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CAPÍTULO 1 – METODOLOGIA E APONTAMENTOS TEÓRICOS

1.2 Para pensar História e Identidade no discurso ficcional

1.2.1 Discurso, História e Memória – cruzamento necessário

“O homem põe em marcha a linguagem.” (Octávio Paz)

O discurso sempre se prestou como matéria apropriada e maleável para absorver a energia do pensamento sob forma de símbolos em trajeto pelos significantes. A formação discursiva se define pela sua relação com a formação ideológica, isto é, os textos que fazem parte de uma formação discursiva remetem a uma mesma formação ideológica. A formação discursiva determina “o que pode e deve ser dito”, a partir de um lugar historicamente determinado.

As produções simbólicas se inscrevem no mundo social a partir da visão do sujeito que as produzem, dos componentes ideológicos de sua cultura peculiar, os quais se externalizam, principalmente, pela linguagem verbal. Nesse sentido, é necessário o cruzamento entre sujeito/discurso e história, bem como a conseqüente reflexão em torno da formação e determinação dos sujeitos e suas representações.

33 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da Ficção – Diálogos da história com a literatura. In: Revista da História das Idéias – História e Literatura. v. 21, Universidade de Coimbra, 2000, p. 37. 34

O paradigma da modernidade emerge a partir da conceptualização do indivíduo como centro de uma reinterpretação fundadora de autoria de si e do mundo, mas sob o impacto determinante das referências hegemônicas dos processos políticos que pautaram os sistemas da cultura ocidental. Durante a modernidade, como assinalaram os pensadores da Escola de Frankfurt, forjou-se um edifício cultural por meio de estratégias de exclusão/dominação, fomentando a construção de sistemas elitistas de distribuição de poder, inclusive do poder de representar e de interpretar. Nesse sentido, Freda Indursky entrecruza discurso, identidade e memória como topos de importância indiscutível para o debate relacionado com as múltiplas questões que envolvem a linguagem,

pois instiga uma série de reflexões sobre a formação e determinação histórica dos sujeitos e suas representações lingüístico-ficcionais, representações essas que, acionadas pela memória emancipada, tornam consciente o que o esquecimento, na sua capacidade de impor um limite negativo ao conhecimento, suprimiu da lembrança e relegou ao esquecimento.35

É pelo e no discurso, como instância de articulação entre a linguagem e sua exterioridade, que se opera a construção/destruição de identidades. Para Indursky,

identidades são concebidas aqui como movimentos contínuos/ descontínuos das relações que sujeitos, comunidades, nações, instituições estabelecem imaginariamente com o real, produzindo uma interface que vem garantir sua circulação e inserção dentro de certas condições sócio- históricas e discursivas que são, elas próprias, constitutivas daquelas relações. Nesse sentido, as identidades resultam de formas de subjetividade, cujas representações simbólicas são o lugar privilegiado de manifestação ideológica.36

Por outro lado, a memória é um fator inerente à construção de identidade na sua capacidade de filtrar e manter sentidos que atravessam o discurso enquanto espaço no qual o sujeito se constrói e se inscreve. A memória, mais do que um arquivo classificatório de informação que reinventa o passado, é um referencial norteador na construção de identidades no presente. A memória, contudo, só ganha existência pela simbolização que a linguagem possibilita, e se a memória é, portanto, um fator inerente à construção de identidade, o discurso é o espaço de conhecimento e de interação no qual o ser humano se faz sujeito.

35 SCHIMIDT, Rita Terezinha. Em busca da História ou: quando o objeto começa a falar. In: Ensaios 15 – Discurso, Memória e Identidade. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 2000. p. 8.

Fernando Catroga, em seu estudo “Memória e História”, aponta para o fato de que a memória jamais poderá ser um mero registro, já que é uma representação afetiva feita a partir do presente dentro da tensão tridimensional do tempo. Daí seu caráter seletivo e o entendimento de que, enquanto expressão coletiva, a memória é instância solidificadora da identidade e, por isso mesmo, não escapa à instrumentalização do poder a partir da seleção do que se recorda e do que, consciente ou inconscientemente, se silencia.

Por extensão, toda recordação, quando representada em narrativa, tende a organizar, de forma coerente, o casual e os efeitos do real-passado quando foi presente, como se no caminho não houvesse esquecimento; por outro viés, mas na mesma direção, a identidade é uma construção social dialógica entre o eu e o outro, que pressupõe cadeias de filiações identitárias, que distingue e diferencia o indivíduo em relação aos outros, ao mesmo tempo em que impõe, em nome do “eu”, deveres e lealdades que criam um sentimento de pertença a grupos ou entidades, e também, numa perspectiva temporal, de sobrevivência na memória de gerações.

Assim sendo, entende-se porque é que a memória produz imagens em que se misturam história e ficção, bem como o entrelaçamento do campo factual com o campo ético e estético. Memória, então, é um produto subjetivo que não se diferencia da imaginação? Para Catroga, a representação imaginária pode ter ou não referencialidade, enquanto o ato de recordar aceita subordinar-se ao princípio da realidade, mobilizando argumentos de validação para as evocações do passado, tendo em vista garantir a fidelidade do narrado.

Esse processo tende a encobrir sua convocação seletiva do que já existe e desemboca em movimentos de transparência e/ou ocultamento narrativo, permeabilizados pelo processo constitutivo do sujeito enquanto ser na e da cultura, e que se materializam em estruturas discursivas constituídas e não constituintes que só podem ser interrogadas ou interpretadas ao nível do que dizem. Essa convicção aproxima-se daquela de Paul Valéry, para quem o passado é uma categoria mental moldável pela subjetividade de quem se propõe a recuperá-lo.

Assim, a reconstituição de épocas passadas ancora-se em procedimentos contraditórios e escorregadios que brotam da liberdade imaginativa de reviver tempos distintos do nosso, ordenando-os e reorganizando-os a partir do presente, sob o signo de um “tempo do agora”. A escrita, diz Bordieu, “retira a prática e o discurso do fluxo do tempo”. Ao que acresce Harvey: “...todo sistema de representação é uma espécie de espacialização que congela automaticamente o fluxo da experiência e, ao fazê-lo, destrói o que se esforça para representar.”37

A inferência de que toda representação trata de significar, através de um elemento representante, a presença de um ausente, sugere a possibilidade de “simulação”, pelo discurso, no qual confluem o mundo das coisas representadas e o mundo das pulsões do sujeito que as representa – a “simulação”, pelo discurso, aproxima significativamente os campos da ficção e da história.

Paul Ricoeur38, em Tempos e Narrativa – em que investiga as operações mediadoras entre a experiência viva e o discurso, através dos conceitos aristotélicos de mito e mimese –, mostra que toda história, mesmo a mais estrutural e menos narrativa, está sempre construída a partir de fórmulas que governam a produção da narração, entendida no sentido aristotélico de “pôr em intriga ações representadas”. Para o autor, as entidades que dirigem os historiadores (sociedades, classes, mentalidades) são quase personagens, dotadas de propriedades que são dos heróis singulares ou de indivíduos comuns. E mais, Ricoeur entende que as temporalidades históricas sustentam uma grande dependência em relação ao tempo subjetivo, ou, no seu dizer, “entre o que foi um dia e já não é” e os discursos construídos para “tomar o lugar de” ou representar este passado.

Em suas reflexões sobre a problemática entre tempo e narrativa no texto literário, Paul Ricoeur admite um papel mediador para o dinamismo da composição da intriga, entre os aspectos temporais prefigurados no tempo prático e refigurados na experiência temporal do leitor, a partir do tempo da configuração textual. Uma reflexão que aponta para a compreensão dos estágios de composição da intriga, sua

37 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 191. (Bourdieu é

citado por Harvey).

38 RICOEUR, Paul. Tiempo y narración I: Configuración del tiempo en el relato histórico. México:

conexão interna e sua inter-relação com os aspectos temporais da experiência do homem, estabelecidos pela transposição metafórica indo, do campo prático para o campo do mito.