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1 A PERDA DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO: O

2.3 Crítica ao “punitivismo preventivo”: desvelando as funções não declaradas da

2.3.2 Discurso positivista periculosista (modelo decisório nº 2)

No caso referente à decisão nº 2 (primeiro capítulo), tratando-se de uma acusação de crime de homicídio qualificado, os desembargadores decidiram pela manutenção da custódia cautelar em vista de o acusado ser “dotado de periculosidade”, aquele que persevera na prática delituosa. Como a própria decisão recorrida e mantida, por ter sido considerada como “suficientemente fundamentada”, a garantia da ordem pública é utilizada a fim de “evitar que o acusado pratique novos crimes, posto que, em liberdade encontrará os mesmos estímulos

201 VASCONCELLOS, A Prisão Preventiva..., 2010, p. 219.

202 “Art. 144, CF/88. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares [...]”.

para a realização de condutas típicas”, continuando a justificar, a partir da conveniência da instrução criminal, tendo em vista “a periculosidade demonstrada pelo réu”.

Sob a tutela legal da ordem pública, os julgadores penais, no exercício de fundamentação de suas decisões, também acabam por reviver uma espécie de “tipo ideal lombrosiano” para caracterizar aquele que seria o “homem delinquente” do processo em apreço.

Trata-se, ao fim e ao cabo, da manipulação de uma argumentação jurídica que, pelo fato de o dispositivo legal não ser taxativo ou hermético em sua disposição e quanto às possibilidades concretas de sua aplicação, dá margem para a instrumentalização de um “direito penal do autor”, isto é, um decreto preventivo sustentado, única e exclusivamente, pelo sobressalto de características que dizem respeito tão apenas à pessoa acusada e não propriamente à conduta criminosa e circunstâncias de fato que permeiam o caso penal, ainda que o diga: “a liberdade do paciente implicará risco à ordem pública, haja vista a gravidade concreta do delito de homicídio qualificado”, pois o raciocínio da “gravidade concreta” nada mais é que manipulação retórica para analisar a “predisposição delitiva” do agente.

No momento em que o intérprete aplica a etiqueta da “periculosidade”, passa a subverter a finalidade declarada da prisão provisória para realização de outro fim (real). Neste sentido, são bastante precisas as afirmações de Massimo Pavarini:

[...] frente a un modelo explicativo de la criminalidad de masa, tendencialmente orientado a dar un peso decisivo a las oportunidades, los criterios de predicción da la peligrosidad criminal se construyen sobre la ilusión de una predisposición a delinquir por razones de déficit social, racial, cultural y económico. Paradójicamente ellos alcanzan niveles satisfactorios de predicción en abstracto aproximando la definición de la peligrosidad a aquella de problematicidad social. Es decir que todos aquellos que pertenecen a grupos sociales desaventajados son – precisamente en forma potencial – peligrosos. Ergo: para obtener efectos apreciables se debería neutralizar toda la marginalidad social203.

Tem-se aqui uma espécie de essencialização do criminoso, é dizer, busca-se criar a imagem do criminoso como se tal condição dissesse respeito à sua própria natureza (prática delitiva naturalizada), como se o crime fosse um dado ontológico pré-constituído ao sujeito. Isto implica dizer que o julgador passa a considerar elementos que não dizem respeito às

203 PAVARINI, El grotesco de la penología..., 2009, p. 269. “[...] frente a um modelo explicativo da criminalidade de massa, tendencialmente orientado a dar um peso decisivo às oportunidades, os critérios de predição da periculosidade criminal se constroem sobre a ilusão de uma predisposição a delinquir por razões de déficit social, racial, cultural e econômico. Paradoxalmente eles alcançam níveis satisfatórios de predição em abstrato aproximando a definição de periculosidade àquela problemática social. É dizer que todos aqueles que pertencem à grupos sociais desfavorecidos são – precisamente em forma potencial – perigosos. Logo: para obter efeitos apreciáveis se deveria neutralizar toda a marginalidade social” (tradução livre).

circunstâncias envoltas ao delitivo em tese ou, tão apenas por se tratar de certo tipo (grave em sua essência...), existiriam recursos empíricos suficientes para analisar as condutas futuras do indivíduo.

Estes elementos, rótulos aplicados ao investigado/acusado, o tornam diferente do “cidadão de bem”, o tornam “anormal” e, mais que isso, por apresentar o “sintoma da reiteração”, em vista do “delito praticado”, teria predisposição para a prática de novos delitos se posto em liberdade. Em síntese, ele não se mostra compatível com os valores sociais e morais de conduta; ele é o inimigo, aquele que é infiel ao direito.

Esta é uma concepção cujos elementos estão circunscritos pelos pilares do positivismo criminológico. Desde esse ponto de vista, explica Zaffaroni204 que o inimigo ou estranho é

alguém consignado por sua natureza; afirma-se a existência não de um inimigo político, forjado pelo poder político (“inimigo político”), mas uma existência ôntica do inimigo. Trata- se da raiz da teorização da periculosidade e pretensão de individualização do inimigo já desde Rafaele Garofalo, para determinar aqueles que seriam considerados os “inimigos naturais da sociedade”, a partir do qual o judiciário teria importante protagonismo frente à contenção desta criminalidade, não protegendo o criminoso contra a sociedade, mas a sociedade contra o criminoso e contra o crime.

Ao atentar que tal posicionamento discursivo corresponde à coisificação do outro – atitude explicitamente violadora de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados (art. 1º, III, art. 5º, ss., CF) –, Salo de Carvalho realiza crítica cirúrgica à esta formatação do discurso jurídico-penal:

[...] o discurso penal, ao invés de operar na legitimação do processo bélico de coisificação do outro, necessariamente deveria servir como barreira de contenção da violência desproporcional. No entanto a retórica de contenção da emergência repressiva de sacraficialização dos direitos em nome do bem maior (segurança) expressa a gradual tendência de ofuscar os limites entre os poderes, rompendo com a ideia de sistemas de controle (freios e contrapesos) dos excessos punitivos. Neste quadro, o Poder Judiciário, portador por excelência do discurso de garantias do direito penal, estaria agregado aos demais Poderes (repressivos), objetivando a capacitação e a legitimação da exceção, ofuscando a potencialidade restritiva das violências inerentes ao discurso penal da modernidade (funções declaradas)205.

O que resta patente é que ao agir mediante a “demonização” do outro (criminoso), a partir da justificativa de proteção do público (sociedade) diante do particular (acusado), o poder judiciário ignora por completo seu papel contramajoritário de tutela de direitos e

204 ZAFFARONI, O Inimigo..., 2007, p. 93.

205 CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 155-156.

garantias e dos mandamentos constitucionais como um todo, apesar de a atitude ser sempre proclamada “para o bem”, “para a segurança”, “para a proteção social”; como se os direitos e garantias não constituíssem interesse da sociedade, em cada um dos cidadãos, em sua completude.

A atitude do intérprete do caso penal se confirma, deste modo, essencialmente maniqueísta ao trabalhar com a lógica do “bem x mal” e, a partir disso, extrapolar as funções do julgador, atropelar direitos e garantias fundamentais, demonizar e restringir a liberdade do acusado, exercer, portanto, controle social desigual e, em última análise, potencializar as violências do poder punitivo; giro oposto aos direitos humanos que estão forjados para a constrição do poder punitivo.

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