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Disciplinaridade: fragmentar para conhecer

3 O PERCURSO DA COMPLEXIDADE E DA TRANSDICIPLINARIDADE

3.3 Transdisciplinaridade: articulação aberta entre os contrários

3.3.1 Disciplinaridade: fragmentar para conhecer

Ressaltamos que os conceitos de disciplinaridade, multi, pluri, inter, trans, que trataremos a seguir, possuem diferentes compreensões não havendo um consenso entre os autores, mas apesentamos alguns que se aproximam. Na discussão sobre disciplinaridade, amparamo-nos em Morin (2003) que a compreende como organização do conhecimento científico, em relação à multidisciplinaridade, amparamo-nos em Imbernón (2016), para a discussão sobre a pluri, referendamos o que citam Sommerman (2003) e Nicolescu (1999), para entender a interdisciplinaridade, corroboramos com o pensamento de Fazenda (2008), e no caso

específico da transdisciplinaridade, Nicolescu (1999)43 é a base que norteia nosso

entendimento.

Levando em consideração o conceito de disciplina, que não é estanque e pode apresentar vários sentidos conforme o contexto, Pineau (1980) citado por Sommerman (2003), ressalta que o termo tem duas raízes semânticas, sem que necessariamente estejam ligadas, uma que está relacionada à submissão às regras, ordem, método e rigor; e outra, de origem latina – discere – “aprender”, que volta-se para o aprendizado de um conjunto de conhecimentos.

Morin (2003) por sua vez, entende que a disciplina é uma categoria de organização do conhecimento científico, ela estabelece a divisão e a especialização “do trabalho e responde à diversidade das áreas que as ciências abrangem” (MORIN, 2003, p. 105), bem como a delimitação de suas fronteiras teóricas, metodológicas, técnicas e linguísticas.

Desta forma, a disciplina se estabelece como um recorte do saber, indicando “o aprendizado ou o ensino de uma ciência, seguindo as regras e métodos da ciência a que corresponde” (SOMMERMAN, 2003, p. 45), e mesmo que esteja inserida num conjunto mais amplo de diversidade de áreas, tende a desenvolver uma autonomia o que, notadamente, leva a novos parcelamentos, isto é, uma hiperespecialização.

O crescente recorte, gera cada vez mais ilhas disciplinares estanques e fechadas, que isolam o objeto do conhecimento, destacando-o de seu contexto maior, não operando as ligações com objetos de outras áreas, transformando-o em autossuficiente, com isso, corre-se o risco de convertê-lo numa coisa, uma espécie de propriedade do pesquisador, do especialista e da área ao qual está inserido. O pensamento hiperdisciplinar vê com maus olhos qualquer tentativa de incursão ou solidarização entre as parcelas do saber, como também incide em seu próprio esgotamento.

O modelo de organização disciplinar se faz presente no contexto das universidades modernas desde o século XIX, assim como nos demais níveis de ensino, onde as próprias pesquisas acadêmicas acabam por se diluir em uma hegemonia disciplinar, recortando cada objeto do conhecimento em tantas outras partes, perdendo o elo que interliga as distinções e disjunções. Neste corpo, constituiu-se o que se chama pedagogia tradicional, baseada no pensamento cartesiano e positivista, em que o professor transmite o conhecimento e o aluno recebe de forma passiva.

43 Basarab Nicolescu é um físico teórico romeno, fundador do Centro Internacional de Pesquisas Transdisciplinares (CIRET), inspirou-se em Jean Piaget, Edgar Morin, Eric Jantsch e Lupasco, para fundamentar e criar seu conceito sobre transdisciplinaridade. É um dos autores da carta da transdisciplinaridade, autor do livro Manifesto da transdisciplinaridade, sendo o teórico ao qual nos remetemos para realizar a discussão sobre esse tema.

Como já discutimos, a complexidade nos indica que são necessárias novas formas de inteligibilidade no que concerne ao conhecimento e à realidade, dessa maneira a transdisciplinaridade se materializa como uma metodologia capaz de exprimir que o ser humano, e consequentemente, o conhecimento, não podem mais continuar sendo reduzidos, dicotomizados e simplificados, precisam ser reconhecidos com base no entrelaçar das (con)vivências, num fluxo dinâmico de construção, desconstrução e reconstrução.

Não é que a transdisciplinaridade pretende anular ou eliminar a disciplinaridade, ao contrário, até porque parte dela, todavia, propõe ampliá-la, reconhecendo todas as suas pertinências e conquistas como a “circunscrição de uma área de competência” (MORIN, 2003, p. 105) e destaque de objetos não banais para proceder a elucubrações, mas sem perder de vista também seus limites. E assim, complexidade e transdisciplinaridade encontram-se intrinsecamente ligadas, sendo aquela um dos pilares da transdisciplinaridade, juntamente com os níveis de realidade e o terceiro incluído.

Nessa teia imbricada em que se encontram a complexidade e a transdisciplinaridade, compete explicitar ainda, alguns conceitos que nos auxiliarão a esclarecer nosso modo de conduzir a inteligibilidade sobre a realidade, quais sejam: a autopoiese que, com base nos estudos de Maturana e Varela (1995), nos permite ratificar que o ser está em constante movimento de autoprodução em intrínseca relação com o meio, se autoeco-organizando, o que não só possibilita o existir, mas a capacidade de resistir enquanto organismo vivo.

O contextualismo nos informa acerca da influência do contexto em qualquer experiência, o que inclui as impressões e expectativas do observador, as circunstâncias que se desenvolvem nessa dinâmica (MORAES, 2015), o que nos leva a pensar sobre a reintrodução do sujeito cognoscente que se encontra inscrito numa cultura, numa sociedade. O reconhecimento também da existência de uma outra lógica, a do terceiro incluído, que corrobora para uma compreensão mais ampla de que a tensão entre os contraditórios existe, sendo duas faces de uma mesma realidade, e só uma lógica que prevê essas características é capaz de conciliar os opostos (NICOLESCU, 1999).

E junto desse outros dois conceitos importantes e implicados que constituem um dos axiomas da transdisciplinaridade: os diferentes níveis de realidade e de percepção, que possibilitam construir uma compreensão acerca de leis e lógicas diferentes tendo como referência as diversidades existentes entre as realidades do mundo macrofísico e do microfísico, cujas causalidades são diferentes, e por isso, é necessário o exercício de um novo nível de percepção para apreender o que nos escapa às estruturações lógico-matemáticas de explicação unidimensional.

Um exemplo que se pode observar é que a dialética hegeliana que compõe a tríade tese - antítese – síntese, encontra-se no mesmo nível de realidade que a do dinamismo de terceiro incluído: o macrofísico, entretanto, não estão no mesmo nível de percepção e compreensão e há a questão crucial do tempo. Enquanto o primeiro propõe uma sucessão no tempo de pares antagônicos com vistas a superá-los numa nova síntese, o segundo prevê a coexistência ao mesmo tempo desses opostos, tendo em vista como foi dito, promover sua conciliação.

Deste modo, percebemos que a emergência da transdisciplinaridade não se trata de algo a mais para promover uma confusão epistemológica e metodológica, mas como uma possibilidade de transcender as fronteiras disciplinares, estando entre, através e além de toda disciplina (NICOLESCU, 1999).

Nicolescu (1999b) nos chama a atenção que a necessidade de construir pontes entre as disciplinas teve seu surgimento na metade do século XX com a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade, e conforme indica Morin (2003, 2007, 2014) que o todo não é a mera soma das partes, a soma dos especialistas de cada campo disciplinar encerrado em si mesmo não é capaz de gerar um panorama que leve em conta todos os dados de um dado fenômeno ou problema, como diz Nicolescu (1999b, p. 11) “a soma das competências não é a competência: no plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio”. Por isso mesmo, na tentativa de ampliar o olhar disciplinar, compensar a hiperespecialização, promover a cooperação e o diálogo entre as disciplinas, é que se propôs a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade (SOMMERMAN, 2003).

Considerando a disciplinaridade e seus prefixos multi, pluri, inter, trans como níveis de organização do conhecimento, sinalizaremos, de forma sucinta, cada termo com o intuito de entender seus contributos em forma de uma crescente espiral na busca de maiores articulações (SOUSA, 2017), bem como se constituem importantes para o construto da transdisciplinaridade.

Fonte: Elaboração própria com base em Babette Harper et al. (1987) e Sousa (2017).