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CAPÍTULO 1 – METODOLOGIA E APONTAMENTOS TEÓRICOS

1.2 Para pensar História e Identidade no discurso ficcional

1.2.2 Rupturas e deslocamentos nos discursos do conhecimento moderno

“O destino de uma época que comeu da árvore do conhecimento...” (Max Weber)

As correntes teóricas da literatura do século XX construíram suas bases ou numa relação de negação/distanciamento da perspectiva histórica ou na problematização da relação possível entre Literatura e História. Especialmente, as segundas exprimiram a complexidade interseccional entre os dois campos e, ao mesmo tempo, apontaram a possibilidade de uma reflexão sobre como conceber, representar ou exprimir relações entre a vida e a arte independente das referências expressas que esta possa fazer àquela, mas dependente da experiência singular do sujeito da modernidade e de uma série de deslocamentos nos discursos do conhecimento moderno.

Segundo Stuart Hall39, o primeiro deslocamento importante refere-se às tradições do pensamento marxista. Louis Althusser afirmou que, ao colocar as relações sociais (modos de produção, exploração da força de trabalho, os circuitos do capital) e não uma noção abstrata de homem no centro de seu sistema teórico, Marx deslocou duas proposições-chave da filosofia moderna: que há uma essência universal de homem e que essa essência é o atributo de “cada indivíduo singular” (sujeito real).

O segundo grande deslocamento no pensamento ocidental do século XX vem da descoberta do inconsciente por Freud. A teoria freudiana desmonta o conceito de sujeito cognoscente e racional de uma identidade fixa e unificada.

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O terceiro deslocamento está associado ao trabalho do lingüista Ferdinand Saussure, para quem nós não somos, em nenhum sentido, os autores das afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Utilizamos a língua para reproduzir significados apenas nos posicionando no interior das regras da língua e dos sistemas de significados da nossa cultura. Além disso, os significados das palavras não são fixos, surgem nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras, no interior do código da língua.

O quarto deslocamento ocorre no trabalho de Michel Foucault, que destaca um novo tipo de poder, “o poder das disciplinas”, cujo objetivo é produzir um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil.

E o quinto deslocamento seria o impacto do feminismo, tanto como crítica teórica quanto como movimento social, no questionamento político da sexualidade e da divisão doméstica do trabalho, politizando a subjetividade e o processo de identificação. Se é possível falar em exemplaridade em relação a essas rupturas é porque suas práticas diluidoras de paradigmas propiciam, sob o eixo da fragmentação, a instauração de novos caminhos para a leitura da História, projetando redefinições da concepção de sujeito e de sua relação com o objeto de estudo. Dentro desse quadro, tudo conspira para o deslocamento complexo de um campo teórico para outro, como modos de construir sentidos, que organizam tanto as concepções quanto as ações do homem, num tempo e num espaço que denominamos Histórico.

Vislumbra-se um diálogo inovador e radical com a História que já não se contenta com a mera representação do verossímil. Não se trata mais de textos que tangenciam o histórico pela utilização de informações verídicas que são objetos da história, mas de um discurso organizador da história por meio da ficção, eliminando barreiras entre os dois campos, insistindo no estabelecimento de elos de comunhão. Estamos próximos de uma perspectiva que faz interagir os dois discursos. As fronteiras entre um e outro discurso são tênues, e, por causa disso, começam a apagar-se.

Se a Literatura caminha pelas sendas da ficção em busca da própria verdade e da verdade do homem, a História existe enquanto discurso sobre a verdade. A incorporação da História na tessitura narrativa implica uma mirada crítica dos acontecimentos extratextuais, que já não satisfaz o equilíbrio entre o narrar e o descrever (Lukács) como marca do romance histórico. A reinvenção e o diálogo do presente com o passado “serve tanto para mostrar que a literatura é historicamente condicionada como para evidenciar que a história é discursivamente estruturada.”40

A dispersão do sujeito, a desconstrução da linguagem, o descrédito na acumulação mnemônica geram, em nosso tempo, o (des)entendimento de que a ficção e a História não podem ser avaliadas, nos limites discursivos, como constituição de verdades ou dementiras. A História e a fábula se tocam e se trocam em figurações metafóricas ou metonímicas que conciliam o real e o imaginário, configurando a impossibilidade da reconstrução de um real-passado sem o transpassar de um processo discursivo. Atenta às fronteiras tênues do conhecimento, Pesavento se abre “à passagem e ao diálogo dos dizeres e saberes sobreo mundo nesta nossa época de interdisciplinaridade”, para concluir que

escrever a história é pensar sobre uma alteridade, um outro, sobre algo que se passou por fora da experiência do vivido e onde toda experiência narrativa se configura como um “ser como”, como um “ter sido”, plausível, verossímil.41

Pela mesma lógica é possível afirmar que a literatura, enquanto força de representação discursiva, captura, no viés imaginativo, as margens dos discursos hegemônicos, entalhados nos interstícios das instituições e nas brechas dos aparelhos de poder e de conhecimento. Adorno já afirmava que “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes de sua forma.”42

Os textos falam e testemunham um tempo e um espaço, menos pelas referências a fatos comprováveis do que pelas respostas que eles geram às

40 SANTOS, Pedro Brum; VÉSCIO, Luiz Eugênio. (org.). Literatura e História: perspectivas e

convergências. São Paulo: EDUSC, s/d, p. 14.

41 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras do Milênio. In: Fronteiras do Milênio. Porto Alegre:

Editora da Universidade/UFRGS, 2001, p. 9-10.

controvérsias da realidade na qual eles se inserem. Assim, postula-se a capacidade desdobrada da literatura de não só ficcionalizar os fatos da realidade, mas também de, na plenitude de sua potencialidade ficcional, fazer história.

Fredric Jameson, sob o impulso utópico do legado marxista, situa o discurso histórico no mesmo nível de qualquer realização retórica e lhe confere o estatuto de uma textualização que não tem nem mais nem menos autoridade que àquele que se pode reclamar da própria literatura. Jameson insiste em que a história tem um referente que é real, portanto, não a considera como um texto, ainda que reconheça que ela só nos é acessibilizada sob forma textual. A narrativa goza de um lugar especial entre essas formas em virtude de seu poder de dominar os efeitos corrosivos dos processos temporais.

É a narrativa, concebida como “ato socialmente simbólico”, que, por sua forma e seus conteúdos, dota os acontecimentos de significado que, apreendido nos seus efeitos, aponta para a própria história como “causa-ausente”. É a política – os valores, instituições e práticas políticas – o conteúdo último da narrativa como ato simbólico, do qual a literatura constitui um exemplo privilegiado por ser a atividade mais autoconcientemente simbolizadora da cultura.

Entretanto, o aparato poético do alto modernismo – que começa com o Romantismo – reprime a história com tanto êxito que o político, finalmente, foi convertido em um genuíno inconsciente, do qual a narrativa é um ato socialmente simbólico. Por esse viés, é necessário repensar o conceito de ideologia como “a estrutura social ou lógica coletiva da história”. Para Jameson, ideologia não é uma distorção de uma realidade perceptível, mas sim um intento de transcender as relações insuportáveis da vida social, que indica seu impulso utópico e atinge a noção de História como história da redenção.

A narrativa alcança uma posição privilegiada no mundo cultural porque permite uma representação tanto da sua sincronia quanto da sua diacronia, das continuidades estruturais e dos processos pelos quais aquelas continuidades se desenvolvem e se recompõem no tipo de produção de significado que encontramos em registros, tais como as novelas.

Ainda no campo da interpretação marxista, é relevante o estudo empreendido por Edward Said sobre o pensamento de Gramsci que, segundo o autor, teve conseqüências importantes para a História e para a Literatura. Para Gramsci, na leitura de Said, a disputa social básica é com relação à hegemonia, mas também o controle de geografias essencialmente heterogêneas, descontínuas e desiguais. A repercussão dessa posição se reflete tanto na História quanto nas questões de identidade, tornando-a instável e provisória, e aquela instabilizada por mudanças constantes. Gramsci criou uma apreensão, em suas coordenadas fundamentais, essencialmente geográfica, territorial da história humana e da sociedade, e concebia a política como uma disputa por território a ser conquistado, controlado, dominado, defendido, ganho.

Said43 enumera algumas regras que podem guiar a leitura de Gramsci:

1. nada é natural no mundo e as idéias não nascem espontaneamente; portanto, tudo que se escreve está contaminado pela política, pelo poder e pela coletividade. Os textos escritos estão sempre situados;

2. Gramsci se opôs sistematicamente à tendência a homogeneizar, igualar tudo que podemos chamar de função temporalizadora; se opôs também a ver o funcionamento da História e da sociedade conforme as leis deterministas da economia, da sociologia ou mesmo da filosofia universal;

3. Gramsci está interessado nas idéias e nas culturas como modos específicos de persistência no que chama de sociedade civil, composta por muitas áreas freqüentemente descontínuas;

4. a História deriva de uma geografia descontínua. Daí que a situação do escritor também é marcada pela natureza momentânea de sua posição, dramatizando sua própria contingência física;

5. ligado a isto, a maior parte da terminologia de Gramsci – hegemonia, território social, blocos históricos, conjunto de relações intelectuais, sociedade civil e política, classes emergentes e tradicionais, territórios, regiões – é o que Said chama de “crítica geográfica”, em vez de enciclopédica, nominativa ou sistemática: “sobretudo penso que Gramsci está interessado em usar termos para pensar a sociedade e a cultura como atividades produtivas que ocorrem em um território.”44

Tudo isso torna a identidade instável e muito provisória. A compreensão do mundo histórico-social é de tal modo espacial em Gramsci a ponto de destacar as instabilidades induzidas por mudanças constantes com importantes conseqüências para a História e para a crítica literária sob o ponto de vista de fraturas ou disjunções que são coladas temporariamente, como uma questão de contingência.

Said ressalva que os vários modos de interpretação baseados na temporalidade são absolutamente necessários e essenciais. Acrescenta, porém, que, ao longo da história, a geografia do mundo mudou tanto que é “impossível tentar reconciliações entre história e literatura sem levar em conta as novas e complexas variedades de experiências históricas disponíveis para nós no mundo pós-eurocêntrico de hoje.”45

1.2.3 Tempo e Espaço: efeitos de deslocamento sobre os processos identitários e