• Nenhum resultado encontrado

ARABESCO DA NARRATIVA: MEMÓRIAS DA DANÇA DO ORIENTE QUE AGUARDAM PARA SEREM CONTADAS

16. FESTIVAL DE DANÇA DO ORIENTE

As ruas, sempre do ano passado, e as pessoas, também as mesmas,

com iguais gestos e falas. O céu tem exatamente sabidos tons de amanhecer, de sol pleno, de descambar como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultas, os mortos do ano passado sepultam-se todos os dias. Escuto os medos, conto as libélulas, mastigo o pão do ano passado.

Shemadan ou Dança do Candelabro

Adentrou ao palco um grupo de dançarinas, trajando vestidos longos, largos, parecidos com túnicas, equilibrando um candelabro na cabeça. As velas acesas iluminavam todo o espaço cênico. A dança era lenta, cheia de movimentos sinuosos. A imagem e o som remetiam-nos a uma atmosfera mágica, exótica, misteriosa.

Enquanto apresentavam-se, recordei-me dos rituais que aconteciam no Oriente. A Dança do Candelabro ou Shemadan era uma dança tradicional apresentada na maioria dos casamentos egípcios populares. Na noite anterior ao casamento, os noivos passavam pela noite da Henna, uma tintura natural utilizada para tatuagens. Nos pés e nas mãos dos noivos eram desenhadas inscrições que, numa catarse, expulsavam os erros do passado e os maus espíritos, possibilitando aos noivos uma nova vida. Na noite do casamento formava- se uma procissão, chamada Zeffa, onde amigos, familiares, músicos, cantores e dançarinos acompanhavam os noivos pelas ruas da vizinhança da casa dos pais da noiva até a sua nova morada, a casa do noivo. A música tinha a função de auxiliar no ritual, na verdade dirigi-lo: ao toque do Mazhar, o cortejo seguia dançando seu ritmo repetitivo. A dançarina com o candelabro, acompanhada pelos músicos e cantores, liderava o cortejo, iluminando o caminho dos noivos, trazendo sorte e prosperidade. O fogo das velas representava a vida, a luz e a purificação.

No contexto do festival, o candelabro era parte da teatralidade das antigas tradições representadas em palco.

Pop-árabe

No palco posicionava-se um novo grupo. Este parecia vindo de uma danceteria. Seu figurino era constituído de duas peças, calça e bustiê, ricamente bordadas. A música era muito semelhante ao pop americano, diferenciando-se apenas pelo cantor de língua árabe. A dança assemelhava-se ao Jazz, misturando elementos da dança tradicional árabe.

Os países árabes, tal qual outros países, foram seduzidos pela indústria musical americana. Assim, o pop e a música eletrônica são a nova tendência da atualidade.

Algumas dançarinas que se apresentavam na Arábia Saudita, no Egito, nos Emirados Árabes diziam que, nesses países, havia sede pela modernidade. A população não apreciava a própria tradição, mesmo que estive em vias de se extinguir. Preferiam assistir às inovações, mais “ocidentalizadas”. Já as dançarinas que se apresentavam em países ocidentais, como Espanha, Brasil, Noruega, Estados Unidos, Chile, Portugal, Itália, comentavam que este era um público que apreciava as danças tradicionais.

Dabke

Homens e mulheres vestidos como se estivessem em uma aldeia montanhesa dançavam o Dabke, dança libanesa ligada à vida nas aldeias. Os dançarinos trajavam vestimentas coloridas, calças e camisas largas, esvoaçantes. Na cabeça possuíam um chapéu típico e nos pés vestiam botas. As mulheres enrolavam véus ou lenços como adornos sobre suas roupas.

Contam que em tempos remotos, no Líbano, os forros das casas eram construídos com os galhos das árvores e barro. Com as mudanças da temperatura e da estação, o barro do forro começava a apresentar rachaduras e goteiras. O proprietário da casa pedia aos vizinhos que auxiliassem no conserto. Os vizinhos subiam no forro da casa, davam-se as mãos, formando uma linha, batiam os pés e caminhavam, para amassar o barro e ajustá-lo às frestas. Instrumentos árabes eram adicionados neste afazer e o trabalho tornava-se uma dança.

Naquele momento passei a imaginar uma pequena aldeia em que amigos se reuniam para auxiliar na construção de uma casa e para celebrar a vida. Sentia os aromas das frutas daquela estação, plantadas ao redor das casas. Bebíamos o vinho feito na aldeia. No ano anterior, nossas mãos haviam colhido as uvas e as separado das parreiras. Os frutos haviam sido jogados na grande dorna e todos os casados entraram para produzir o vinho. Os músicos permaneceram fora da dorna, entretendo-nos com sua música. Nossos pés dançaram e amassaram as uvas numa grande festa. À medida que o tempo passava, a empolgação tomava nossos corpos.

Recordávamos dos antepassados e observávamos as crianças iniciando o aprendizado da vida. As mulheres mais velhas da aldeia nos traziam o alimento cozido conjuntamente.

Os músicos continuavam a tocar os instrumentos e o derbakista parecia possuído por um espírito: seus dedos deslizavam no derbake, com agilidade extraordinária.

Antes do almoço, alguns homens e mulheres davam-se as mãos e com os pés batiam no chão, enquanto outros ritmavam a dança com palmas. O grupo de Dabke aumentava, formando uma linha, em que se realizavam os mesmos passos. Nas extremidades dessa linha, o homem ou a mulher realizava passos mais ágeis e mais graciosos que o restante do grupo, na tentativa de mostrar quão competente era na dança.

Essa empolgação apenas era abrandada pela fome e quando alguém vinha avisar que o alimento estava esfriando.

Dança da espada

Era um solo. A elegante dançarina apresentava sua espada com delicadeza e destreza. Integrava os movimentos da dança árabe ao equilíbrio da espada em diferentes partes de seu corpo e aos movimentos do Ballet Clássico. Nenhum outro figurino representaria melhor a imagem de dançarina árabe para os ocidentais. Constituía-se em um figurino de duas peças, que deixava seu ventre à mostra. Duas longas saias sobrepostas com tecidos leves eram cobertas por um cinturão artisticamente ornamentando com pedrarias. Cegava-nos o brilho e a luz refletidos por seu figurino e por sua espada.

Embora não fosse uma dança tradicional, a Dança da Espada sempre provocava o entusiasmo dos espectadores. Ouviam-se os ruídos exclamativos da platéia a cada acrobacia.

A Dança da Espada não sobreviveu ao tempo: narram que, apenas em 1970, as dançarinas americanas interpretaram essa dança, observando as artes plásticas do século XVIII e XIX. A partir dessas imagens elas tentaram reconstruir o que havia desaparecido nos países árabes, criando uma caricatura do que havia existido. Isso igualmente aconteceu com outras danças orientais, como a Dança do Pandeiro e a Dança do Punhal.

A Dança da Espada não mais existia nos países orientais, mas várias lendas ainda eram contadas com relação à sua origem. Em uma dessas lendas a dança era uma homenagem à deusa Neit. Durante a guerra, as sacerdotisas dançavam à deusa, orando para que ela tornasse vitoriosos seus soldados, abrisse seus caminhos e os fizessem retornar à terra natal. Outra lenda conta que as mulheres retiravam as espadas dos soldados, brincavam e dançavam com elas, colocavam-nas em várias partes do corpo, faziam acrobacias, demonstrando como a espada era mais útil na dança e nas mãos de uma mulher do que causando mortes e sofrimentos. Uma outra lenda narra que quando os homens retornavam da guerra as mulheres festejavam dançando com suas espadas e faziam reverências aos deuses, que haviam salvado seu povo.

Snujs

Os sons daqueles címbalos estridentes eram ao mesmo tempo sutis e poderosos. Um grupo de mulheres entrava em cena com os snujs, presos aos dedos. Os snujs são instrumentos de metal originalmente feitos de cobre ou bronze, possuindo o formato de mini pratos de bateria. A dança com os snujs exigia muita habilidade: além do domínio corporal, da expressão cênica, a dançarina deveria dominar também a musicalidade.

As marcas ancestrais da utilização desses instrumentos encontravam-se nos templos egípcios. Hieróglifos e antigas pinturas mostravam que os snujs eram instrumentos fundamentais nos rituais aos Deuses.

Enquanto observava aquela dança e ouvia marcadamente os sons dos snujs, via as sacerdotisas atravessarem o rio Nilo em uma barcaça, tocando snujs e queimando incensos. Nas margens daquele imenso rio, o som dos snujs unia-se aos cânticos dos que acompanhavam o cortejo, carregando tochas, em rituais que reverenciavam a Fecundidade, a Música, as Artes, a Vida e a Morte.

Dança do Bastão, Tahtib e Raqs el Assaya

Meu grupo havia ensaiado durante meses, pesquisado o melhor figurino e as interpretações para aquela apresentação. No camarim havíamos feito a maquiagem que

destacava nossos olhos, num ritual de silêncio e concentração. Nossa vestimenta, como na tradição, mantinha o ventre coberto. Usávamos um vestido longo e um xale amarrado na cintura, bordado com muitas moedas.

Raqs el Assaya, Dança do Said, era o nome original da Dança do Bastão; consistia em uma paródia de uma dança tradicional masculina, chamada Tahtib, típica da região do Said, no Alto Egito. No Tahtib os homens utilizavam longos bastões de madeira e simulavam um duelo de habilidades. Esses longos cajados eram comumente utilizados pelos homens em suas caminhadas, na reunião dos rebanhos e em sua defesa.

Os homens, vestidos com suas túnicas, seguem o ritmo cadenciado do said, dançando e brincando, ao mesmo tempo que atacam e se desviam dos golpes, mostrando destreza e agilidade. As mulheres, encantadas com essa desenvoltura, passaram a utilizar os bastões e a executar giros cadenciados. Com delicadeza e feminilidade, as mulheres usam sua irreverência para parodiar a dança dos homens, ironizando-a.

Chegava o momento de nossa entrada ao palco. Minhas mãos estavam, ao mesmo tempo, gélidas e suadas. Mal conseguiam segurar o bastão de bambu. Na coxia observávamos o grande público que aguardava-nos. O sentimento repetia-se a cada entrada em cena. Sempre passávamos por uma nova iniciação. Os refletores não permitiam que víssemos seus rostos. O público tornava-se anônimo e amedrontador.

Agora era o momento de expor a preparação de todo um ano. A música alegre começava a tocar e, como absorvidas pelo som, nos desprendíamos de todas as preocupações e vivíamos exclusivamente aquele momento.