendizado um poder

sobrenatural promovesse os movimentos e eles surgiriam por encantamento no corpo feminino. Ao iniciar as aulas percebi que tudo era concreto e real. Minhas ilusões eram vãs. Ao observar a metodologia, tive a impressão dos movimentos serem sumários. A dança continha passos óbvios, visivelmente fáceis de se realizar. Não foi tão simples. Passei por um difícil trabalho de disciplina corporal, que exigia a atividade conjunta de meu corpo e minha mente. Era necessário idealizar figuras geométricas como círculos, infinitos, quadrados, triângulos e outras formas, com as quais meus quadris e meus pés desenhavam no espaço ou no solo os movimentos gerados na dança. Fui seduzida por aquele aprendizado, em que as formas imaginadas evoluíam numa série contínua interligada, desenvolvendo a estética da dança em meu corpo.

Nesse caminhar era preciso imaginar a forma que desenvolveríamos, antes do movimento realizar-se. Quando eu traçava um movimento com o quadril, como o “oito maia”, que consistia em deslocar meus ossos ilíacos para baixo, um de cada vez, formando a figura de um infinito, inicialmente essa forma surgia em minha mente e, pouco a pouco, ela ia se preenchendo. A impressão era que essa imagem mental tomava corporeidade, tornava-se concreta. Quase poderíamos tocá-la, se dela não sobrassem apenas vestígios imaginários.

Essas formas que imaginávamos eram como um código restrito a nós, conhecedores da dança, pois as pessoas que assistiam às apresentações visualizavam apenas os movimentos sinuosos sem defini-los enquanto formas. Era uma linguagem geométrica universal, exclusiva para dançarinos.

Mas esses movimentos imaginários, ao serem tornados atos, muitas vezes eram barrados num obstar do corpo, não permitindo que essas imagens fossem corporificadas. Existiam amarras reduzindo meu corpo a uma matéria rígida. Algumas vezes, não conseguia movimentar cada parte de meu corpo separadamente. Era como se ele tivesse desejo próprio. Minha mente transmitia o comando, o restante do corpo obedecia se assim desejasse. Muitas vezes, ele possuía um poder independente de minha vontade. A partir desse momento compreendi que não conhecia meu corpo por completo. Nossa professora aconselhava que a boa dançarina era, aquela que realizando um difícil deslocamento, colocando seu pé direito à frente, sabia exatamente como estava posicionado seu dedo

mínimo do pé esquerdo, que se encontrava atrás, fora de sua visão. Dizia-nos isso para intensificar a necessidade da consciência corporal. Durante uma aula ela comentou:

- Eu acredito que a maior contribuição que a Dança do Oriente pode dar a vocês é que, para dançar razoavelmente, precisamos passar por um processo de consciência corporal. Existem movimentos que nascem da consciência e eles não têm outro caminho. Você nunca os fará se não compreender seu corpo, não entender o que você está fazendo. Acho que a maior contribuição desta dança é retomar o contato com nosso corpo. Às vezes, aparece uma pinta no seu corpo, você toma banho todos os dias, você se vê nua, mas não repara que aquela pinta existia. Nossa civilização, a nossa cultura, apesar de mostrar muito o corpo, possuir essas danças que parecem sexys demais, não apresenta um culto ao contato, um culto ao mundo das sensações, tudo fica na aparência. Esta dança, acredito, pode trazer o contato mais próximo do ser humano consigo mesmo. A possibilidade de conhecer-se melhor e sentir-se dono de sua própria vida. Anteriormente, e ainda hoje, alguns religiosos sentiam vergonha do próprio corpo, como se fosse algo sujo, pecaminoso e exclusivamente pertencente a Deus. Para outros, a intensa vida profissional faz com que o corpo seja uma mercadoria de acesso a possibilidades de um futuro promissor. Nesta conquista, buscamos inibir as percepções do corpo para que ele não fique sensível demais ao excesso de trabalho. Essas percepções vão sendo sufocadas e acabam desaparecendo. Depois você percebe que não tem mais as sensações afloradas. Quando surge uma determinada dor, quando você quer mover o quadril de determinado modo, não é mais você que comanda seu corpo. Existem as histórias das “auto-curas” em determinadas civilizações, que foram se perdendo com o tempo. Não temos mais esse equilíbrio. Mas, essa é outra história, vamos continuar nossa aula...

Mesmo com toda vontade de redescobrir meu corpo e dominá-lo, em alguns momentos sentia-me invertida, ao avesso. Um albatroz tendo aulas de pouso com o gavião. Essa técnica, enquanto por um lado apetecia-me pelo desafio, por outro desestimulava-me. Comecei a acreditar que minha busca tinha sido inútil e que jamais conseguiria dançar razoavelmente. A convivência com o grupo foi fortalecendo-me e consegui manter-me nas aulas, aprimorando minha técnica. No decorrer dos anos obtive certa desenvoltura nos movimentos da dança.

Com o grupo de Dança do Oriente relacionava-me diferentemente, encontrava a tranqüilidade que não obtinha em outros círculos. As aulas, os ensaios, os preparativos das festas e dos festivais, as apresentações eram momentos em que saíamos do universo “real”, dos nossos problemas diários e entravámos em um outro universo. A maioria das mulheres daquele grupo não possuía uma formação em dança clássica; eram profissionais de diversas áreas que, como eu, apaixonaram-se por um outro tipo de convivência.

Algumas mulheres procuravam a Dança do Oriente na tentativa de conhecerem a si mesmas, a sua sensualidade, e obterem prazer nesta busca. Para outras era uma forma de compensar as frustrações do cotidiano. Outras queriam cuidar do corpo, emagrecer, trabalhar a coordenação, ou mesmo, seduzir. Ao iniciar o aprendizado surgiam diversas expectativas, mas com o decorrer das aulas e com o graduar das dificuldades, grande parte das alunas desapareciam.

Depois de anos de formação, do meu grupo de Dança do Oriente restaram poucas alunas. Algumas prepararam-se para ministrar aulas para as iniciantes. Outras não tinham interesse em se tornarem professoras ou dançarinas. A dança era um trabalho pessoal e o momento da diferença em suas vidas. Agora eu já me comunicava, com um tom de voz baixo e rouco. Conseguia proferir as palavras necessárias à minha convivência no grupo e no trabalho. Preferi não seguir o caminho do ensino, apenas preparei-me para ser dançarina. Minha dificuldade com a fala tornava-me insegura, tinha medo da reação das pessoas.

Quando descobri-me dançarina, achei que estava pronta. Porém, foi a partir deste ponto em minha dança que passei a estudar cada vez mais. Procurei conhecer as diferentes tradições que faziam parte das danças que praticávamos, os figurinos usados em cada dança e as interpretações destas. Com o passar do tempo percebi que morreria antes de tudo conhecer.