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2 DOS DISCURSOS QUE NOS PAUTAM

2.2 O DISCURSO DO JORNALISMO DE REVISTA

Elas são coloridas, fascinam imageticamente, o papel é brilhante e, dificilmente, será empregado para embalar o peixe no dia seguinte a sua publicação, como costumam profetizar alguns jornalistas em relação ao jornal velho. As discrepâncias entre revistas e jornais não se resumem ao aspecto material. Elas são expressão de uma fórmula jornalística cujos princípios respeitam um tempo, um espaço, uma linguagem e um sujeito (tanto produtor, quanto consumidor) inigualáveis. É a mistura de tudo isso que têm proporcionado às revistas e ao seu jornalismo “[...] um lugar diferenciado no rol de opções informativas disponíveis no âmbito midiático” (TAVARES; SCHWAAB, 2013, p. 27).

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Há algum tempo, o mercado editorial de revistas brasileiro vem experimentando uma dura crise. Inúmeros títulos estão deixando de circular (Alfa, Gloss, Bravo! e Lola), outros migrando apenas para a versão digital. A editora Abril é uma das mais impactadas por esse novo cenário de reestruturação jornalística. O grupo já demitiu centenas de jornalistas, vendeu títulos – entre eles, as revistas Placar, Contigo, Você S/A, Você RH, Ana Maria, Tititi e Arquitetura e Construção para a Editora Caras, que em 2014 já tinha absorvido outros dez títulos — Aventuras na História, Bons Fluidos, Manequim, Máxima, Minha Casa, Minha Novela, Recreio, Sou+Eu, Vida Simples e Viva Mais. A revista masculina Playboy foi um dos últimos a deixar de ser editado, em 2015, de acordo com Gonçalves; Rodrigues, 2015, http://www.portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/72569/ editora+abril+passa+por+nova+reestruturacao+vende+titulos+e+planeja+demissoes.

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Charaudeau (2006) não está se referindo a nenhum veículo em particular quando trata das características do discurso jornalístico, e sim ao discurso da mídia como um todo. Não julgamos haver comprometimento teórico em estendê-las ao discurso do jornalismo sindical.

Existe um emaranhado de dissimilitudes entre o jornalismo de revista e o de jornal45. Scalzo (2003, p. 14) ajuda a demarcar fronteiras: “Enquanto o jornal ocupa o espaço público, do cidadão, e o jornalista que escreve em jornal fala sempre com uma platéia heterogênea, muitas vezes sem rosto, a revista entra no espaço privado, na intimidade, na casa dos leitores. Há revistas de sala, de cozinha, de quarto, de banheiro”.

Estar na convivência de um discurso de revista é aprender e se divertir, simultaneamente. Aprender e apreender, já que naquele objeto, naquela marca, o leitor, mais que adquirir conhecimento sobre algo, é orientado. São os regimes de visibilidade (PRADO, 2013) que cada revista oferece que lembram quase um movimento de adestramento. Faça o que eu digo que você ficará hábil para isso, para aquilo. Faça o que eu digo que você terá saúde, será forte. Quanto ao entretenimento, ele se confirma seja por parte da inserção de pautas como cinema, televisão, música, teatro, artes plásticas, seja pela linguagem, que funde análise, reflexão, leveza e criatividade.

Falar de revista é falar de um discurso segmentado, especializado. “[...] as revistas fazem parte do grande aparato classificatório que nos dispõe em escaninhos segundo o que necessariamente nos interessa” (LAGE, 1982, p. 89, grifo do autor). O discurso noticioso das magazines não parte só do interesse público, mas do interesse do público. Daquilo que sua cartela de assinantes quer saber. Do jeito que imagina-se que este coletivo queira saber. Dessa forma, um leitor de Veja jamais terá a mesma identidade do leitor de Revista do Brasil46. Aprioristicamente, eles estão segregados pelo perfil editorial que cada uma das revistas diz assumir.

A segmentação é um fenômeno que coloca na vitrine como a sociedade vai se construindo (BUITONI, 2013, p. 116). Se de um tempo para cá os títulos gays não param de crescer nas prateleiras, esse até pode ser o prenúncio de que estamos ficando menos preconceituosos, de que os dogmas religiosos não influenciam mais com o mesmo ardor do passado o comportamento dos sujeitos. Nada disso, porém, suplanta o sucesso deste público como potencial consumidor. O pink money47 atraiu a atenção de empresários donos de vários negócios (bares, boates, vestuário...) e, claro, dos da comunicação, apta a avolumar lucros.

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Comparamos a revista ao jornal porque este é o seu “irmão” mais próximo.

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Cumpre ressaltar que consideramos a Revista do Brasil jornalismo sindical produzida em formato de revista. No próximo subcapítulo detalharemos esta questão.

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Desde o seu surgimento48, é que as revistas se destinam a públicos mais restritos. E essa é uma dinâmica de mão dupla: o veículo formatou públicos e foi formatado por eles. E a curva de títulos preocupados em estreitar laços com os leitores é ascendente.

No conjunto das revistas de informação nacional, esse critério sofre injunções socioeconômicas, sem desprezar nuanças socioculturais. A diferença entre elas se corporifica nos arranjos jornalísticos. Como não há, na configuração editorial de Veja49 e Época50, para ficarmos em dois exemplos, seletividade demográfica, por gênero ou faixa etária, é, eminentemente, o discurso51 que garante às revistas deste tipo uma identidade singular, que encontra eco num relativo nicho do público. Assinar Veja é comungar com um jornalismo adequado – supostamente – a um legado discursivo diferente do de Época.

As revistas estão no entremeio de uma prática - como lembram Tavares e Schwaab (2013, p. 28) – “[...] de condições de produção e recepção correspondentes a contextos espaçotemporais nos quais se apresentam e se formulam representações e mediações”. Isso requer que a pensemos na órbita de uma comunicação que toca toda sua complexidade, que é extensiva ao seu discurso.

Iniciemos pelo “tempo das revistas”. Ele não se mede com a ampulheta contemporânea, que se vira e revira a cada segundo, como na ambiência noticiosa online. Ele é contado em dias (às vezes trinta, quando o veiculo é mensal), e não em minutos, como ocorre nas redações dos jornais diários. O passado e o futuro intersecionam um presente que – salvo exceções – nega uma linearidade com os sentidos do “tempo vivido”.

A atualidade jornalística das revistas não está restrita ao fator “novidade”52. Para Benetti, Storch e Finatto (2011), o “novo”, nas revistas, é como uma espécie de gancho53

de retomada de temas já explorados. Tais “novidades” ganharam a intepretação do trio de autores como meta-acontecimentos.

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O surgimento do veículo revista no cenário mundial data de 1663, na Alemanha. O nome da publicação era Erbauliche Monaths-Unterredungen que, em língua portuguesa, seria Discussões Edificantes Mensais. Já no Brasil, ela chegou com a Corte Portuguesa. As Variedades ou Ensaios de Literatura, editada em 1812, é tida como o título inaugural.

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A editora Abril, semanalmente, publica edições da Veja São Paulo e Veja Rio (Vejinha), nas versões impressa e digital. São revistas à parte, que respeitam fatores geográficos.

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A revista Época, fundada pela editora Globo em 1998, possui a segunda maior tiragem do segmento. Segundo dados da ANER (2015), a média de circulação entre os meses de janeiro e setembro de 2014 foi de 390.709 exemplares.

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Isso não quer dizer que não seja o discurso um dos indexadores responsáveis pela segmentação de revistas femininas, masculinas, entre outras, que se destinam formalmente para uma fração de público. Achamos apenas que ele é o componente determinante no caso destas duas revistas.

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A conotação de novidade aqui é de algo que é feito ou visto pela primeira vez.

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No jargão jornalístico, “gancho” é o pretexto que oportuniza outro trabalho. Um fato que dê margem a outro, que faça a vez de ponte.

[...] os eventos que permitem dizer algo além de si: os fatos e eventos são mero pretexto para falar “de outra coisa”, que é exatamente o tema de longa duração. Utilizando uma figura de linguagem, o meta-acontecimento seria a ponta da geleira e que permite retomar o tema que realmente interessa: a força da indomável natureza. Vemos isso com frequência no jornalismo de revista: os mesmos temas, eternamente retomados por pequenos eventos que lhes conferem a aparência de novidade. (BENETTI, 2013, p. 53, grifos da autora).

Aferimos que essa particularidade seja transformada numa linguagem condicionada à experiência de um ciclo temporal determinado pelo ritmo de circulação (periodicidade) de cada revista. A narrativa jornalística das revistas não só modaliza a temporalidade dos fatos em conformidade com seu perfil editorial, como imprime neles a sensação de que os acontecimentos se repitam nessa frequência. Seria o jeito do discurso jornalístico (e o das revistas não foge à regra) atender a uma de suas auto necessidades: de evitar um desencaixe do tempo do mundo e o da produção jornalística (FRANCISCATO, 2003). Aliás, pode não parecer notório num comparativo imediato com os demais dispositivos midiáticos (fundamentalmente, com a internet), mas o modo como o critério de noticiabilidade “novidade” é trabalhado pelos impressos tem contribuído no retardo de seu desaparecimento.

O discurso das revistas de informação é simples, mas nunca medíocre. A audiência desse produto sabe que os fatos nesse suporte não virão engessados pelo cronômetro, estrangulados pelas cercas invisíveis erguidas em função de laudas, e que a narrativa não se contenta em responder as seis perguntas básicas do lead (o quê?; quem?; quando?; onde?; por quê?; e como?).

Repousa sob o discurso das revistas um “estigma nostálgico” (LAGE, 1982, p. 86-87), vaporizador de valores, convicções, sentimentos dos tempos idos. Reminiscências que representam a “consciência de uma época”, segue Lage (1982, p. 87), que estão expressas – como na arquitetura, na decoração – no bloco discursivo de cada um dos títulos (diagramação, nome, assuntos abordados...).

O discurso jornalístico da revista flerta constantemente com a literatura. Brinca com as palavras, faz com que elas aliciem novos sentidos, abusa das figuras de linguagem (e a metáfora tem cadeira cativa na tessitura discursiva das revistas), dos adjetivos. Em princípio, poderíamos julgar essa uma relação incestuosa, inconciliável, já que é a credibilidade que faz do jornalismo um campo social (BERGER, 1998) reconhecido54. A polêmica foi superada, na medida em que o gênero interpretativo consente maior liberdade discursiva e porque o “como

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Se para o senso comum o discurso jornalístico é a tradução literal da realidade, temos de convir que esses recursos oferecem obstáculos a tal ilusão conceitual.

se diz” das revistas, previsto no contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 2012)55

, tem na sua gênese doses de entretenimento e descontração, mas sem comprometer-se com a ficção. Manobras jornalísticas decisivas diante do intento de levar o leitor até o ponto final.

Sodré (2009, p. 26) é taxativo – e não só em relação ao jornalismo de revista: a notícia tem o germe da narrativa literária. “Ainda que a ficção literária seja uma outra coisa, essa construção jornalística da realidade produz efeitos (numa escala diferente) análogos àqueles literalmente produzidos pela narrativa”. Tuchman (1999, p. 258) acompanha esse raciocínio ao associar acontecimentos noticiosos às estórias, sem o “h”, ou seja, sem o compromisso científico da veracidade. “Como Robert Park (1925) afirmou há várias décadas, a notícia de jornal é uma forma de literatura popular, uma reencarnação das ainda populares novelas apresentadas de uma outra forma”.

Na certa, o modelo jornalístico que melhor se ajusta a tais maneiras de ver as notícias56 é o de revista. Poderíamos ainda, com Bird e Dardenne (1999, p. 265, grifo dos autores) vislumbra-las como narrativas mitológicas.

Considerar as notícias como narrativas não nega o valor de as considerar como correspondentes da realidade exterior, afectando ou sendo afectadas pela sociedade, como produto de jornalistas ou da organização burocrática, mas introduz uma outra dimensão às notícias, dimensão essa na qual as “estórias” de notícias transcendem as suas funções tradicionais de informar e explicar.

Diga-se de passagem, as revistas, ao lado de alguns jornais, lideraram um movimento, embora tímido, de desmistificação dos cânones jornalísticos. “Se, antes, a imprensa só posicionava-se como um veículo neutro e imparcial, hoje [...] ela assume seu lado interpretativo” (MARIANI, 1998, p. 59). Elas não abandonaram os sítios declaradamente opinativos, tais como o editorial, a carta do leitor, as colunas e crônicas. Nem mesmo se tornaram adeptas de alguns arquétipos jornalísticos europeus – essencialmente, o francês -, em que se assume atrelamento político/partidário. O jornalismo de revista – e seu discurso - desenvolveu uma habilidade sem-par de decodificar os fatos e ajudar o leitor a entender e formar uma opinião sobre o “real” que o cerca, renegando a imparcialidade, própria de parte do jornalismo produzido pela imprensa no Brasil.

O jornalismo de revista conta com riqueza de detalhes a História. Indubitavelmente, alguns de seus capítulos só vieram à tona graças às técnicas investigativas de seus repórteres.

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São cinco as facetas do contrato de comunicação descritos por Charaudeau (2012): quem diz e para quem; para que se diz; o que se diz; em que condições se diz; e como se diz.

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Avaliamos que notícias e reportagens podem ser consideradas sinônimos nesta passagem sem que isso incorra em algum prejuízo para a perspectiva dos autores.

A durabilidade, que “[...] vai muito além do tempo intervalar da periodicidade [...]” (BENETTI; STORCH; FINATTO, 2011, p. 59) e que, por isso, torna o veículo alvo de colecionadores e, sobremaneira, sua índole informativa tem lhe transformado em objeto que extravasa os limites para historiadores atuarem como simples fonte de informação. A revista, como obra discursiva é, ligeiramente, um patrimônio da História. A construção de Brasília – “[...] que mereceu de Manchete extensa e histórica cobertura [...]” (GONÇALVES; MUGIATTI, 2008, p. 23) - talvez encontre um dos seus trechos mais bem escritos na revista da editora Bloch, e em O Cruzeiro, dos Diários Associados.

As revistas resistem no tempo. A memória – e nos valemos do pensamento de Davallon (1999) que foi inspirado pelo sociólogo Maurice Halbwachs -, que elas discursivamente produzem, também. O autor francês aposta na imprensa como um extensor mecânico – não biológico - da memória coletiva. O jornalismo de revista cumpriria, seguindo a linha de raciocínio de Davallon (1999), as obrigações tecnicistas (tidas como ingênuas) de registrar, descrever, representar a realidade, como também as mais complicadas, que redefinem a reprodução das relações sociais e políticas, a saber, sociológicas.

A narrativa jornalística das revistas faz com que o acontecimento “memorizado” – que passa a fazer um dado sentido na sociedade – possa entrar para a História. A hipótese de Davallon (1999) – da qual compactuamos e prorrogamos para o jornalismo de revista – é que haja uma conjunção entre memória coletiva e História, e não um antagonismo.

Essa é uma posição que também recebe a guarida de Barbosa (2003, p. 112). Ele denota haver uma interdependência entre a prática histórica e os efeitos que a mídia faz funcionar para parecer ser historiográfica. “Essa posição implica, desse modo, conferir ao discurso midiático o status de discurso histórico, bem como construir seus enunciadores a partir de um lugar que via de regra ocupam os historiadores”.

Vimos que a revista e seu jornalismo fazem funcionar uma sofisticada engrenagem. Se tivéssemos que esmiuçar cada um dos seus “nós”, dividiríamos o ofício com Benetti (2013, p. 55):

O jornalismo de revista é um discurso e um modo de conhecimento que: é segmentado por público e por interesse; é periódico; é durável e colecionável; tem características materiais e gráficas distintivas dos demais impressos; exige uma marcante identidade visual; permite diferentes estilos de texto; recorre fortemente à sinestesia; estabelece uma relação direta com o leitor; trata de um leque amplo de temáticas e privilegia os temas de longa duração; está subordinado a interesses econômicos, institucionais e editoriais; institui uma ordem hermenêutica do mundo; estabelece o que julga ser contemporâneo e adequado; indica modos de vivenciar o presente; define parâmetros de normalidade e de desvio; contribui para formar a opinião e o gosto; trabalha com uma ontologia das emoções.

Dessa legião de componentes, que constituem o ethos jornalístico das revistas de informação – uma moldura dentro da qual pretendem ser vistas (BENETTI; STORCH; FINATTO, 2011, p. 70) - extrairemos apenas um para dar prosseguimento ao nosso debate: a sua personalidade textual, e desta, a metáfora. No mundo que cada edição lapida para seus leitores, ela finge pouco interferir. Como referente linguístico, ela intensifica a exuberância do discurso jornalístico de revista. Resta saber quais são as especificidades do seu funcionamento discursivo.