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O discurso pedagógico oficial no PROEJA

No que se refere aos decretos que instituíram o PROEJA e o Documento Base do PROEJA - os quais estamos considerando como constituintes do discurso pedagógico oficial-, informamos que as análises que realizamos neste capítulo complementam as que fizemos no capítulo II desta Tese quando analisamos os discursos da política (BALL, 1994; MAINARDES, 2007) nas inter-relações entre os contextos de influência e de produção de texto, na medida em que realizaremos um aprofundamento das relações internas ao contexto da produção de texto, através da análise do discurso pedagógico oficial (DPO).

6.1.1 O discurso pedagógico oficial no Decreto Nº 5.478/2005 e o Decreto Nº 5.840/2006

Conforme afirmamos no capítulo II, o Decreto Nº 5.478/2005 foi recontextualizado pelo Decreto Nº 5.840/2006. No primeiro Decreto, o discurso regulativo instituiu, no âmbito das instituições federais de educação tecnológica, o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA. E o segundo Decreto, que o ampliou, instituiu, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, e dá outras providências. O discurso regulativo, com a ampliação da integração com a Educação Básica, destaca os “textos privilegiantes” da inclusão social e da integração curricular também com o Ensino Fundamental, na perspectiva da elevação da escolaridade.

Os dois textos referentes aos dois decretos47 que instituíram o PROEJA, como de praxe no caso de textos “da lei”, apresentam uma linguagem específica de instituição de uma política/programa, estabelecendo, como se propõem, as diretrizes para a organização do mesmo e dos cursos: modalidades, instituições responsáveis, oferta de vagas, cargas-horárias, certificação, acompanhamento e controle. Destacamos um único artigo que consta em ambos os decretos, cujo discurso regulativo determina:

• No Decreto Nº 5.478/2005

As áreas profissionais escolhidas para a estruturação dos cursos serão, preferencialmente, as que maior sintonia guardarem com as demandas de

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nível local e regional, contribuindo para o fortalecimento das estratégias de desenvolvimento sócio-econômico. (BRASIL, 2006, Art. 5º - parágrafo único)

• No Decreto Nº 5.840/2006

As áreas profissionais escolhidas para a estruturação dos cursos serão, preferencialmente, as que maior sintonia guardarem com as demandas de nível local e regional, de forma a contribuir com o fortalecimento das estratégias de desenvolvimento socioeconômico e cultural” (BRASIL, 2006a, Art. 5º - parágrafo único – grifo nosso)

Entendemos que, no primeiro Decreto, o discurso regulativo traz os valores e princípios pedagógicos a serem assumidos pelo professor, os quais são associados à concepção de educação “orientada pelo mercado”. Entretanto, no segundo Decreto, o discurso regulativo é ampliado e a concepção de desenvolvimento socioeconômico está relacionada ao desenvolvimento cultural. Dessa forma, o discurso regulativo passa a incorporar valores e princípios pedagógicos, numa perspectiva multicultural, que, por sua vez, estão embutidos no texto privilegiante da “inclusão social” relacionado às políticas dos anos 2000. É nesse sentido que identificamos no Decreto Nº 5.840/2006 o “texto privilegiante” da educação multicultural.

6.1.2 O discurso pedagógico oficial no Documento Base do PROEJA

O Documento Base do PROEJA tem por finalidade auxiliar na reflexão, propor fundamentos e apoiar na construção de referenciais na/para a implantação do PROEJA, o qual foi instituído pelos sucessivos decretos: o de Nº 5.478/2005 e o de Nº 5.840/2006.

O referido documento apresenta, em termos gerais, a justificativa, as concepções, os princípios, as orientações sobre a gestão e as possíveis formas de realização.

Conforme explicitamos e defendemos no capítulo anterior, a inclusão escolar passa necessariamente pelo reconhecimento do multiculturalismo/interculturalismo como concepção norteadora das políticas educativas, devendo ser expressa na realidade escolar no tocante ao currículo e à prática pedagógica mais ampla – que inclui a prática pedagógica docente. Assim, buscamos identificar como se expressam no discurso regulativo do documento em questão os “textos privilegiantes” formação integral e inclusão social e como eles embutem valores e princípios pedagógicos numa perspectiva multicultural e intercultural.

O discurso da inclusão no PROEJA configura-se, no documento analisado, através do reconhecimento da necessidade do atendimento a uma parcela da população excluída, inicialmente, do sistema escolar pela não permanência e pelo insucesso escolar, na maioria das vezes no ensino fundamental, e, em consequência disso, do mundo do trabalho, pelo desemprego estrutural, o que os faz padecer pela falta de mínimas condições de sobrevivência e direitos, deixando-os à margem da sociedade. São eles

[...] de todas as esferas, com atributos sempre acentuados, em conseqüência de alguns fatores adicionais como raça/etnia, cor, gênero, entre outros. Negros, quilombolas, mulheres, indígenas, camponeses, ribeirinhos, pescadores, jovens, idosos, subempregados, desempregados, trabalhadores informais são emblemáticos representantes das múltiplas apartações que a sociedade brasileira, excludente, promove para grande parte da população desfavorecida econômica, social e culturalmente (BRASIL, 2006b, p. 04- 05).

Em outros aspectos do texto encontramos no discurso regulativo valores e princípios pedagógicos referentes à proposição inclusiva, quando se explicita uma concepção de “educação humanizadora” que se faz ao longo da vida – Declaração de Hamburgo de 1997 – com possibilidades de

[...] acesso ao universo de saberes e conhecimentos científicos e

tecnológicos produzidos historicamente pela humanidade, integrada a

uma formação profissional que permita compreender o mundo, compreender-se no mundo e nele atuar na busca de melhoria das próprias condições de vida e da construção de uma sociedade socialmente justa. (BRASIL, 2006b, p. 05, grifo nosso).

O discurso regulativo do Documento Base do PROEJA recontextualiza o discurso instrucional – discurso especializado das ciências de referência –, relacionando os conhecimentos científicos e tecnológicos com valores e princípios pedagógicos presentes no saber politécnico, que não se destina apenas à qualificação para o mercado de trabalho (presente no discurso pedagógico oficial dos anos 1990) e que fica explicitado da seguinte forma: “[...] não se pode subsumir a cidadania à inclusão no “mercado de trabalho [...]”” (BRASIL, 2006b, p. 05) Ou seja, uma formação que produza “[...] um arcabouço reflexivo que não atrele mecanicamente educação-economia” (BRASIL, 2006b, p. 06).

Identificamos que o discurso regulativo evidencia a direta relação do reconhecimento da diversidade e da diferença aos valores e princípios pedagógicos numa perspectiva multicultural/intercultural. Assim, identificamos tais expressões em várias passagens do texto:

 Dentre os princípios que consolidam os fundamentos da política, “o sexto princípio considera as condições geracionais, de gênero, de relações étnico-raciais como fundantes da formação humana e dos modos como se produzem as identidades sociais.” (BRASIL, 2006b, p. 17).

 Nos fundamentos político-pedagógicos do currículo: quando afirma que a superação das estruturas rígidas de tempo e espaço é um aspecto fundamental, considerando as especificidades dos sujeitos de EJA; quando, reconhecendo os diferentes sujeitos sociais, propõe o reconhecimento e a legitimação dos diversos espaços de produção de saberes na sociedade – através de um currículo que valorize “formas e manifestações culturais não hegemônicas produzidas por grupos de menor prestígio social e, quase sempre, negadas e inviabilizadas na sociedade e na escola” (BRASIL, 2006b, p. 19); quando destaca o aspecto fundamental da “diferença” dos sujeitos, que não é caracterizada somente pela classificações de classe, gênero, cor, etnia, raça, etc., mas, sobretudo, pela sua especificidade dentro da diversidade, pois

[...] caracterizam-se por pertencer a uma população com faixa etária adiantada em relação ao nível de ensino demandado, constituindo um grupo populacional que tem sido reconhecido como integrante da chamada “distorção série-idade”. [...] Esses sujeitos são portadores de saberes produzidos no cotidiano e na prática laboral. Formam grupos heterogêneos quanto à faixa etária, conhecimentos e ocupação (trabalhadores, desempregados, atuando na informalidade). Em geral, fazem parte de populações em situação de risco social e/ou são arrimos de família, possuindo pouco tempo para o estudo fora da sala de aula. (BRASIL, 2006b, p.20)

 Quando da defesa de um Projeto Político-Pedagógico “baseado em princípios, fundamentos, parâmetros e critérios que respeitem a diversidade desses sujeitos, de instituições existentes no País e das experiências em andamento” (BRASIL, 2006b, p. 21) e que, para tanto, requer a utilização de metodologias inovadoras numa perspectiva emancipatória de inclusão;

 No item estrutura do currículo, quando afirma que o mesmo, “[...] enquanto um processo de seleção e de produção de saberes, visões de mundo, de habilidades, de valores, de símbolos e significados, enfim, de culturas, deve considerar [...]” (BRASIL, 2006b, p.39), entre outros aspectos já citados anteriormente, a interdisciplinaridade, a

transdisciplinaridade e a interculturalidade; e quando apresenta as abordagens metodológicas de integração na perspectiva de eixos temáticos, propondo, dentre os demais eixos, os eixos temáticos: multiculturalismo/trabalho, gênero/trabalho, etnicidade/trabalho, éticas religiosas/trabalho, mediados por uma prática pedagógica dialógica.

Podemos inferir que o discurso regulativo embute os conceitos do multiculturalismo, associando-os aos valores e princípios da “educação politécnica” marxista e da “educação dialógica” libertadora de Paulo Freire, visando à inclusão social e à formação integral através da integração curricular, atendendo ao artigo 5º do Decreto nº 5.840/2006, “de forma a contribuir com o fortalecimento das estratégias de desenvolvimento socioeconômico e cultural.” (BRASIL, 2006a).

Dessa maneira, destacamos que o texto privilegiante da “inclusão social” no Documento Base do PROEJA está relacionado ao texto privilegiante da “formação integral” pela via do currículo integrado que, como o próprio termo já diz, visa integrar partes, com vista à constituição de um todo. Em se tratando de uma política de educação profissional para a educação básica, a ideia de integração surge com o propósito, se não de erradicar, pelo menos de atenuar a dualidade histórica nesse nível de ensino na educação brasileira, em que eram separados o ensino propedêutico e o ensino profissional, sendo o primeiro destinado aos filhos da elite e o segundo, aos filhos dos desfavorecidos economicamente.

As “regras distributivas” estão claramente definidas no Documento Base do PROEJA, ao priorizar o oferecimento da educação profissional com a educação básica na modalidade de educação de jovens e adultos àqueles pertencentes a um grupo social excluído anteriormente da escola formal. Segundo Bernstein (1996, p. 254), “essas regras distributivas regulam a relação fundamental entre poder, grupos sociais, formas de consciência e prática e suas reproduções e produções”.

Essa integração, entretanto, pauta-se pela idéia da politecnia, que defende o trabalho como princípio educativo, em que a superação da dicotomia trabalho manual/trabalho intelectual permitirá aos alunos, a partir das múltiplas mediações históricas, incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo com vistas a uma atuação na sociedade quer como cidadãos, quer como dirigentes, sem distinção de classe, cor ou credo. “O que se pretende é uma integração epistemológica, de conteúdos, de metodologias e de práticas educativas. Refere-se a uma integração teoria-prática entre o saber e o fazer.” (BRASIL, 2006b, p.17).

Pelo exposto, podemos concluir que os discursos regulativos e instrucional que estão contidos no Documento Base do PROEJA expressam o discurso pedagógico oficial dos anos 2000 através dos textos privilegiantes “formação integral”, “inclusão social” e “educação multicultural”.