• Nenhum resultado encontrado

A palavra, sendo ideologicamente neutra, está aberta aos desígnios das criações ideológicas para receber diferentes funções e cargas valorativas, axiológicas. Tal abertura, todavia, só obtém relevância no contexto social. Um indivíduo por si só é incapaz de exercer a força transformadora capaz de fazer a palavra — o signo — ir além da abstração para a concretude de um adequado sistema ideológico. Medviédev (2016) comenta que “o homem individual e isolado não cria ideologia, […] a criação ideológica e sua compreensão somente se realizam no processo da comunicação social” (p. 49). É isso que Faraco (2009) explica, comentando que é preciso situar o signo nos processos sociais que o significam para que se possam, apropriadamente, ser objetos de estudos:

[Para o Círculo de Bakhtin], os signos são intrinsecamente sociais, isto é, são criados e interpretados no interior dos complexos e variados processos que caracterizam o intercâmbio social. Os signos emergem e significam no interior de relações sociais, estão entre seres socialmente organizados; não podem, assim, ser concebidos como resultantes de processos apenas fisiológicos e psicológicos de um indivíduo isolado; ou determinados apenas por um sistema formal abstrato. Para estudá-los, é indispensável situá-los nos processos sociais globais que lhes dão significação. (p. 49; grifo do autor)

Isso nos demonstra que para entendermos, estudarmos ou analisarmos uma ideologia qualquer, é necessário que o façamos através de seus signos, isto é, no nosso caso nos estudos literários, através de suas palavras. O que nos traz para o estudo — a análise — do discurso.

Entretanto, para que possamos fazê-lo a contento, em especial através da abordagem teórica de Bakhtin e o Círculo, é preciso compreender alguns conceitos-chave, os quais estão intrinsecamente ligados e são interdependentes. Discurso, por exemplo, ainda mais nessa perspectiva social adotada pelo Círculo, exige a assimilação das ideias de alteridade, de refração, de heterodiscurso — cada uma essencial para a nossa empreitada.

Sempre preocupado com a concretude, com a materialização da língua, da palavra, do discurso, Bakhtin (2015b) define este último como “a língua em sua integridade concreta e viva” (p. 207). O que interessa não é a palavra dicionarizada, a palavra estéril, deslocada em um vácuo social; mas ela enunciada por alguém em determinado tempo e em determinado espaço, enunciada para outro alguém, mesmo que esse outro não esteja presente, mesmo que seja presumido — mesmo que seja interno, internalizado (BAKHTIN, 2015a; BAKHTIN, 2016).

O “outro” é fundamental na filosofia de Bakhtin e o Círculo. Certas perspectivas, como as noções de “eu-para-mim e eu-para-o-outro, o outro-para-mim” (BAKHTIN, 2017, p. 42), determinam a compreensão do discurso, seu direcionamento, seus sentidos mais tênues e, afinal, sua própria formação e transformação. A alteridade, desse modo, faz parte da própria concepção de mundo do ser humano, de sua concepção de si e do(s) outro(s), visto que, para Bakhtin (2017), “eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro” (p. 38), e que “para cada indivíduo, todas as palavras se dividem nas suas próprias palavras e nas do outro, mas as fronteiras entre elas podem confundir-se, e nessas fronteiras desenvolve-se uma tensa luta dialógica” (p. 38). Ainda: “Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem não tem território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os

Nossa perspectiva no mundo é única e limitada ao nosso ponto de vista, mas este não se constrói com nossas próprias ideias criadas em uma dimensão psicológica solitária, isolada da realidade ao nosso redor, mas a partir de noções (ideias, palavras, signos) alheias do mundo, de outros e de nós mesmos. É a partir do outro, também, que estabelecemos nossa conceituação de nós mesmos. A perspectiva do outro é única e complementar, privilegiada de certas formas. Essa dinâmica social de pontos de vista, de posicionamento social e axiológico compõe grande parte do pensamento bakhtiniano. “O eu se esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-se do fardo de ser eu único (eu-para-mim) no mundo” (BAKHTIN, 2017, p. 43; grifos do autor), como ele próprio delineia.

A alteridade, portanto, é entendida como um fator constitutivo da identidade do indivíduo, do sujeito: “O outro precede ao eu, o alimenta e o instrui, e o acompanha a vida toda. Deve-se, então, reconhecer que a função do outro na construção identitária não se reduz à oposição e ao contraste, embora esta possa ser uma de suas funções primárias” (GARCÍA, 2006, p. 48).70 Estamos, assim, diante de uma compreensão do sujeito como um ser social, localizado em meio a inúmeras relações dialógicas com uma multiplicidade de outros, em que “a identidade perde […] sua orientação egocêntrica e monológica; se torna heterodiscursiva. Identidade e alteridade se entendem, então, como conceitos interdependentes, complementários, de natureza relacional e relativa” (GARCÍA, 2006, p. 49).71

Nessa perspectiva, o sujeito é inacabado: “é uma unidade aberta ao tempo, é um participante da vida social, com capacidade de reação e criação próprias diante do que é posto pelas circunstâncias concretas” (GARCÍA, 2006, p. 51);72 ele está sempre em formação, em um constante processo de construção e alteração de sua identidade, esta constituída de várias maneiras pelas suas relações com o outro. García (2006) expõe que a identidade é um fenômeno social, um espaço de tensão, de luta de valores, um fenômeno de fronteira entre eu e o outro:

[…] um fenômeno social, resultado do complexo de relações do eu (ou […] do nós) consigo mesmo e com o outro (eles). Esse caráter sociológico da identidade faz desta um processo de relações ideológicas, políticas e históricas, um espaço de tensão de interesses, de posições, de negociações de

70 Texto original em espanhol: “El otro precede al yo, lo alimenta e instruye, y lo acompaña toda la vida. Se debe

entonces reconocer que la función del otro en la construcción identitaria no se reduce a la oposición y el contraste, aunque pueda ser ésta una de sus funciones primarias.”

71 Texto original em espanhol: “La identidad pierde […] su eje egocéntrico e monológico; se vuelve heteroglósica.

Identidad y alteridad se entienden entonces como conceptos interdependientes, complementarios, de una naturaleza relacional y relativa.”

72 Texto original em espanhol: “[…] es una unidad abierta al tiempo, es un participante de la vida social, con

sentido. A identidade é um campo de luta, um embate em que se disputam os valores do eu perante si mesmo e perante o outro. […] A identidade social, tal qual a criação estética, são fenômenos de fronteira, ocorridos no umbral entre eu e o outro.” (p. 56; grifo do autor)73

A percepção do outro é compreensível e/ou assimilável, na dimensão literária, a partir do seu discurso, dos signos verbais — e o mesmo acontece com o discurso do eu. Para entendermos o que é discurso, em sua essência, na ótica de Bakhtin e o Círculo, precisamos entender o conceito de enunciado74. Como já foi explicitado, a língua concreta e viva é o que faz ela ser o que é, ideologicamente preenchida, uma cosmovisão (BAKHTIN, 2015a), um fenômeno social verbo-ideológico permeado de axiologias, o que permite seu real entendimento para Bakhtin e o Círculo. Focados em compreender a comunicação, é isso que os faz entender o “enunciado como unidade real da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2016, p. 22; grifo do autor). O enunciado pode ser uma palavra, uma frase, um resmungo, até mesmo o silêncio — suplanta as concepções gramaticais tradicionais, que são as raízes de visões completamente diferentes de linguagem, de comunicação, de discurso.

O enunciado requer um falante, localizado no espaço e no tempo, em certo contexto social, e ele imbui o enunciado de sentido ao responder algo ou alguém, posto que todo enunciado é uma resposta a algo ou a alguém, mesmo que esse processo seja referente a um ouvinte idealizado, internalizado e inconsciente do falante. Tais respostas podem ser total ou parcialmente concordantes, ou total ou parcialmente discordantes; elas podem se comunicar dada a onipresença de valores e sentidos nos posicionamentos, nas palavras. Segundo Bakhtin (2016), os enunciados “são unidades do intercâmbio social de ideias” (p. 138), são elos “na cadeia de comunicação discursiva” (p. 60); e Volóchinov (2017) o complementa quando afirma que enunciado é um “elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais” (p. 184).

Nesse sentido, partindo da perspectiva de que havendo sempre axiologias e sentidos presentes, havendo sempre posicionamentos sociais na fala, na palavra, no discurso, até mesmo uma obra inteira pode ser entendida como um enunciado. Segundo Bakhtin:

A obra é um elo na cadeia da comunicação discursiva; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras — enunciados: com aquelas às quais ela

73 Texto original em espanhol: “[…] un fenómeno social, resultado del complejo de relaciones del yo (o […] el

nosotros) consigo mismo y con el otro (ellos). Ese carácter sociológico de la identidad hace de ésta un proceso de relaciones ideológicas, políticas e históricas, un espacio de tensión de intereses, de posiciones, de negociación de sentido. La identidad es un campo de lucha, una agonística en la que se disputan los valores del yo frente a sí mismo y frente al otro. […] La identidad social, al igual que la creación estética, son fenómenos de frontera, ocurridos en el umbral entre yo y el otro.”

74 Por muito tempo nas traduções brasileiras se usou o termo “enunciação”, mas aqui adoto a postura e a escolha

responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do discurso. (BAKHTIN, 2016, p. 35)

Ele afirma ainda que “em seu conjunto, o romance é um enunciado” (BAKHTIN, 2016, p. 15). Isso pauta toda a nossa fundamentação para o estudo comparado de diferentes obras, de diferentes literaturas — e, até mesmo, como na presente pesquisa, pauta o diálogo entre literatura e filosofia, como elucidaremos com os devidos pormenores até o fim desta seção.

Considerando o que Bakhtin comenta acerca da comunicação, dos limites entre enunciados serem a alternância de sujeitos, ou seja, as palavras de um e as palavras de outro, é importante explorarmos essa vereda enunciativa. Bakhtin (2017) expõe sobre a palavra alheia, dentre outras coisas, que “por palavra do outro (enunciado, produção de discurso) eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha” (p. 37). Mas até que ponto a palavra do outro realmente não seria a — ou estaria na — minha?

Acerca do nosso processo discursivo, Bakhtin (2016) explica que ele é composto, em graus variados, por palavras alheias carregadas de valorações alheias, as quais transformamos ao revalorá-las em nosso discurso:

Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos. (p. 54)

Essa reacentuação é a refração, processo pelo qual acrescentamos nossa própria carga axiológica, valorativa — e, portanto, ideológica — naquilo que enunciamos. Há uma modificação do discurso quando ele nos atravessa, ainda que extremamente tênue, ainda que virtualmente imperceptível. Nunca há uma reflexão pura do discurso quando o tomo do outro para mim, e vice-versa. Há reflexão e refração, e compreender o fenômeno desta última é crucial porque traz consequências para todo o arcabouço teórico sobre o qual se sustenta este trabalho e as concepções de Bakhtin e o Círculo.

Levando em consideração que nossos valores compõem a lente pela qual enxergamos o mundo, que tal conjunto de valores — nossa(s) ideologia(s) — determina nosso ponto de vista, nossa visão de mundo (cosmovisão), eles (nossos valores) interferem sempre no discurso que emitimos, seja ele qual for, por mais que evitemos modificá-lo de qualquer maneira, por mais que as palavras sejam exatamente as mesmas. A refração sempre acontece.

A respeito do fenômeno da refração, Faraco (2013) explica que é impossível haver significação sem refração, posto que o processo de significação é intrinsecamente atrelado à vivência dos grupos sociais:

A refração é, desse modo, uma condição necessária do signo na concepção do Círculo de Bakhtin. Em outros termos, para o Círculo, não é possível significar sem refratar. Isso porque as significações não estão dadas no signo em si, nem estão garantidas por um sistema semântico abstrato, único e atemporal, nem pela referência a um mundo dado uniforme e transparentemente, mas são construídas na dinâmica da história e estão marcadas pela diversidade de experiência dos grupos sociais, com suas inúmeras contradições e confrontos de valorações e interesses. (p. 174; grifo do autor)

Isso, naturalmente, gera repercussões em todos os enunciados, o que significa dizer que gera repercussão também nas obras que elaboramos. O processo da refração ocorre a despeito de o falante ter consciência disso ou não, total ou parcialmente. Tendo ciência ou não, as linguagens, os signos, já são repletos de sentidos e intenções quando em meio ao discurso social. É por isso que Bakhtin (2015a) diz, em relação ao romance, que o romancista faz com que a linguagem, esta já repleta de intenções alheias, sirva a outro senhor, este agregando suas novas intenções por meio do fenômeno da refração:

O prosador usa linguagens já povoadas de intenções sociais alheias e as obriga a servir às suas novas intenções, a servir a um segundo senhor. Por isso, as intenções do prosador se refratam, e se refratam sob diferentes ângulos, dependendo do grau de alteridade socioideológica, de encorpadura, de objetificação das linguagens que refratam o heterodiscurso. (p. 76-77; grifos do autor)

Quando teoriza sobre o romance, Bakhtin nota que a palavra nele usada, já saturada de sentidos e intenções, serve tanto à intenção da personagem quanto à da pessoa autora — há duas vozes, duas intenções se sobrepondo sobre os mesmos signos e enunciados. É o que ele chama de heterodiscurso, fenômeno em que se realiza “o discurso do outro na linguagem do outro” (BAKHTIN, 2015a, p. 113), em que há duas vozes (bivocal), dois falantes (personagem e autor), dois sentidos que dialogam interiormente. Sobre isto ele discorre:

O heterodiscurso introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução) é discurso do outro na linguagem do outro, que serve à expressão refratada das intenções do autor. A palavra de semelhante discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve ao mesmo tempo a dois falantes e traduz simultaneamente duas diferentes intenções: a intenção direta da

personagem falante e a intenção refratada do autor. Nessa palavra há duas vozes, dois sentidos e duas expressões. Ademais, essas duas vozes são correlacionadas dialogicamente, como que conhecem uma à outra (como duas réplicas de um diálogo, conhecem uma à outra e são construídas nesse conhecimento recíproco), como se conversassem uma com a outra. A palavra bivocal é sempre interiormente dialogada. Assim é a palavra humorística, prosaica, paródica, assim é a palavra refratadora do narrador, que refrata a palavra nas falas do herói e, por último, a palavra do gênero intercalado: tudo isso são palavras bivocais interiormente dialogadas. Nelas está fixado o diálogo potencial, não desenvolvido, o diálogo concentrado de duas vozes, de duas visões de mundo, de duas linguagens. (BAKHTIN, 2015a, p. 113; grifos do autor)

Importa, neste contexto, esclarecer então o que é “heterodiscurso”, expressão que já apareceu em citações anteriores. O heterodiscurso representa a diversidade discursiva decorrente do uso pelos grupos sociais, da estratificação da linguagem, que a confere a qualidade de abarcar dentro de si uma variedade de vozes sociais. Paulo Bezerra contribui com sua perspectiva sobre o termo no glossário ao fim de Teoria do romance I, onde explana:

Em suma, trata-se de um heterodiscurso social que traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua dimensão histórico-antropológica, fecunda a linguagem da prosa romanesca através da dissonância individual de cada autor em relação ao conjunto do processo literário. (BEZERRA, 2015a, p. 247)

Há uma relação intrínseca entre o romance e o heterodiscurso na visão bakhtiniana, o que implica no enlaçamento de enunciados e linguagens, de vozes sociais, de temas, de sentidos, e na abertura para uma infinidade de diálogos em potencial. Assim, Bakhtin (2015a) esclarece que “o romance é um heterodiscurso social artisticamente organizado”, pois a ele é indispensável a estratificação interna da língua nas mais variadas linguagens dos grupos sociais ali representados, as quais são orquestradas pelo autor em meio à diversidade das vozes sociais e suas correlações e dialogizações com os enunciados. Tal natureza heterodiscursiva e dialógica é o fundamento do estilo peculiar do romance:

O romance é um heterodiscurso social artisticamente organizado, às vezes uma diversidade de linguagens e uma dissonância individual. A estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, modos de falar de grupos, jargões profissionais, as linguagens dos gêneros, as linguagens das gerações e das faixas etárias, as linguagens das tendências e dos partidos, as linguagens das autoridades, as linguagens dos círculos e das modas passageiras, as linguagens dos dias sociopolíticos e até das horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus acentos), pois bem, a estratificação interna de cada língua em cada momento de sua existência histórica é a premissa indispensável do gênero romanesco: através do

heterodiscurso social e da dissonância individual, que medra no solo desse heterodiscurso, o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu universo de objetos e sentidos que representa e exprime. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e os discursos dos heróis são apenas as unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance; cada uma delas admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (sempre dialogadas em maior ou menor grau). Tais nexos e correlações especiais entre enunciados e linguagens, esse movimento do tema através das linguagens, sua fragmentação em filetes e gotas de heterodiscurso social e sua dialogização constituem a peculiaridade basilar da estilística romanesca, seu specificum.75

(BAKHTIN, 2015a, p. 29-30; grifos do autor)

Essa correlação de vozes sociais que sempre dialogam entre si no heterodiscurso é a porta que se abre na linguagem para a possibilidade de relações dialógicas.

É valido ressaltar que quando Bakhtin e o Círculo se referem a “diálogo” não fazem uso de uma acepção restrita da palavra (como o diálogo entre duas pessoas, por exemplo, embora também o abarque), mas de uma abrangente o suficiente que engloba a comunicação — concordante ou não, em maior ou menor grau, saliente-se — entre dois ou mais enunciados pela via de seus sentidos.76

Bakhtin (2016) define as relações dialógicas como as que se estabelecem, no plano dos sentidos, entre enunciados:

As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano do sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica. (p. 92)

O grau de abertura e abrangência dessa ideia é proposital. A relação dialógica pode acolher sob sua égide uma infinidade de diálogos, contanto que os sentidos se comuniquem. Não é necessário que os enunciados estabeleçam relações em sua totalidade: o dialogismo pode

75 Para fins de esclarecimento terminológico, transcrevo a nota de rodapé de Paulo Bezerra, o tradutor de Teoria

do romance I: a estilística, sobre heterodiscurso e sua concepção bakhtiniana: “Heterodiscurso ou diversidade de discursos. Heterodiscurso é minha tradução para a antiga palavra russa raznorétchie, que no Brasil foi traduzida como ‘plurilinguismo’ e ‘heteroglossia’. Observe-se que nesse parágrafo está toda a concepção bakhtiniana de heterodiscurso. Para maiores detalhes, ver o glossário no final deste livro.” (BEZERRA, 2015a, p. 29)

76 É preciso esclarecer a concepção de sentido para Bakhtin e o Círculo: enquanto significado se refere àquele que

é dicionarizado, estéril, deslocado de contextos, sentido é o “significado em dado contexto” (BAKHTIN, 2017, p. 63; grifo do autor). O sentido, nessa perspectiva, “sempre responde a certas perguntas. Aquilo que nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo. […] O significado está separado do diálogo, mas abstraído dele de modo deliberado e convencional. Nele existe uma potência de sentido. […] O sentido é potencialmente infinito, mas só pode atualizar-se em contato com outro sentido (do outro), ainda que seja com uma pergunta do discurso interior do sujeito da compreensão. Ele sempre deve contatar outro sentido para revelar os novos elementos da sua perenidade (como a palavra revela os seus significados somente no contexto).” (BAKHTIN, 2017, p. 41).

acontecer entre um ou entre alguns poucos aspectos discursivos. Quanto mais se respondem, mais revelam possíveis relações dialógicas. Isso possibilita a comunicação entre discursos

Documentos relacionados