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Antonio Gramsci figurou ao fim da última seção com seu entendimento de ideologia e não foi por acaso: ele se aproxima consideravelmente daquele compartilhado por Bakhtin e o Círculo, em especial por Volóchinov. Nas palavras deste último: “Entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 243). Podemos perceber nessa definição de Volóchinov certa consonância com Gramsci, com a visão de mundo a partir das experiências sociais — conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural — e com as disputas de poder nas significações. Gramsci, relembro, apontou o mais elevado sentido de ideologia, uma concepção de mundo implicitamente manifesta na arte e em todas as manifestações individuais e coletivas; essas manifestações, sendo realizadas por meio de signos, transparecem as visões/concepções de mundo, estas constituídas das práticas e vivências sociais. Assim, temos uma aproximação íntima entre as acepções de ideologia de Gramsci e Volóchinov.

A definição explícita publicada por Bakhtin relaciona ideologia a sistema de ideias e se encontra em Problemas da Poética de Dostoiévski:

Na ideologia geradora de formas de Dostoiévski faltavam justamente os dois elementos básicos sobre os quais se assenta qualquer ideologia, isto é, a ideia

particular e o sistema concreto uno de ideias. Para o enfoque ideológico comum, existem ideias particulares, afirmações e teses que por si mesmas podem ser verdadeiras ou falsas, dependendo da relação entre elas e o objeto e independendo de quem seja o seu agente, da pessoa a quem elas pertençam. Essas ideias concreto-verdadeiras “sem dono” se reúnem numa unidade sistêmica de ordem concreta. Nessa unidade sistêmica, as ideias entram em contato e relação entre si em base concreta. A ideia se basta ao sistema como totalidade definitiva e o sistema é constituído de ideias particulares como elementos. (BAKHTIN, 2015b, p. 104; grifos do autor)

A discussão contida no trecho citado sobre a natureza da ideia na obra de Dostoiévski não vem ao nosso caso específico em debate, mas demonstra com clareza, pelo menos, parte da visão bakhtiniana67 de ideologia e seus “dois elementos básicos” — quais sejam: “a ideia particular e o sistema concreto uno de ideias” — nas palavras do próprio filósofo russo. A tradução citada é direta do russo e feita por Paulo Bezerra, um dos maiores estudiosos brasileiros de Bakhtin. Suas traduções são um dos principais referenciais destas linhas.

Para a compreensão da abordagem de Bakhtin e o Círculo quanto ao termo em questão, exponho a definição de ideologia empregada por Ann Shukman (1983) no glossário para a coletânea em inglês Bakhtin School Papers, em que se lê:

É importante notar que a escola de Bakhtin não usa ideologia no sentido de sistema de pensamento ou corpo de ideias, mas no sentido muito amplo e ainda assim específico de sistema de atividade sociocultural humana. Artes, ciências, filosofia — todos os domínios dos valores humanos pertencem ao domínio da ideologia. Ideologia só pode existir graças à sua expressão em signos materiais, o que a faz comunicável. (p. 154)68

Como demonstrado na citação de Bakhtin em Problemas da Poética de Dostoiévski, o “sistema de ideias” está na raiz da abordagem bakhtiniana, ainda que recoberta com outras características típicas do pensamento do filósofo, quais sejam: a fundação axiológica — “os domínios dos valores humanos” — e a materialidade sígnica essencial.

Carlos Alberto Faraco (2013) empreende uma ampla investigação acerca do uso e do entendimento de ideologia por Bakhtin e pelo Círculo. Primeiro, ele se debruça no uso da palavra ideologia (ou de expressões que a contenham em alguma variação, como, por exemplo, verbo-ideológico, socioideológico, cultural-ideológico etc.) nos textos de Bakhtin, 67 Uso o termo “bakhtiniana/bakhtiniano” ao longo desta dissertação para me referir àquilo que diz respeito não

apenas a Bakhtin, mas a Bakhtin e o Círculo como um todo, àquilo que diz respeito ao conjunto de sua abordagem teórico-metodológica.

68 Trecho original em inglês: “It is important to note that the Bakhtin school do not use ideology in the sense of

system of thought or body of ideas, but in the very broad and yet specific sense of system of human socio-cultural activity. Arts, sciences, philosophy — all the domain of human values, belong to the domain of ideology. Ideology can exist only thanks to its expression in material signs, which render it communicable.”

propriamente — o que significa superar a controvérsia de autoria de certas obras, antes, muitas vezes, atribuídas a Bakhtin/Volóchinov e Bakhtin/Medviédev; e essa vem sendo a postura adotada no Brasil nas edições mais recentes das obras do Círculo.

Faraco (2013) aponta que Bakhtin explica os usos que faz de expressões que contêm o termo ideologia/ideológico/ideológica e demais variações, quando diz que:

[…] está tomando linguagem não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como “ideologicamente saturadas”, ele desdobra essa última expressão em “língua como visão de mundo”. E repete essa identificação língua/ideologia/visão de mundo em outras partes desse seu texto (DR, pp. 284-285, p. 333, p. 349).69

Em outros momentos, em vez de “visão de mundo”, ocorre “ponto de vista” (DR, pp. 323, 346, 376, 411). E, por fim, “visão de mundo” e “ponto de vista” alternam com “sistema de crenças” (DR, pp. 312, 334, 356), qualificado este, num determinado ponto (DR, p. 304), como “semântico e axiológico”. (FARACO, 2013, p. 170)

É a partir disso que o autor conclui que “para Bakhtin a palavra ideologia faz referência às representações que os diferentes grupos sociais constroem do mundo” (FARACO, 2013, p. 170; grifo do autor). No entanto, é preciso esclarecer essas últimas citações, pois “ponto de vista”, “visão de mundo”, “axiológico”, são expressões fundamentais e recorrentes no vocabulário bakhtiniano, mas podem causar equívocos interpretativos ou até incompreensão.

Axiológico se refere a valores, os quais permeiam o nosso pensar, o nosso sentir e as nossas expressões e manifestações, assim como nossa avaliação do mundo. Eles — os valores — estão imbuídos no nosso olhar sobre a vida, sobre tudo e todos, o que naturalmente determina nossa visão de mundo (cosmovisão, para fazer uso de outro termo bakhtiniano), o nosso ponto de vista. Nossos valores sinalizam sob que perspectiva enxergamos, avaliamos e julgamos o mundo ao redor; sinalizam, assim, nosso posicionamento dentro da sociedade. Essa posição é fundamental para a compreensão do pensamento de Bakhtin e o Círculo.

Ideologia, portanto, é constituída por valores, ou seja, tem natureza axiológica. Como podemos observar, não há traços de um caráter negativo ou depreciativo nessa concepção bakhtiniana. O termo “ideologia”, para Bakhtin e o Círculo, é axiologicamente neutro, já que está aberto a todos os direcionamentos valorativos.

Quando buscamos a contribuição de Miotello no que se refere à ideologia para Bakhtin e o Círculo, encontramos: “[…] seria possível caracterizar ideologia, da perspectiva

69 Faraco, aqui, se refere ao Discurso no Romance, mas à sua versão em inglês. Essas páginas, portanto, não

correspondem a qualquer versão brasileira. Resolvi respeitar a escolha do autor e transcrever a citação de maneira fiel.

bakhtiniana, como a expressão, a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens” (MIOTELLO, 2010, p. 171). Aproveito para agregar as palavras de Ponzio (2012) sobre o mesmo tema: “A ideologia é a expressão das relações histórico-materiais dos homens, mas ‘expressão’ não significa somente interpretação ou representação, também significa organização, regularização dessas relações” (p. 113).

O que mais importa de todo esse panorama é que Bakhtin e o Círculo edificaram seus próprios conceitos, aí incluso o de ideologia, com suas nuances características. Uma dessas nuances mais importantes é quanto à ideologia ou criações ideológicas enquanto esferas das produções imateriais humanas — a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião etc. —, como aduz Faraco (2013):

Nos textos do Círculo, a palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do ‘espírito’ humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num vocabulário de sabor mais materialista).

Ideologia é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que

engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar certa terminologia de tradição marxista).

A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade de esferas da produção imaterial (assim, a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política são as ideologias). É com esse uso no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo que o estudo da literatura é um ramo do estudo das ideologias, com este abarcando todas as áreas da criatividade intelectual humana citadas acima. (p. 46-47; grifos do autor)

Pode-se afirmar que englobar “todas as áreas da criatividade intelectual humana” seja perigosamente sem critério, porém isso não procede aqui, porque o Círculo faz questão de elencar com frequência a que se refere quando faz uso do termo ideologia, como o próprio Faraco o faz acima. É evidente que todos os exemplos se configuram como conjuntos, como sistemas de ideias, mais ou menos delimitados, mas entendidos como tais.

Para ilustrar, Volóchinov (2017) comenta em um momento “os sistemas ideológicos formados — a moral social, a ciência, a arte e a religião” (p. 213) e noutro “[…] a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa” (p. 99). Essa noção se identifica com o que foi apresentado por Bakhtin, como já exposto. Medviédev (2016) também lista como exemplos de criação ideológica “ciência, arte, moral, religião” (p. 43).

Para que os estudos e as análises possam ser de fato empreendidas, é necessário que saiamos da ordem do imaterial para o material, do abstrato para o concreto. Nesse sentido, temos que lidar com a materialização do ideológico. Passamos, então, a trabalhar com os signos que representam as criações ideológicas, ou seja, passamos a lidar com a palavra.

A língua é o material da literatura, assim como o é da filosofia, e Bakhtin e o Círculo trataram dos fundamentos da linguagem, da própria filosofia da linguagem, tendo como ponto focal a palavra. A representação do produto ideológico é feita por signos, e Volóchinov (2017) traz a máxima de que “a palavra é o fenômeno ideológico par excellence” (p. 98; grifo do autor) e que é

objeto basilar da ciência das ideologias” (p. 101). Medviédev (2016) também contribui, a respeito da materialidade do fenômeno ideológico, afirmando que o produto ideológico se realiza materialmente ao redor do ser humano como signo, quando a comunicação é sua manifestação primeira:

Cada produto ideológico e todo seu “significado ideal” não estão na alma, nem no mundo interior e nem no mundo isolado das ideias e dos sentidos puros, mas no material ideológico disponível e objetivo, na palavra, no som, no gesto, na combinação das massas, das linhas, das cores, dos corpos vivos, e assim por diante. Cada produto ideológico (ideologema) é parte da realidade social e material que circunda o homem, é um momento do horizonte ideológico materializado. […] A comunicação é aquele meio no qual um fenômeno ideológico adquire, pela primeira vez, sua existência específica, seu significado ideológico, seu caráter de signo. (p. 50)

Sobre signo, ele ainda acrescenta que pode ser de natureza e forma diversas, compreendendo uma abundância sígnica, um denso meio ideológico no qual vivemos:

O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de “objetos-signo” dos mais diversos tipos e categorias: de palavras realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante. Tudo isso em seu conjunto constitui o meio ideológico que envolve o homem por todos os lados em um círculo denso. (MEDVIÉDEV, 2016, p. 56)

Acerca da relação necessariamente dependente entre ideologia e signo, Volóchinov (2017) descreve que o signo detém significação, ele representa, ele reflete e refrata a realidade que lhe é externa, não podendo haver ideologia onde não há signo:

Qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social — seja ele um corpo físico, um instrumento de produção ou um produto de consumo — mas também, ao contrário desses fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites. Tudo o que é ideológico

possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia. (p. 9; grifos do autor)

Volóchinov (2017) afirma, ademais, acerca da natureza da palavra no âmbito ideológico, que ela é neutra no que se refere à sua função ideológica enquanto signo:

A palavra não é apenas o mais representativo e puro dos signos, mas também um signo neutro. Todos os demais materiais sígnicos são especializados em campos particulares da criação ideológica. Cada campo possui seu próprio material ideológico e forma seus próprios signos e símbolos específicos inaplicáveis a outros campos. Nesse caso, o signo é criado por uma função ideológica específica e é inseparável dela. Já a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa. (p. 99; grifos do autor)

Complementando a ideia de funções ideológicas específicas da palavra — da língua — como signo, Bakhtin (2016) aduz que “todos os campos da ideologia usam a língua, mas cada um a seu modo” (p. 139).

Após essa exposição quanto às abordagens de Bakhtin e o Círculo acerca de seu entendimento de ideologia — também de signo e de palavra —, podemos avançar para as próximas bases conceituais, quais sejam, em especial, o discurso e as relações dialógicas.

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