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3. Sonho de Cristal

3.4. Discurso em forma de música

Discutir as relações entre a música e o discurso “encantado” de Xuxa é um dos temas sugeridos para um trabalho futuro mais aprofundado. Apesar das vacâncias que podem surgir no decorrer deste tópico, é importante ressaltar como a apresentadora se aproximava, ainda mais, do seu público, através de suas canções.

Como já foi exposto aqui, a Rede Globo criou um universo infantil colorido, marcado por brincadeiras e fantasias. Xuxa era a mediadora entre o real e o imaginário. Com jeito de menina, atraía a atenção das mais variadas faixas etárias. O próprio destino da garota que do interior do Rio Grande do Sul se transformou em “Rainha” incentiva o público a crer na realização do sonho.

Desde seus primeiros dias, o “Xou da Xuxa” foi questionado como influência negativa às crianças. Na época, a revista Veja18 apontou algumas críticas da sociedade em torno da atração:

17 Cf.Xuxa de Neve e seus baixinhos. Caderno B do Jornal do Brasil em 15 de janeiro de 1989. 18 Cf.Que Xou é esse?.Veja, 1991, p. 48.

• Era tido como indutor de alienação infantil, remetendo as crianças a um mundo distante das agruras da vida real;

• Estimulava a competição e o consumismo entre as crianças;

• Entrava como substituto dos cuidados dos pais, alimentando a indiferença e o desrespeito dentro de casa;

• Despertava a sexualidade infantil precoce, já que Xuxa e suas assistentes usavam roupas sensuais;

• Tendia a constranger as crianças ao chamá-las de "baixinhos";

• Xuxa e suas assistentes lidavam com crianças sem apoio pedagógico;

• Ao se tornar apresentadora infantil em tempo integral, Xuxa foi acusada, por parte de setores importantes da sociedade, de querer apagar seu passado de atriz de pornochanchadas.

A figura de Xuxaz pode ser considerada bastante contraditória. Ela dissemninaa dissemina mensagens de paz, amor e proteção à natureza, indispensáveis à atual realidade. Mas como veremos assume outros discursos que incentivam relações competitivas e consumidoras.

LUA DE CRISTAL

Compositor(es): Michael Sullivan

Tudo pode ser... Se quiser será... O sonho sempre vem

Pra quem sonhar... Tudo pode ser Só basta acreditar... Tudo que tiver que ser será...

Tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar... Me dar toda coragem que puder...

E não me faltem forças pra lutar... Vamos com você, nós somos invencíveis

Pode crer...

Todos somos um e juntos não existe mal nenhum... (...)

Em “Lua de Cristal”, Xuxa faz questão de deixar clara sua crença na força do sonho a partir do pensamento positivo. E, como está inserida no dia-a-dia das crianças, processa-se como companheira até nos maus momentos, o que pode ser observado na estrofe “Vamos com você, nós somos invencíveis, pode crer. Todos somos um e juntos

não existe mal nenhum”... Ou seja, com Xuxa por perto, fica bem mais fácil de se

conquistar os desejos e se livrar do mal. Ao mesmo tempo que impulsiona o universo da magia, marca presença na vida dos fãs. Assim, de fato, ela aparece para as crianças como uma “fada madrinha” que traz o bem a todos.

Contudo, a letra também desperta questionamentos relacionados às condições histórico-sociais dos brasileiros. Se otimismo e crença no sonho fossem suficientes para mudar uma realidade, não estaríamos enfrentando tantas mazelas sociais até hoje, como pobreza, falta de habitação, saneamento, injustiças, etc. Também, deve-se lembrar de que, dentro da classe média e alta, é bem mais fácil o sonho se tornar concreto; basta uma ajuda financeira dos pais, o que, nas camadas mais populares, não acontece.

DINDA OU DINDINHA

Compositor(es): Michael Sullivan

Faz de conta, que sou a fada madrinha

Me chamem dinda ou dindinha tudo bem é o meu querer

Faz de conta, sou o símbolo da paz Entre os homens e animais, minha mágica é pra já

Faz de conta, que todos nós somos baixinhos Heróis e amiguinhos, o futuro dessa terra linda

Faz de conta, que todos nós somos baixinhos Heróis e amiguinhos, o futuro dessa terra linda

Agora é só contar 1, 2, 3, 1, 2, 3 (...)

Assim como “Lua de Cristal”, a letra acima (“Dinda ou Dindinha”) ratifica a fantasia existente em torno do mito Xuxa. Coloca-a como fada e amiga dos “baixinhos”, responsável por espalhar sentimentos bons pelo mundo. Ainda, intensifica o imaginário coletivo de “Rainha” e, heroína, “dona de poderes contra o mal”.

Aqui, também se pode abordar a relação de Xuxa com seus “amiguinhos”. Essa intimidade criada por uma competente estratégia de marketing só beneficia, ainda mais, os negócios da emissora. Enquanto Xuxa se faz amiga de todos, o mercado não pára de se movimentar em torno do seu nome, incentivando o consumismo e, associado a isso, a desigualdade social.

TERRA E CORAÇÃO

Compositor(es): Álvaro Socci e Cláudio Matta

Uma célula viva no espaço Está correndo perigo, o que faço

Pede socorro ao infinito Porque nós não ouvimos seu grito

Mas eu quero ajudar Quero viver na terra Nela vive o mais tolo dos bichos Que se expandiu, juntou tanto lixo Deus não deve estar nada contente

Uma parte de si está doente Eu não quero morrer

Quero viver na terra Sem usinas, sem guerra

(...)

Nessa letra, é categórica a preocupação de Xuxa com o meio ambiente. É apenas uma das diversas músicas que a apresentadora discute o tema. Em “Terra e Coração”, retrata os prejuízos que o homem tem causado ao planeta e mostra o quanto é importante preservá-lo.

Porém, identificada a presença de Xuxa no mercado publicitário, percebe-se uma contradição nesse discurso de “amor à natureza”. Como garantir a preservação do planeta, se ela induz o consumo de produtos da marca “Xuxa” que vêm em embalagens plásticas ou enlatadas?

MUITO PRAZER, EU EXISTO

Composição: Álvaro Socci / Cláudio Matta

Existem filhos que precisam mais carinho De mais cuidados e atenção especial E essas crianças quando muito bem amadas

Só Deus quem sabe qual o seu potencial

Seus pais conhecem um segredo do universo Da harmonia na diversificação Amar alguém dito norma é muito fácil

Longe de indiferença e discriminação

Me pergunto se a tua indiferença é natural Me pergunto em que consiste ser normal

Me pergunto qual o referencial Por que todo mundo tem de ser igual ?

(...)

Xuxa sempre passou a imagem de defensora da inclusão social, tanto que até aprendeu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar melhor com os surdos. Mostrou-se dedicada aos deficientes físicos e combateu o preconceito existente em relação a eles, tão capazes quanto os ditos “normais”. Na música “Muito prazer, eu existo”, a apresentadora leva ao público o respeito que se deve ter à diversidade do ser humano.

Pode-se notar que, de fato, a inclusão social jamais existiu no “Xou da Xuxa”. A começar pelas “Paquitas”, sempre lindas e loiras. Mas, ao defender a diversidade social,

Xuxa aproxima-se de outros tipos de público, conquistando, assim, mais audiência e mercado consumidor.

Conclusão

É importante observar que, depois de explicitadas as relações entre o formato do programa “Xou da Xuxa”, que durou seis anos no ar, com o público alvo, a consagração do mito Xuxa pode ser analisado de modo bem mais profundo.

Como aqui foi exposto, o homem contemporâneo vive uma nova forma de subjetivação devido à diversidade de culturas do mundo globalizado. Sua identidade é construída e reconstruída permanentemente, ao longo dos anos, de forma fragmentada. E, por viver num universo cada vez mais marcado pela presença da mídia, desenvolve-se com base também nessa “experiência mediada”.

Por isso, Maria da Graça Meneghel, uma das mulheres mais famosas do Brasil, é um importante fenômeno de comunicação das últimas duas décadas. Complexo na sua formação, Xuxa surgiu logo após o término de uma ditadura militar, que trouxe ao País severas repressões sociais e artísticas. Como parte da repressão, vários tabus sexuais foram sendo derrubados e absorvidos pela mídia, processo que traz repercussão até os dias de hoje.

No percurso de sua carreira, ampliou o público-alvo e criou um discurso afinado com o universo infantil, em parte para se manter na mídia e também arrematar consumidores. Xuxa participou do dia-a-dia de toda uma geração: crianças que cresceram jogando videogame, que priorizam a individualidade e tendem a manter para si valores de que é preciso ter fama, sucesso e dinheiro para alcançar status social. A própria Xuxa, filha de uma geração que entusiasticamente acompanhou os concursos de misses e os campeonatos de futebol, manteve para si a determinação de se destacar no jet-set da moda.

Dessa forma, a televisão integra uma sociedade em que o “real” se torna acessório de um “espetáculo” maior. A fuga do cotidiano, portanto, desse “real”, deve- se à esperança de, um dia, talvez, o público se tornar tal como os heróis da mídia, que se alimenta desse desejo para difundir seus produtos simbólicos.

Com toda a magia criada pela emissora de maior influência no País, a Rede Globo, seria quase impossível Xuxa não conquistar a fama que, até hoje, a acompanha. Beleza e carisma foram grandes aliados nessa construção de uma imagem fantasiosa em torno de uma estrela de TV que, até hoje, impera. Numa época em que a programação infantil era escassa, serviu de modelo para o mundo como apresentadora e, ao mesmo tempo, “melhor amiga” dos “baixinhos”. Promotora de um discurso encantado, em que a força do sonho pode transformar tudo ao redor, Xuxa conseguiu “neutralizar” o passado como símbolo sexual, trazendo aos pequenos novas formas de vestir, dançar, falar, comandando grande parte da geração de 80 a partir de seu “feitiço” de “fada madrinha”. E, apesar das críticas referentes a seu trabalho, não perdeu audiência. Considerada “babá eletrônica” por muitos, permitia aos pais mais atenção ao trabalho, enquanto ela brincava quatro horas diárias com os seus filhos.

Contudo, por trás de toda essa “amizade”, a artista não parava de lucrar. Quanto mais amigos fazia, maior o seu rendimento. Sandálias, bolsas, bonecas, revistinhas em quadrinho, brinquedos, todos da grife “Xuxa”, que, em cifras, rendeu-lhe o título de “garota dos cem milhões de dólares”. Dessa forma, era companhia integral dos fãs, que, ao entrarem nesse “espetáculo”, esqueciam a realidade exterior. No “planeta Xuxa”, havia uma aparente democracia, onde todos pareciam brincar juntos, em harmonia. Brinquedos, os melhores possíveis, sem falar na dança, música e magia... Nada gratuito, pelo contrário.

Apesar de não haver ingenuidade na carreira televisiva de Xuxa – tudo calculado para garantir sucesso – muitas alegrias foram deixadas no caminho. Xuxa contribuiu para a construção desse universo infantil que, apesar de não ser suficientemente adequado, cedeu às crianças uma realidade bem mais distante da realidade contrastante, tão imprópria aos chamados “baixinhos”.

Xuxa é talvez a mais exemplar das estrelas que povoam o imaginário brasileiro. Amá-la, muitas vezes, significa fazer parte de um esquema que tem objetivos muito específicos. Imitá-la é o exercício de um sonho que traz inacessibilidades muito concretas, afinal não é todo o dia que o sonho de uma criança em também ser uma “Rainha”, por exemplo, transforma-se em realidade.

Anexos

* Anexo A

Xuxa é capa da revista “Contigo” em 1986

Xuxa com as “Paquitas” (1ª geração) e no palco do Xou da Xuxa

Xuxa na apresentação do “Clube da Criança” na Manchete, em 1983

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