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CAPÍTULO 4 – REPRESENTAÇÃO DA HISTÓRIA E REGISTRO DE

4.4 Nacionalismo, Identidade e Utopia – a problemática fundamentação

“A ‘identidade nacional’ foi desde o início, e continuou sendo por muito tempo, uma noção agonística e um grito de guerra.” (Zygmunt Bauman)

O paradigma latente em Quarup e A Geração da Utopia, como potencialidade de construção de identidade cultural, é a questão das culturas nacionais. Para Hall,

as culturas nacionais são uma forma distintamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político” do estado-nação, que se tornou assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas.229

As significâncias que transitam pelas narrativas analisadas permitem a articulação de significados culturais que potencializam a leitura da história como

228 Idem, ibidem, p. 262.

organizadora das ações, das quais a ficção se apropria, como modo de inferir sentido a representações das experiências compartilhadas no tempo e no espaço. Nesse processo, Quarup se pretende um grande mosaico cultural do Brasil. No romance estão ficcionalizados desde o nordeste pobre e seus referenciais de opressão colonial: passando pela metrópole (Rio de Janeiro) e seus conectores civilizatórios (e decadentes); a dizimação das populações indígenas; o centro geográfico do Brasil minado pelas formigas; a igreja católica e sua opção (na América Latina) pelos pobres. Todos esses elementos compõem uma estratégia discursiva que conecta, deliberadamente, os personagens a um destino nacional preexistente, a uma continuidade que fornece ao presente uma condição de repositório de uma longa e orgânica evolução.

Ao continuum histórico, organizado no plano dos conteúdos, antepõe-se a forma narrativa cujos capítulos fecham-se, cada um deles, em espaços demarcados por códigos culturais específicos de sua natureza tanto espacial quanto temporal – um mapa revelador de uma geopolítica marcada por uma arquitetura violenta e excludente. O drama da nação brasileira, em Quarup, configura-se na fissura cultural estabelecida no interior da qualidade coesiva da unidade territorial necessária à concepção de nação.

Também em A Geração da Utopia, o vetor ideológico é a retomada do território e a reconfiguração da identidade nacional. Isso sugere uma idéia predominantemente espacial – povo e território devem pertencer um ao outro, exercendo uma influência mútua e benéfica sobre várias gerações. Assim,

a terra natal torna-se um depósito de memória e associações históricas, o local onde viveram, trabalharam, oraram e lutaram os “nossos” sábios, santos e heróis. Tudo isto torna única a terra natal. Os seus rios, costas, lagos, montanhas e cidades tornam-se “sagrados” – locais de veneração e exaltação, cujos significados íntimos apenas podem ser compreendidos pelos iniciados, ou seja, os membros autoconscientes da nação. As riquezas da terra também se tornam exclusivas do povo: não são para uso nem exploração “alheios”. O território nacional deve tornar-se autônomo. A autarquia é uma defesa da terra natal sagrada, bem como dos interesses econômicos.230

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A questão da identidade, tanto coletiva quanto individual, está presente nas ações de Quarup e A Geração da Utopia como força narrativa. Os personagens conectam o individual ao coletivo de forma a dar força ou estabelecer um procedimento ficcional verossímil capaz de impulsionar seu código ideológico. Nando e o Sábio constituem-se dispositivos discursivos que ligam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos. Paradoxalmente, são esses eventos que afrouxarão suas fortes identificações pessoais e problematizarão o sentido do coletivo.

Nando, na medida em que “percorre” o Brasil, que entra em contato com a multiplicidade e fragmentação de seus códigos culturais e se afasta de seus (fortes) referenciais identitários, alavanca na narrativa a necessidade da reapropriação do território e da cultura – da identidade nacional. Como efeito derivativo, a “República Guarani”, sonhada na alienação do Claustro, revela-se uma fantasia sobre os índios – os donos da terra – como “puros” e de seus lugares exóticos como “intocados”.

O Sábio fragmenta sua utopia no próprio território. A partir do confronto de suas convicções com os movimentos sociais coletivos, imerso na geografia cultural de Angola, suas certezas identitárias dissolvem-se no continuum histórico e nele encontram ressonância. Seus companheiros de utopia já optaram pela solução individual e, ao fazerem, tornam-se representações ficcionais dos imperativos históricos.

Como efeito da renúncia ao projeto coletivo, o Sábio se voltará, como recuo identitário defensivo, a reidentificar-se simbolicamente com a tradição, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Nesse percurso, o individual entrecruza-se com o coletivo – o Sábio planta uma árvore para capturar o espírito de Mussole e a rega todos os dias, tentando reconstruir “a situação do velho do Kimbo, que sabe não poder ser mais claro e vê que o outro não o entende231; o povo angolano volta-se para o culto de Dominus, retirando seus recursos identitários de diferentes e complicados

231 PEPETELA, Op. Cit., p. 263.

cruzamentos e misturas culturais que apontam para as qualidades mais negativas da globalização – a assimilação e a homogeneização.

Ao contrário, Nando se dispersa na narrativa como efeito de sentido da dispersão cultural coletiva. No esforço de (re)centrar-se no espaço e no tempo simbólico, Nando utiliza-se do último recurso, a viagem ao centro geográfico do Brasil, “assinalar na terra o lugar do coração do Brasil”, como o lugar específico, concreto, o ponto, a matriz histórica da moldagem e formação da identidade brasileira, provando que “o que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza.”232