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VIOLAÇÃO: DANÇA DO ORIENTE E O BALLET CLÁSSICO

ARABESCO DA NARRATIVA: MEMÓRIAS DA DANÇA DO ORIENTE QUE AGUARDAM PARA SEREM CONTADAS

21. VIOLAÇÃO: DANÇA DO ORIENTE E O BALLET CLÁSSICO

Vinde todos, e contemplai-nos: que somos os da terra fatigados, de cabelos hirsutos e de joelhos sem força, com palavras, paisagens, figuras humanas

pregadas para sempre em nossa memória.

Cecília Meireles, “Convite melancólico”.

Fomos convidadas por minha professora a acompanhá-la a um festival internacional. Era um festival bem estruturado, poder-se-ia dizer que era o maior da região norte do país. Ali estariam reunidos os melhores professores de Ballet Clássico

internacionais. De danças não acadêmicas, as representantes eram apenas minha professora Azah, de Dança do Oriente, e uma maravilhosa dançarina de Flamenco.

Minha professora ministraria um workshop, como os demais professores, e apresentar-se-ia à noite, na festa de encerramento. Os alunos que se inscreviam tinham o direito de escolher qualquer aula, pagando um valor único. Recebemos uma ótima sala, muito espaçosa. No primeiro dia de festival foi necessário mudar de sala. O maior número de inscrições de todo evento estava em nossa turma: eram cento e vinte alunos inscritos para a Dança do Oriente. Nesse momento, muitos professores que não haviam percebido nossa presença, começaram a perguntar quem era minha professora. E ficaram impressionados que os inscritos houvessem descartado pessoas de renome internacional para fazer aula com uma “ciganinha”.

Na primeira noite do festival, Azah faria sua apresentação. Acompanhei-a durante toda a preparação, desde a escolha do figurino, maquiagem, meditação e respiração. Ela era uma pessoa muito tranqüila, mas estava visivelmente transtornada. Roçava as mãos asperamente e olhava o público pelas frestas da coxia.

- Você está nervosa? Não fique assim, você é maravilhosa – perguntei, embora já soubesse a resposta.

- Está vendo aquelas duas bailarinas que estão sentadas ali? – mostrou pela coxia duas moças sentadas na platéia - São duas bailarinas clássicas espetaculares. Fico agoniada em dançar para esse público. Esses profissionais do clássico nos olham de maneira diferente. Você sabe que fora do universo da dança nos discriminam artisticamente, mas também enfrentamos a discriminação por parte de muitos colegas, os bailarinos clássicos. Nos tratam como uma “sub-dança”. Eu sei que isso também é culpa da péssima qualidade apresentada por muitas que se dizem profissionais... – interrompeu a fala e entrou no palco.

Azah entrou no palco, os espectadores fitaram-na. Fiquei nervosa, sentindo em cada movimento as apreensões que ela poderia sentir. Em cada mostra de insegurança no palco, meu corpo pulsava. Preocupações vazias, Azah era esplêndida, magnífica. Fazia desenhos aéreos com seu véu de seda e hipnotizava o público com o seu olhar.

Ao final da apresentação, as duas bailarinas que ela havia apontado vieram procurá- la. Durante a conversa lhe perguntaram:

- Sim, cursei um pouco de Ballet Clássico quando era criança. Foi o que sobrou do clássico em mim. Eu uso essas sobras em minha dança e sinto que realmente elas fazem a diferença. Porém, o clássico toma uma pequenina, uma minúscula parte do contexto geral da Dança do Oriente – disse Azah.

Percebi que quando as dançarinas árabes mostravam seu potencial eram respeitadas...

Recordei-me da história do Ballet Clássico, que surgira em uma época em que as pessoas tinham mais recato nas palavras e nas atitudes. No Ocidente, com o cristianismo, a sexualidade passou a ser controlada. Com as confissões e os exames de consciência, entre outras formas de expor o sexo, as pessoas revelavam seus segredos e, dessa maneira, eram vigiadas e controladas. Esse controle da sexualidade era necessário para o desenvolvimento do capitalismo. A força do homem deveria ser usada para o trabalho e não para o sexo.

A Idade da Repressão era o cenário em que fora fundada a Academia Real de Dança em 1661, na França. No reinado de Luís XIV, a arte da dança era considerada necessária para aprimorar o corpo, fornecendo as primeiras disposições para outros exercícios, entre os quais encontravam-se as atividades bélicas. O Ballet foi considerado, desse modo, um dos mais úteis à nobreza e às outras pessoas que podiam desfrutar da arte. A dança constituía-se em uma disciplina com técnicas que zelavam pela perfeição do gesto e pelo aperfeiçoamento do corpo.

Surgia a figura do mestre ou professor de dança nas cortes renascentistas francesas, instituindo a organização do espaço e do tempo na dança, compilando os gestos em passos. O profissional nas cortes deveria desenvolver códigos estritos de comportamento e etiqueta que se tornaram extremamente refinados e complexos. A dança adquiriu um sentido cênico e seus participantes foram hierarquizados, de acordo com suas habilidades.

Todavia, a disciplina exacerbada fez com que a dança perdesse a espontaneidade. Na medida em que a disciplina fortaleceu-se, a elegância e o refinamento na sua execução eram primordiais, os passos tornaram-se estruturas de regras fixas subordinados à música e ao desenho geométrico do espaço, figurando o pensamento apolíneo da época.

Formou-se uma rede de poderes em torno do saberes. Professores, escolas, utilizavam suas técnicas e regras para distinguir os saberes populares dos saberes da nobreza. A Dança do Oriente, como manifestação popular, foi oprimida pelo discurso do

aprimoramento técnico do Ballet Clássico e descaracterizada por trazer um corpo sem refinamentos e etiqueta de gestos.

Por possuir uma estrutura técnica aperfeiçoada há séculos e possuir uma verdade que pode ser verificável, os profissionais do Ballet Clássico descaracterizavam as “outras verdades”. Seguiam um conjunto de práticas e saberes que já estavam impostos à sociedade, coagindo os demais discursos.

- Você acha que a falta de disciplina corporal, do aprimoramento do corpo como no Ballet Clássico, pode ser outro gérmen da desqualificação do discurso da Dança do Oriente, além de relacioná-la apenas à sexualidade? – perguntei a Azah.

- Acho que não é apenas o fato de relacioná-la ao sexual. A dança possui a sua característica sexual, é lógico. Contudo, continua sendo uma dança com seu suporte técnico e disciplinar. Focalizando-se apenas a sexualidade, a Dança do Oriente fornece possibilidades para interpretações equivocadas e o surgimento de profissionais desqualificadas.

O controle detalhado e minucioso do corpo, aperfeiçoando-o, disciplinando-o e aprimorando-o é necessário. A dança árabe não elimina o conhecimento prévio de dança que as pessoas precisam para dançar profissionalmente. A falta de informação em nosso país faz com que qualquer pessoa, mesmo aquela que não tem eixo formado, uma boa estrutura, meia ponta trabalhada, enfim, noção espacial, consiga dançar e ganhar dinheiro com isso, mesmo que a qualidade dela não seja boa. Isso acabou criando um terreno muito fértil para os mal entendidos. O bailarino clássico passa a ter preconceito com a dançarina árabe, quando vê a apresentação de péssimas profissionais, que nem mesmo no ambiente da dança árabe seriam consideradas boas. Então, ele acha que aquilo ali é uma Dança do Oriente e, é claro, existe uma diferença brutal com o Ballet Clássico.

E no meio da Dança do Oriente isso é muito forte, talvez mais forte que nas outras danças. Porque a porta é larga: muitos passam por ela. Não é como no Ballet: para você chegar a ser uma bailarina reconhecida, o nível de trabalho e dedicação é muito maior do que, com o perdão da palavra, a “porcaria” de dedicação que as pessoas dão à Dança do Oriente. Elas acham que dançam há dez anos e não precisam mais se dedicar. Eu digo: “Faça uma conta, quantas horas por dia você se dedica”. Isso é a realidade, quantas horas de fato você está envolvida com aquilo é que conta e não o tempo que você começou a

fazer aula. Muitas pessoas procuram-me dizendo que cursaram dois anos de aulas de Dança do Oriente com determinada professora e depois descobriram que ela não era uma dançarina oriental de verdade. Precisaram jogar fora o que haviam aprendido, passar por um novo processo de disciplina corporal e voltar ao início do aprendizado. Se formos contar, esses dois anos foram de aprendizado, mas infelizmente não surtiram efeitos. Esse tempo foi o trajeto e não o tempo de dança.

- Quando eu iniciei, tive sorte de estar com uma professora que primava pela técnica da dança – disse Rajeeyah. Eu que venho do Ballet Clássico, posso dizer que o pessoal do Clássico “torce o nariz” para outros tipos de dança, isso é normal. Vejo que as pessoas do Clássico me olham diferente hoje. Então eu ficava pensando que como havia feito Ballet, eu era o máximo. Quando comecei a fazer aula e vi que a professora tinha regras em sua aula, que tinha mecanismos para fazer os movimentos, vi que não era uma coisa “tão solta”, que você não sairia copiando o professor. Eu comecei a gostar a partir do momento em que percebi que tinha uma técnica, uma razão de ser.

- Está vendo. É sobre isso que eu estava falando. As pessoas de fato não conhecem a Dança do Oriente – terminou Azah.