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Taoísmo e A mão esquerda da escuridão: relações dialógicas entre o Tao Te Ching e o romance de Ursula K. Le Guin

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

DERANCE AMARAL ROLIM FILHO

TAOÍSMO E A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO: RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TAO TE CHING E O ROMANCE DE URSULA K. LE GUIN

NATAL/RN 2020

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DERANCE AMARAL ROLIM FILHO

TAOÍSMO E A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO:

RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TAO TE CHING E O ROMANCE DE URSULA K. LE GUIN

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre na área de concentração de Literatura Comparada, sob orientação do Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Jr.

NATAL/RN 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Rolim Filho, Derance Amaral.

Taoísmo e A Mão Esquerda da Escuridão: relações dialógicas entre o Tao Te Ching e o romance de Ursula K. Le Guin / Derance Amaral Rolim Filho. - Natal, 2020.

102f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Júnior.

1. A Mão Esquerda da Escuridão - Romance - Dissertação. 2. Relações dialógicas - Dissertação. 3. Formação ideológica -

Dissertação. 4. Filosofia - Dissertação. 5. Taoísmo - Dissertação. I. Melo Júnior, Orison Marden Bandeira de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81'42

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DERANCE AMARAL ROLIM FILHO

TAOÍSMO E A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO:

RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TAO TE CHING E O ROMANCE DE URSULA K. LE GUIN

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre na área de concentração de Literatura Comparada.

Natal, ___ de __________ de _____.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Orison Marden Bandeira de Melo Jr.

Presidente — UFRN

________________________________________ Profª. Drª. Maria da Penha Casado Alves

Examinadora interna — UFRN

________________________________________ Prof. Dr. Pablo Moreno Paiva Capistrano

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AGRADECIMENTOS

À banca examinadora, a qual acompanhou o desenvolvimento desta dissertação desde o exame de qualificação e fez contribuições valiosas para que este trabalho se tornasse o que é.

Ao professor Orison, em especial, pela orientação, incentivo e paciência ao longo de todo o mestrado. Foi uma imensa sorte ter tido um orientador que se mostrou um exemplo de ética, de eficiência e de razoabilidade em todas as situações.

Aos professores e demais funcionários do PPgEL da UFRN pelas contribuições e pelo apoio nessa jornada acadêmica.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, minha alma mater, pelo apoio e por conceder a oportunidade de meu retorno.

À CAPES, pelo auxílio financeiro. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Aos colegas do mestrado e de orientação, pelos momentos dentro e fora da sala de aula, e por compartilhar uma vivência acadêmica agradável e de muita sorte.

Aos amigos — os antigos e os não tão antigos —, pelo apoio constante e amizade sem os quais eu não teria tido sucesso em retornar à academia, não estaria onde estou nem seria quem sou.

À família; em especial à minha mãe e minha irmã, pelo apoio diário incondicional — é por elas que faço tudo o que faço.

A Ursula Kroeber Le Guin, “realista de uma realidade maior”, por todas as palavras, os ensinamentos e os mundos que acolheram a mim e a tantos — e que nos inspirarão para sempre.

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This is why utterance is magic. Words do have power. Names have power. Words are events, they do things, change things. They transform both speaker and hearer; they feed energy back and forth and amplify it. They feed understanding or emotion back and forth and amplify it.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a representação da formação ideológica da personagem protagonista do romance de ficção científica A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin, de modo a compreender em que medida a filosofia chinesa do Taoísmo se manifesta na obra em questão e poder, então, trazer contribuições para os estudos dialógicos da literatura em seu diálogo com outras áreas do conhecimento — neste caso, com a filosofia — assim como para a fortuna crítica da obra. Para tanto, é realizada uma análise dialógica dos discursos da protagonista, principal narradora do romance, para identificar as reverberações de princípios taoístas — quais sejam, neste caso: yin-yang e não ação (inação, wu wei) —, tendo como corpus filosófico o texto milenar fundante do Taoísmo: o Tao Te Ching, de Lao-Tzu. A pesquisa faz uso da abordagem teórico-metodológica de Bakhtin e o Círculo, dispondo de conceitos como discurso, enunciado, heterodiscurso, refração, alteridade e ideologia, viabilizando a análise dialógica por meio do entendimento da filosofia taoísta como uma criação ideológica, como uma ideologia em sua acepção axiologicamente neutra do termo utilizada por Bakhtin e o Círculo — como um sistema de ideias constituído por refrações e materializado em signos (como palavras). A análise expõe um discurso marcado fortemente pelos princípios taoístas do yin-yang e da não ação (wu wei), os quais constituem o romance em suas várias dimensões: estão presentes nas falas do protagonista Genly, nas suas atitudes, ações e não ações (inações), nas suas escolhas estilísticas, na forma como estrutura a narrativa romanesca, como sequencia os capítulos, e até mesmo no cenário — além de se manifestar, em especial, na sua relação com a outra personagem principal do romance, Estraven, com quem divide a narração; esta relação se transforma ao longo da narrativa e representa a integração do protagonista Genly com o outro, com Estraven, a complementaridade dos opostos e a aceitação plena do diferente, a dualidade una do yin-yang.

Palavras-chave: A Mão Esquerda da Escuridão. Relações dialógicas. Formação ideológica. Filosofia. Taoísmo.

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ABSTRACT

This work aims to analyze the representation of the main character’s ideological development in Ursula K. Le Guin’s science fiction novel The Left Hand of Darkness in order to comprehend to what extent the Chinese philosophy of Taoism is manifested in the novel, and to be able, then, to contribute to the dialogic studies of literature in its dialog with other fields of knowledge — in this case, with philosophy — and to the novel’s body of criticism. To do so, a dialogical analysis of the main character’s discourses — the novel’s main narrator — is carried out in order to identify reverberations of the Taoist principles of yin-yang and non-action (inaction,

wu wei). Lao Tzu’s millennial Taoist founder text Tao Te Ching is the philosophical corpus.

The research makes use of Bakhtin and the Circle’s theoretical-methodological approach which lays out concepts such as discourse, utterance, heteroglossia (heterodiscourse), refraction, otherness, and ideology, thus making possible a dialogical analysis through the understanding of Taoist philosophy as an ideological creation, as an ideology in the term’s axiologically neutral sense as utilized by Bakhtin and the Circle — as a system of ideas constituted by refractions and materialized in signs (like words). The analysis exposes a discourse strongly marked by the Taoist principles of yin-yang and non-action (wu wei), which informs the novel in several levels: they are in the speech of the main character Genly, in his behavior, actions and non-actions (inactions), in his stylistic choices, in the way he structures the novel’s narrative and arranges its chapters, and even in the novel’s setting. The philosophical principles manifest especially in the main character’s relationship with the novel’s other main character Estraven, with whom he shares narration. This relationship transforms as the narrative develops and it represents Genly’s integration with the other, with Estraven; it represents the complementarity of opposites and the full acceptance of the different, the joined duality of yin-yang.

Keywords: The Left Hand of Darkness. Dialogic relations. Ideological development. Philosophy. Taoism.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 8

2 UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO-TEÓRICO SOBRE IDEOLOGIA ... 19

2.1 Definições diversas de ideologia ... 19

2.2 Destutt de Tracy, Marx e Engels... 24

2.3 Lukács e Gramsci ... 28

3 FUNDAMENTOS DA ANÁLISE DIALÓGICA DA LITERATURA DE BAKHTIN E O CÍRCULO ... 32

3.1 Ideologia para Bakhtin e o Círculo ... 32

3.2 Discurso e relações dialógicas ... 37

4 AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA DO ENVIADO E O TAO TE CHING ... 50

4.1 A representação do princípio do yin-yang ... 52

4.2 A representação do princípio da não ação ou inação (wu wei) ... 75

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 95

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1 INTRODUÇÃO

A Literatura Comparada vem em uma jornada agitada desde o seu florescimento nos idos do século XIX. Em meio a expansões, questionamentos e transformações, ela resta consolidada e em plena evolução — considerada em uma perspectiva macro, à luz dos debates sobre sua natureza, métodos, delimitações e propósitos nas últimas décadas. Do termo “Weltliteratur”, cunhado por Goethe, aos imbróglios mais recentes com a área dos estudos culturais, a Literatura Comparada cresceu e se concretizou como uma área de investigações plurais, afeita aos diálogos interdisciplinares e com um imenso potencial científico de mediação.

A comparação é intrínseca aos estudos literários e às artes da interpretação desde sua concepção, como afirma o professor e crítico literário George Steiner (1997). Na experiência linguística, segundo ele, “captamos e utilizamos as palavras […] em virtude daquilo que as diferencia de outras palavras. […] A linguagem do poeta nos faz sentir em casa com algo que não conhecíamos. […] O processo semântico é um processo de diferenciação” (STEINER, 1997, p. 173; tradução nossa).1 E então arremata: “Ler é comparar” (STEINER, 1997, p. 173).2

Tânia Carvalhal (2003) reflete que a Literatura Comparada é melhor compreendida “mais como uma forma específica de análise” (p. 11) do que como uma disciplina bem delimitada, e que ela “se ocupa com questões que decorrem do confronto entre o literário e o não-literário, entre o fragmento e a totalidade, entre o similar e o diferente, entre o próprio e o alheio” (p. 11). Uma conceituação clássica é a de Henry H. H. Remak, o qual definiu a Literatura Comparada como “a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana” (CARVALHAL, 2003, p. 46). Ao atestar pelo estudo comparado das diferentes expressões humanas, Remak delineia um horizonte científico que desvela um universo de possibilidades dentro das artes, das ciências, daquilo que é humano.

1 A maioria das traduções apresentadas nesta dissertação foram feitas por mim, por um desses dois motivos: a) a

obra não possui publicação oficial em língua portuguesa no Brasil; ou b) a edição brasileira era de difícil acesso e/ou disponibilidade no período em que este trabalho foi escrito. Em todas, apresento o texto original em nota de rodapé. Escrevo essa nota explicativa para evitar a repetição exaustiva da expressão “tradução nossa” ao longo de toda esta dissertação. Todavia, quando a obra possui edição brasileira à qual tive acesso, faço o seu devido uso. Nestes casos, naturalmente, não há nota de rodapé com o texto original. Isto posto, eis a citação do trecho original da tradução espanhola: “captamos y utilizamos las palabras […] en virtud de lo que las diferencia de otras palabras. […] El lenguaje del poeta nos hace sentirnos en casa con algo que no conocíamos. […] El proceso semántico es un proceso de diferenciación.”

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Ao mesmo tempo que permite uma miríade de caminhos científicos de forma saudável, tal característica também pode se mostrar problemática para a Literatura Comparada: não só pelo risco da amplitude desmedida dos campos investigados, mas também, por exemplo, por exigir competências deveras diversas daqueles que realizam as investigações. São questões como essas que são discutidas por Charles Bernheimer (1995), além da tendência à contextualização (histórica, cultural, política etc.), o multiculturalismo, o cânone, dentre outras. Mary Louise Pratt (1995) fez questão de apontar a necessidade de lidar com “as crises de responsabilidade e de expertise produzida pela reconfiguração de objetos e de metodologias em conexão com a globalização, a democratização e a descolonização” (p. 63)3, além de indicar a importância de “reconhecer que o comparativismo agora inclui tanto o familiar trabalho ‘horizontal’ de comparar caso A com caso B quanto o trabalho ‘vertical’ que relaciona o global com o local” (p. 63-64).4

Apesar de ter se consolidado robustamente em regiões como a América do Norte anglófona e a maior parte da Europa, nelas a Literatura Comparada vem se fragilizando em sua presença institucional, enquanto, por outro lado, prospera noutras regiões como a América Latina, Ásia e Oriente Médio (ZEPETNEK; MUKHERJEE, 2013). Zepetnek e Mukherjee (2013) apontam a fluidez das fronteiras da Literatura Comparada com outras áreas correlatas, afirmando que “enquanto no Oeste há (com frequência) uma linha divisória entre literatura comparada e estudos culturais, em outros lugares a literatura comparada está sendo revivida ao fazer uso de princípios dos estudos culturais” (p. vii-viii).5

A despeito das celeumas de além-mar, esta pesquisa se beneficia em sua realização em um programa de Estudos da Linguagem que tem se fortalecido em anos recentes. A presente dissertação resulta de pesquisa empreendida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no programa de mestrado em Estudos da Linguagem, área de concentração em Literatura Comparada, na linha de pesquisa Leitura do Texto Literário e Ensino. Ela aborda o romance A

Mão Esquerda da Escuridão (título original The Left Hand of Darkness), da escritora

3 Trecho original em inglês: “[…] the crises of accountability and expertise produced by the reconfiguration of

objects and methodologies in connection with globalization, democratization, and decolonization.”

4 Trecho original em inglês: “[…] to recognize that comparativism now includes both the familiar ‘horizontal’

work of comparing case A with case B, and also ‘vertical’ work relating the global and the local.”

5 Trecho original em inglês: “While in the West there is (often) a dividing line between comparative literature and

cultural studies, in other places comparative literature is being revived by making use of tenets of cultural studies […].”

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estadunidense Ursula K. Le Guin, em um estudo comparatista com a filosofia chinesa do Taoísmo, especificamente com sua obra fundante Tao Te Ching, de Lao-Tzu.6

De antemão, é necessário comentar o aspecto comparativo entre literatura e filosofia que este trabalho explora. Aqui, faço questão de rememorar a definição de Remak para a Literatura Comparada, em que se vê a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana — e filosofia, “a mãe de todas as ciências”, naturalmente é uma delas.

David Rudrum (2006) comenta que “filosofia e literatura quase sempre estiveram próximas uma da outra, de Platão e Aristóteles passando por Voltaire e Rousseau até os Românticos e Existencialistas” (p. 2).7 Não é raro observarmos ao longo da história produções que exploram ou simplesmente ignoram as fronteiras entre literatura e filosofia, entre texto literário e texto filosófico. Nas palavras de Barry Stocker (2018), “a filosofia emerge da literatura […] e é sempre, pelo menos em uma acepção mínima, escrita em um estilo de alguma forma, usando linguagem figurada e ficção para impressionar o leitor” (p. 2).8

São dignas de nota algumas tradições culturais mais afeitas à brasileira, como a da França, por exemplo, em que a literatura e a filosofia exibiram proximidade pelo menos desde as décadas de 1930 e 1940, materializada nas obras de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir, para citar alguns dos maiores nomes. Os três, segundo Rudrum (2006), “desfrutaram de sucesso tanto como romancistas quanto como filósofos, ao ponto em que chamar seus trabalhos de ‘filosofia’ ou ‘literatura’ é, no máximo, fazer uma distinção arbitrária e registrar presunções de fronteiras disciplinares claras que tais obras não compartilham” (p. 9).9 Na filosofia anglo-americana, desenvolveram-se diálogos e debates, em especial, entre a filosofia analítica (tratada como sinônimo de filosofia anglo-americana) e a teoria literária (RUDRUM, 2006).

Na Alemanha, a relação entre filosofia e literatura goza de grande destaque no pensamento cultural, principalmente pelo papel fundamental do Romantismo. Como expõe Rudrum (2006), “filósofos como Fichte […] e Schelling […] são tão centrais para o Romantismo alemão quanto escritores como Goethe […] e Schiller […], e distinções

6 Ao longo dos séculos, diversas grafias do nome do sábio chinês foram adotadas e transliteradas. Dentre elas

estão: Lao Zi, Laozi, Lao-Tzu, Lao Tzu, Lao-Tsu, Lao Tze, Lao-Tsé. Adotei a grafia Lao-Tzu, baseada no sistema Wade-Giles, por ser similar às das fontes bibliográficas utilizadas para esta dissertação.

7 Trecho original em inglês: “[…] philosophy and literature have almost always been in close proximity to one

another, from Plato and Aristotle through Voltaire and Rousseau to the Romantics and Existentialists.”

8 Trecho original em inglês: “Philosophy emerges from literature […] and is always at least in some minimal sense

written in a style of some form, using figurative language and fiction to impress the reader.”

9 Trecho original em inglês: “[…] enjoyed success both as novelists and as philosophers, to the extent that dubbing

their works as either ‘philosophy’ or ‘literature’ is, at best, making arbitrary distinction, and registering assumptions about clear-cut disciplinary boundaries that their work do not share.”

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disciplinares entre literatura, filosofia e crítica ou teoria são frequentemente questionáveis, ou até mesmo inadequadas” (p. 77).10 Essa tradição alemã é marcada, por exemplo, pela mistura do discurso literário com o filosófico, da qual um dos maiores nomes é Friedrich Nietzsche, cujas obras — como Assim Falou Zaratustra e A Gaia Ciência — “fazem uso abundante de artifícios como narrativa, alegoria e metáfora, em um estilo que é, para usar algum termo, mais ‘literário’ do que ‘filosófico’ (no sentido tradicional desses termos)” (RUDRUM, 2006, p. 77).11

Dito isso, adentrando a literatura específica alvo desta pesquisa, trago à tona a ficção científica. As definições acerca desse gênero literário são disputadas e inúmeras. Uma delas, por exemplo, é a apresentada por Bruce Sterling (2019), o qual afirma que a ficção científica é “uma forma de ficção que lida principalmente com o impacto da ciência real ou imaginada na sociedade ou nos indivíduos”.12 A verdade é que o gênero já tende, normalmente, a desafiar definições e barreiras, o que torna seu enquadramento muitas vezes limitado, insuficiente, falho — o que poderia ser dito também de outros gêneros literários.

Uma conceituação mais apreciada, no entanto, é a elaborada por Darko Suvin, em que ele explana que a ficção científica é “um gênero literário ou construto verbal cujas condições bastantes e necessárias são a presença e a interação do estranhamento e da cognição, e cujo

principal artifício é uma estrutura imaginativa alternativa à do ambiente empírico do autor”

(SUVIN, 1988, p. 37; grifo do autor13).14 Os dois maiores aspectos dessa definição são: o “estranhamento”, esse causado por algum elemento inédito, novo, o “novum”, como diria o próprio Suvin; e o ambiente imaginário alternativo ao do autor.

Sobre esses aspectos, Istvan Csicsery-Ronay Jr. (2003) tece comentários no sentido de diferenciar a ficção científica de outros gêneros que exploram o “estranhamento”, como, por exemplo, a fantasia, explicando que “os deslocamentos da ficção científica devem ser logicamente consistentes e metódicos; de fato, eles devem ser científicos na medida em que

10 Trecho original em inglês: “Philosophers such as Fichte […] and Schelling […] are as central to German

Romanticism as writers like Goethe […] and Schiller […], and disciplinary distinctions between literature, philosophy, and criticism or theory are frequently questionable, or even inappropriate […].”

11 Trecho original em inglês: “make abundant use of such devices as narrative, symbolism, allegory, and metaphor,

in a style that is, if anything, more ‘literary’ than ‘philosophical’ (in the traditional senses of these terms).”

12 Trecho original em inglês: “a form of fiction that deals principally with the impact of actual or imagined science

upon society or individuals.”

13 Via de regra, nesta dissertação, os grifos em itálico são dos autores originais e os em negrito são meus. Se não

houver especificação de que os negritos são meus, significa que são provenientes da citação original.

14 Trecho original em inglês: “a literary genre or verbal construct whose necessary or sufficient conditions are the presence and interaction of estrangement and cognition, and whose main device is an imaginative framework alternative to the author’s empirical environment.”

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imitam, reforçam e iluminam o processo de cognição científica” (p. 118).15 Esse “novum” de Suvin é o elemento inovador que gera as diferenças entre o mundo ficcional em questão e o mundo real como conhecido pelo autor e pelo leitor, e ele é, por definição, racional, em contraste aos aspectos sobrenaturais dos gêneros fantásticos (CSICSERY-RONAY JR., 2003). Adam Roberts (2016), em sua obra The History of Science Fiction, quando apresenta sua própria definição do gênero, também faz uso do termo de Suvin, e acrescenta ainda que há graus de estranhamento desse novum que variam entre obras, e que os exemplos mais comuns são ícones tecnológicos até certo ponto coisificados, como máquina do tempo, espaçonave e robô:

O grau de diferenciação — a estranheza do novum, para usar a terminologia de Suvin — varia de texto para texto, mas frequentemente envolve exemplos de artifícios tecnológicos que se tornaram, até certa medida, coisificadas com o uso: a espaçonave, o alienígena, o robô, a máquina do tempo e assim por diante. (p. 2)16

A origem do gênero da ficção científica também não é pacífica. Há quem trace as raízes aos primórdios da própria literatura, ao Épico de Gilgamesh; há quem aponte para a obra do grego Luciano de Samos, Alêthês Historia (História Verdadeira), do ano 170, ou para Somnium (Sonho), de Johannes Kepler, publicada em 1634: uma narrativa ficcional em que o cientista justifica suas especulações de uma viagem para a lua com longas notas baseadas em suas observações científicas (ROBERTS, 2006; STERLING, 2019). Outros nomes influentes dos séculos XVII e XVIII também costumam ser citados, como Cyrano de Bergerac, Margaret Cavendish (The Description of a Blazing New World, de 1666), Voltaire (Micromégas, de 1750) e Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver, de 1726) (ROBERTS, 2006; SPENDER, 1986).

Entretanto, a obra que mais atrai certa confluência crítica e acadêmica no entendimento da origem moderna do gênero é o romance Frankenstein, ou o Prometeus Moderno, de Mary Wollstonecraft Shelley, publicado em 1818. Considerada por muitos a “mãe da ficção científica”, Shelley apresentou um protagonista com interesses científicos em eletricidade galvânica e vivissecção, duas tecnologias avançadas de sua época — e, também através disso, a autora conferiu ao romance um ar de plausibilidade científica (STERLING, 2019).

15 Trecho original em inglês: “sf’s displacements must be logically consistent and methodical; in fact, they must

be scientific to the extent that they imitate, reinforce and illuminate the process of scientific cognition.”

16 Trecho original em inglês: “The degree of differentiation—the strangeness of the novum, to use Suvin’s

terminology—varies from text to text, but more often than not involves instances of technological hardware that have become, to a degree, reified with use: the spaceship, the alien, the robot, the time-machine and so on.”

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O gênero ainda se beneficiou de grandes autores como Júlio Verne e H. G. Wells antes de alcançar o que nos Estados Unidos foi chamada de “Era de Ouro da Ficção Científica” (Golden Age of Science Fiction). A expressão é tipicamente relacionada às produções do período que vai do fim da década de 1930 até a década de 1950 e foi cunhada por fãs; costuma se referir à ficção científica que floresceu junto com a dominação mundial estadunidense, em especial após a Segunda Guerra Mundial, e que, portanto, reflete um sentimento otimista, expansionista — exploração de novas fronteiras, agora espaciais —, de grande enfoque tecnológico na solução dos problemas humanos, assim como, também, medos e ansiedades imperiais (ROBERTS, 2006). Essa ficção era marcadamente composta por narrativas lineares e por “heróis que resolviam problemas e enfrentavam ameaças em uma linguagem de ópera espacial ou tecnológico-aventureira” (ROBERTS, 2016, p. 287).17 Dentre os grandes nomes dessa época se destacam os autores Isaac Asimov e Robert A. Heinlein e os editores Hugo Gernsback e John W. Campbell, sendo esses últimos determinantes para os rumos do que era publicado no gênero — todos eles homens, todos eles brancos (ROBERTS, 2006).

O período subsequente à “Era de Ouro” foi a Nova Onda da Ficção Científica (New

Wave of Science Fiction) durante as décadas de 1960 e 1970 — período onde se insere o

romance objeto desta pesquisa, A Mão Esquerda da Escuridão (1969). A Nova Onda se refere aos escritores do período mencionado “que, de uma forma ou de outra, reagiram contra as convenções da ficção científica tradicional para produzir ficções científicas de vanguarda, radicais ou fraturadas” (ROBERTS, 2016, p. 334).18 Esse “movimento” foi “parte de um interesse internacional maior em técnicas literárias experimentais e de vanguarda” (ROBERTS, 2016, p. 334).19 Além de tentar elevar a qualidade estilística e literária do gênero, a Nova Onda surgiu em reação ao sentimento de opressão que novos escritores sentiam em relação ao catálogo existente — e o que ela fez foi recalibrar o enfoque do gênero do conteúdo, das ideias, para a forma, o estilo e a estética (ROBERTS, 2016).

Contudo, a ficção científica estadunidense continuou sendo escrita em grande parte seguindo os tradicionais protocolos que insatisfaziam a Nova Onda — os membros desta, inclusive, não abandonaram de todo as tendências marcantes do gênero; pelo contrário, a produção, em sua maior parte, continuou a ser dentro dos moldes firmados (ROBERTS, 2016).

17 Trecho original em inglês: “heroes solving problems or countering threats in a space-operatic or a

technological-adventure idiom.”

18 Trecho original em inglês: “who, in one way or another, reacted against the conventions of traditional SF to

produce avant-garde, radical or fractured science fictions.”

19 Trecho original em inglês: “part of a broader international interest in experimental and avant-garde literary

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Alguns dos principais nomes desse período foram Robert A. Heinlein (Stranger in a Strange

Land, de 1961), Frank Herbert (Duna, de 1965), John Barth, Michael Moorcock, Philip K. Dick,

Brian Aldiss e Ursula K. Le Guin.

Apesar de os nomes tipicamente mais famosos dos períodos mencionados costumarem ser de homens, inúmeras autoras mulheres publicaram e compuseram o gênero, sedimentando o caminho para o estouro feminino nos anos 1970, como salienta Veronica Hollinger (2003):

O trabalho de escritoras populares como Leslie F. Stone, Francis Stevens, C. L. Moore, Naomi Mitchison, Leigh Brackett, E. Mayne Hull, Andre Norton e Marion Zimmer Bradley durante as décadas de 1930, 1940 e 1950 ajudaram a estabelecer uma tradição que, por sua vez, forneceu parte do ímpeto necessário para a explosão de escrita feminina nos anos 1970, notavelmente incluindo o inovador estudo de Ursula K. Le Guin do controle do gênero sobre a cultura humana em A Mão Esquerda da Escuridão (1969) […]. (p. 128)20

A esses nomes, ainda acrescento Octavia Butler, Joanna Russ, Marge Piercy, Vonda McIntyre e Alice Sheldon, a qual escreveu durante boa parte de sua carreira sob o pseudônimo James Tiptree Jr. (que ainda hoje é o nome de um prêmio literário nos EUA).

Após essa contextualização, chego, afinal, à apresentação do romance A Mão Esquerda

da Escuridão. Ele faz parte do Ciclo Hainish — um conjunto de obras de ficção científica que

se passam dentro do mesmo universo ficcional —, foi publicado em 1969 e ganhou os maiores prêmios do gênero (Hugo e Nebula Award), tendo sido amplamente bem recebido pelo público e pela crítica — incluindo Harold Bloom, crítico ferrenho da “literatura de gênero”, o qual afirmou que “Le Guin, mais do que Tolkien, elevou a fantasia à alta literatura” (BLOOM, 1987, p. 10).21 Ursula K. Le Guin foi uma escritora prolífica até seu falecimento em janeiro de 2018 aos 88 anos; seu trabalho mais popular foi nos gêneros ficcionais de fantasia e ficção científica, em que publicou obras que desafiam barreiras e classificações e que empreendem verdadeiros estudos antropológicos, explorando as possibilidades e impossibilidades que esses gêneros permitem.

Quanto às pesquisas já existentes sobre Le Guin, análises notáveis foram empreendidas sobre a presença filosófica taoísta na obra da autora, destacadamente Dancing the Tao: Le Guin and Moral Development, de Sandra J. Lindow (2012), e Understanding Ursula K. Le Guin, de

20 Trecho original em inglês: “The work of popular writers such as Leslie F. Stone, Francis Stevens, C. L. Moore,

Naomi Mitchison, Leigh Brackett, E. Mayne Hull, Andre Norton and Marion Zimmer Bradley during the 1930s, 1940s and 1950s helped to establish a tradition that in turn provided some of the necessary impetus for the explosion of writing by women in the 1970s, notably including Ursula K. Le Guin’s ground-breaking study of gender’s grip on human culture in The Left Hand of Darkness (1969) […].”

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Elizabeth Cummins (1990). A primeira compreende um conjunto de artigos sobre obras variadas de Le Guin, aprofundando-se em temas específicos em cada uma. No que tange ao romance A Mão Esquerda da Escuridão, traz uma discussão valiosa acerca da relação entre as duas personagens principais — Genly e Estraven. A segunda é uma análise mais ampla da obra ficcional de Le Guin, ainda que a discussão sobre A Mão Esquerda da Escuridão seja surpreendentemente abrangente e rica considerando suas limitações de tamanho (apenas um terço de um capítulo, pouco menos de vinte páginas). Cummins, na seção do livro que se refere ao romance citado, pontua diversos aspectos em uma discussão que talvez seja a mais completa publicada até o momento. Nessa mesma esteira, embora mais breve ainda, segue a análise apresentada por Dena C. Bain (1980) em seu artigo The Tao Te Ching as Background to the Novels of Ursula K. Le Guin, que levanta alguns dos pontos essenciais para uma análise do Taoísmo no romance em questão.

Tendo esses grandes referenciais, a proposta desta pesquisa é poder aprofundar, detalhar e expandir a análise da filosofia taoísta dentro de A Mão Esquerda da Escuridão, almejando uma maior completude alicerçada em uma pormenorização cuidadosa e relevante do discurso nesse romance. Outras pesquisas, no entanto, precisam ser comentadas.

Os estudos sobre personagens e comunidades no espectro das obras de Le Guin realizadas em Communities of the Heart: The Rethoric of Myth in the Fiction of Ursula K. Le Guin, de Warren G. Rochelle (2001), constituem uma base valiosa para esta pesquisa, em especial no que contribuem em seu aspecto sociológico e antropológico. O estudo de Mike Cadden (2005), Ursula K. Le Guin Beyond Genre: fiction for children and adults, o qual impressiona pela sua dimensão e profundidade, traz como referência teórica Mikhail Bakhtin, sobretudo ao fazer uso do conceito de cronotopo ao analisar a ideia de “lar” na totalidade da obra publicada da autora.

Como corpus de principal referência filosófica para o estudo do Taoísmo, escolhi o Tao

Te Ching, de Lao-Tzu, por ser o texto primeiro, fundador da corrente filosófica. A tradução de

Arthur Waley (LAO-TZU, 1958) para a língua inglesa, em The Way and Its Power: Lao Tzu’s Tao Tê Ching and Its Place in Chinese Thought, é direta do original e, além de conter o estudo profundo e valioso do autor, é também a mais tradicional, por isso figura como grande referencial ao lado da versão feita pela própria Ursula K. Le Guin (LAO-TZU, 1997) em Tao

te ching: a book about the way and the power of the way. Essa última fonte possibilita uma

oportunidade única e um dos melhores meios possíveis de se analisar o modo como a autora compreende o Tao Te Ching e a filosofia taoísta e, portanto, a refrata (para usar o termo bakhtiniano apropriado, devidamente explicado na próxima seção).

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Além destes, três referenciais de grande relevância para o entendimento histórico, social e filosófico da filosofia chinesa taoísta foram os livros de Holmes Welch (1971), Taoism: the parting of the way, de Joseph Needham (1956), Science and Civilisation in China Volume 2: History of Scientific Thought, de Jean C. Cooper (2010), An Illustrated Introduction to Taoism, e de Fabrizio Pregadio (2008), The Encyclopedia of Taoism.

Nesta dissertação, faço uso da abordagem teórica de Bakhtin e de outros autores do seu Círculo. Entretanto, diferentemente de outros estudos acadêmicos, aqui a análise se concentra unicamente no romance citado de modo a ser mais abrangente e pormenorizada no que tange aos elementos analisados. Ademais, trago um aparato conceitual um pouco maior e mais diverso — excetuando, de propósito, o cronotopo.22

É nessa vereda da investigação filosófico-literária que a presente pesquisa se desenvolve, buscando complementar, expandir, ir além do que já foi realizado nos trabalhos citados.

Esta pesquisa é uma análise dialógica entre o romance A Mão Esquerda da Escuridão e o texto filosófico Tao Te Ching sob a visão teórico-metodológica de Bakhtin e o Círculo23, em que se objetiva analisar a formação ideológica da personagem protagonista, Genly Ai. A pesquisa almeja, com isso, contribuir para os estudos e ensino literários por meio de uma análise dialógica dos discursos do referido romance e do Taoísmo — corporificado em sua obra fundamental, o Tao Te Ching — a partir da abordagem teórica de Bakhtin e o Círculo, a qual permite compreender a filosofia como ideologia e trabalhar os discursos dialogicamente. Para tanto, pretende identificar a presença dos princípios elementares taoístas — no caso, dois: o yin-yang e a não ação — no romance, especificamente sua representação refratada através da personagem protagonista, e os efeitos dela decorrentes.

O propósito é responder ao seguinte questionamento: em que medida princípios do taoísmo são refratados na representação da formação ideológica da personagem protagonista Genly Ai?

Nessa perspectiva, vale ressaltar o que esta pesquisa não é, o que foge ao seu recorte. Esta pesquisa não traz uma discussão exaustiva sobre a ficção científica. A obra sob análise é uma obra do gênero e, portanto, é necessário que contextualizações e esclarecimentos sejam feitos, mas o enfoque é o romance A Mão Esquerda da Escuridão. De maneira similar,

22 Sobre o cronotopo na obra de Ursula K. Le Guin, ver Cadden (2005).

23 Por muito tempo, se convencionou o uso da expressão “Círculo de Bakhtin” para se referir ao grupo de

pensadores composto por Bakhtin, Volóchinov, Medviédev etc. Entretanto, em tempos recentes, a expressão “Bakhtin e o Círculo” tem ganhado certa tração no meio acadêmico brasileiro e é esta que aqui adoto, principalmente por ter um caráter menos hierárquico do que a outra expressão.

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esta pesquisa não se detém em explicações sobre a literatura de forma geral, suas origens, ou mesmo sobre o gênero romanesco. Incorreria, nesse caso, em repisar algo de ampla aceitação e produção acadêmica.

Esta pesquisa não traz uma discussão exaustiva sobre o taoísmo. Não obstante ser fundamental e parte do corpus, investigo o encontro de aspectos taoístas do Tao Te Ching com o romance em questão. A referida filosofia chinesa é riquíssima e vasta; o que trago nestas linhas é um pequeno recorte dentro do contexto da análise literária. Tudo serve à investigação, à pesquisa de análise literária comparativa, visto que é realizada na área de Literatura Comparada.

Esta pesquisa não traz uma discussão exaustiva sobre ideologia. Dedico uma seção própria ao tema devido à sua conceituação conturbada e usos comumente desregrados e contraditórios, de modo a delimitar e explicitar em que medida faço uso do termo e o que ele representa dentro do aparato teórico que disponho para a análise. O termo merece e tem uma atenção especial nesta pesquisa, mas, novamente, ele se encontra aqui em um contexto específico e delimitado — em uma pertinência de parte de um todo, compondo as ferramentas para análise e nesta se manifestando. Assim como a filosofia taoísta, ela é riquíssima e vasta; naturalmente, como em qualquer pesquisa acadêmica, ela se apresenta lapidada ao recorte, ela tem um direcionamento específico com vistas ao propósito desta pesquisa, à sua plena realização — em especial à realização da análise literária dialógica, que é o aspecto inédito deste trabalho.

Nessa esteira, a relevância primordial deste estudo está na observação de como concepções filosóficas se manifestam em uma obra literária, mais precisamente em uma personagem e seu discurso, o que propicia, afinal, uma melhor compreensão tanto da filosofia quanto da literatura — e, em última análise, de nós mesmos enquanto indivíduos, comunidades, sociedades —, fomentando o ensino e a pesquisa de ambas dentro desse dinamismo dialógico entre textos e discursos de várias naturezas — no presente caso, naturezas literária e filosófica. A compreensão dos sentidos, dos valores e das ideologias por fora, por dentro, por trás e nas entrelinhas das palavras, dos discursos, nunca foi tão necessária. Os estudos literários, para tanto, são uma excelente seara.

Uma segunda necessidade da realização da pesquisa se traduz na demonstração da pluralidade de abordagens possíveis acerca da obra da autora em questão, em especial no que tange ao seu valor instrumental para o ensino e estudos filosóficos e literários. A ficção de Ursula K. Le Guin transita com naturalidade e despudor entre gêneros e temáticas, lidando com feminismo, gênero, utopia, antropologia, psicologia, ciência, religião e muito mais. O potencial

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de exploração em estudos acadêmicos das obras da autora é imenso e, embora existam trabalhos em língua inglesa que o façam, esta pesquisa vem reforçar e exemplificar o horizonte de possibilidades.

Outra motivação desta empreitada acadêmica é, em consonância com a anterior, o esforço em trazer a obra de Ursula K. Le Guin à primeira fileira do estudo literário acadêmico, conferindo a merecida importância no ambiente brasileiro — além da que goza em sua terra natal — a uma das autoras mais premiadas e relevantes de sua época.

Por fim, mais uma relevância desta pesquisa é sua convergência de perspectivas multiculturais para a análise literária, destacadamente em um nível tão fundamental quanto o das raízes dos pensamentos ocidental e oriental, reconciliando filosofias díspares enquanto, sem receios, ousa atravessar barreiras culturais imaginárias e defasadas para buscar um trato genuinamente humano — em suas amplas acepções — da arte literária, reputando-a nada menos do que a sua real natureza: universal.

Diante disso, para alcançar os objetivos propostos e responder à pergunta de pesquisa, esta dissertação será dividida em três seções.

A seção 2, Um breve percurso histórico-teórico sobre Ideologia, apresenta uma visão geral, um apanhado histórico das origens do termo e seus principais usos e perfilamentos teórico-acadêmicos. A seção é guiada até se aproximar ao pensamento de Bakhtin e o Círculo, abordado na seção seguinte.

A seção 3, Fundamentos da análise dialógica da literatura de Bakhtin e o Círculo, desenvolve os principais conceitos teóricos de Bakhtin e o Círculo sobre os quais a pesquisa se fundamenta: ideologia, palavra, enunciado, discurso, sujeito, identidade, alteridade, refração, heterodiscurso, relações dialógicas e formação ideológica.

A seção 4, As relações dialógicas entre a formação ideológica do Enviado e o Tao Te

Ching, traz a análise dialógica, em que há a apresentação da filosofia taoísta e, em seguida, a

análise propriamente dita do discurso da personagem protagonista e suas relações dialógicas com o discurso taoísta do Tao Te Ching. A análise é dividida em duas subseções, cada uma se dedicando a analisar a representação de um princípio taoísta: primeiro o yin-yang e depois a não ação — ou inação, wu wei.

Por fim, a dissertação encerra com as considerações finais, onde é apresentada a conclusão da análise em resposta à pergunta de pesquisa e, então, são traçadas possíveis contribuições desta pesquisa ao ensino de literatura.

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2 UM BREVE PERCURSO HISTÓRICO-TEÓRICO SOBRE IDEOLOGIA

O termo ideologia é usado e abusado há séculos; até os dias atuais há desencontros e contradições em seu uso e sua conceituação. Em razão disso, preciso explicar que concepção utilizo nesta pesquisa e fazer os devidos esclarecimentos. Aproveito a oportunidade para retraçar a origem da palavra e sua caminhada entre as correntes de pensamento mais relevantes a este trabalho — ou seja, as que nos levam de encontro à concepção de Bakhtin e o Círculo.

De antemão, apresento alguns entendimentos recentes acerca do termo para que tenhamos um chão sobre o qual andar, usando como norte a obra de Terry Eagleton (1991) sobre ideologia.

2.1 Definições diversas de ideologia

É interessante notar o alerta que Terry Eagleton (1991) faz quanto ao que ideologia não é: “Ela não é nem um conjunto de discursos difusos nem um todo sem emendas” (p. 222).24 O termo passeia por uma amplidão de concepções e ele critica as mais extremadas e radicais, desde a que o clama como determinação social do pensamento até a que o recorta como emprego de falsas ideias em interesse direto de uma classe governante. Segundo ele, “com frequência, [ideologia] se refere às formas pelas quais signos, significados e valores ajudam a reproduzir um poder social dominante; mas também pode denotar qualquer conjuntura significativa entre discurso e interesses políticos” (EAGLETON, 1991, p. 221).25 Desses significados, o primeiro seria pejorativo e o segundo, mais neutro — dentro do que ele chama de "uma perspectiva radical”.

Eagleton elenca um rol de definições já aplicadas ao termo ideologia, dentre as quais podemos reconhecer várias:

(a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida social; (b) um corpo de ideias característico de um grupo ou classe social particular; (c) ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante;

24 Trecho original em inglês: “It is neither a set of diffuse discourses nor a seamless whole.”

25 Trecho original em inglês: “Very often, it refers to the ways in which signs, meanings and values help to

reproduce a dominant social power; but it can also denote any significant conjuncture between discourse and political interests.”

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(d) ideias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante; (e) comunicação sistematicamente distorcida;

(f) aquilo que oferece uma posição a um sujeito;

(g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais; (h) pensar identitário;

(i) ilusão necessária socialmente; (j) a conjuntura de discurso e poder;

(k) o meio no qual atores sociais conscientes compreendem o seu mundo; (l) conjuntos de crenças orientadas à ação;

(m) a confusão de realidade linguística e fenomenal; (n) fechamento semiótico;

(o) o meio indispensável no qual indivíduos vivem suas relações;

(p) o processo no qual a vida social é convertida em realidade natural. (p. 1-2)26

Algumas dessas definições são incompatíveis entre si; outras se reforçam ou geram condicionais que podem ser problemáticas. Da mesma maneira, algumas são ou podem ser pejorativas, e outras não são de forma alguma. Para Eagleton, tanto a acepção ampla quanto a estreita têm suas aplicações; considerando que possuem histórias políticas e conceituais diferentes, basta apenas que seja reconhecido tal fato. Ele afirma que “a força do termo ideologia jaz na sua capacidade de discriminar entre aquelas disputas de poder que são de alguma forma centrais para toda uma forma de vida social e aquelas que não são” (EAGLETON, 1991, p. 8).27 A perda de força da palavra se dá quando ela cobre absolutamente tudo e, assim, mingua em seu fio de precisão. Nesse sentido, para atar o termo às disputas de poder, Eagleton aponta os valores, as crenças — ecoando o entendimento de Bakhtin e o Círculo, como debatido na próxima seção —, posto que “se não há valores e crenças atados ao poder, então o termo ideologia ameaça expandir ao ponto de desaparecer” (EAGLETON, 1991, p. 7; grifo do autor).28

Uma linha de pensamento acerca de ideologia, grosso modo, derivada de Hegel e Marx, se preocupa com ideias de cognição verdadeira ou falsa, para o que ideologia é vista como ilusão, distorção e mistificação. Outra corrente, também influenciada pela herança marxista, se

26 Trecho original em inglês: “(a) the process of production of meanings, signs and values in social life; (b) a body of ideas characteristic of a particular social group or class; (c) ideas which help to legitimate a dominant political power; (d) false ideas which help legitimate a dominant political power; (e) systematically distorted communication; (f) that which offers a position for a subject; (g) forms of thought motivated by social interests; (h) identity thinking; (i) socially necessary illusion; (j) the conjuncture of discourse and power; (k) the medium in which conscious social actors make sense of their world; (l) action-oriented sets of beliefs; (m) the confusion of linguistic and phenomenal reality; (n) semiotic closure; (o) the indispensable medium in which individuals live out their relations; (p) the process whereby social life is converted to a natural reality.”

27 Trecho original em inglês: “The force of the term ideology lies in its capacity to discriminate between those

power struggles which are somehow central to a whole form of social life, and those which are not.”

28 Trecho original em inglês: “[…] if there are no values and beliefs not bound up with power, then the term

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foca mais na função das ideias na vida social do que em seu aspecto real ou irreal, em uma perspectiva mais sociológica. Proposições falsas, Eagleton (1991) comenta, frequentemente compõem ideologias; a questão passa a ser, então, não “se a pessoa nega isso, mas que papel atribui a tal falsidade em sua teoria de ideologia como um todo” (p. 15).29

Slavoj Žižek (1994) ressalta a possibilidade de uma ideologia ser verdadeira ou falsa, pois seu conteúdo em si não importa tanto: o que mais importa é “a forma como esse conteúdo

é relacionado à posição subjetiva insinuada pelo seu próprio processo de enunciação” (p. 8;

grifo do autor).30 Quando tal conteúdo exerce uma função de forma sub-reptícia quanto à dominação social, podemos identificar sua natureza ideológica; a efetividade da lógica de dominação depende do quão bem ela está escondida — é o “mentir com o disfarce da verdade”, que Žižek (1994) traz neste trecho:

Estamos propriamente dentro do espaço ideológico no momento em que este conteúdo — “verdadeiro” ou “falso” (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) — é funcional no que se refere a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração”) de algum modo inerentemente não transparente: a própria lógica de legitimar a relação de dominação deve permanecer oculta para que seja efetiva. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica de ideologia tem que ser o total reconhecimento do fato de que é facilmente possível mentir com o disfarce da verdade. (p. 8; grifos do autor)31

É também nessa linha que segue Eagleton (1991) ao dizer que “pelo menos parte do que chamamos de discurso ideológico é verdadeiro em uma camada, mas não em outra: verdadeiro em seu conteúdo empírico, mas enganador em sua força, ou verdadeiro no significado superficial, mas falso nas presunções ocultas” (p. 17)32, o que significa ainda, então, que “a tese da ‘falsa consciência’ não precisa ser abalada significativamente pelo reconhecimento de que

29 Trecho original em inglês: “[…] whether one denies this, but what role one ascribes to such falsehood in one’s

theory of ideology as a whole.”

30 Trecho original em inglês: “[…] the way this content is related to the subjective position implied by its own process of enunciation.”

31 Trecho original em inglês: “We are within ideological space proper the moment this content — ‘true’ or ‘false’

(if true, so much the better for the ideological effect) — is functional with regard to some relation of social domination (‘power’, ‘exploitation’) in an inherently non-transparent way: the very logic of legitimizing the

relation of domination must remain concealed if it is to be effective. In other words, the starting point of the critique

of ideology has to be the full acknowledgement of the fact that it is easily possible to lie in the guise of truth.”

32 Trecho original em inglês: “[…] some at least of what we call ideological discourse is true at one level but not

at another: true in its empirical content but deceptive in its force, or true in its surface meaning but false in its underlying assumptions.”

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nem toda linguagem ideológica caracteriza o mundo de formas errôneas” (p. 17).33 Mais será dito sobre falsa consciência na próxima subseção.

Uma grande preocupação de Eagleton ao abordar essa temática é desmentir as implicações do pensamento binário, posto que ideologia é real, não é ilusão, o que não significa negar que com frequência envolva falsidade, distorção, mistificação. O que não significa, também, “que toda linguagem ideológica necessariamente envolva mentira” (EAGLETON, 1991, p. 26).34 É nessa via que o autor vai sinalizando o conceito que mais o agrada: “Ideologia, em outras palavras, não é inerentemente constituída por distorção, especialmente se pegarmos a visão mais ampla do termo que denota qualquer suposição consideravelmente central entre discurso e poder” (EAGLETON, 1991, p. 28).35

A partir de todas as definições apresentadas anteriormente e das discussões que elabora em torno delas, Eagleton elenca seis possíveis maneiras mais apuradas de definir ideologia, as quais capturam bem as tendências mais difundidas. Na primeira, ideologia é “o processo material geral da produção de ideias, crenças e valores na vida social. Tal definição é tanto política quanto epistemologicamente neutra […]; faria alusão às formas como os indivíduos ‘viveram’ suas práticas sociais, em vez de às próprias práticas” (EAGLETON, 1991, p. 28).36 Uma segunda forma de definir ideologia é como “ideias e crenças (verdadeiras ou falsas) que simbolizam as condições e experiências de vida de um grupo ou classe específica e socialmente significativa. […] ‘Ideologia’ é aqui muito próxima da ideia de ‘visão de mundo’ […]” (EAGLETON, 1991, p. 29).37

Outra visão acerca de ideologia é a de “um campo discursivo no qual poderes sociais que se autopromovem entram em conflito e colidem sobre questões centrais à reprodução do poder social como um todo” (EAGLETON, 1991, p. 29).38 A partir dessa visão, se origina uma quarta, a qual aproveita o foco nessa autopromoção e legitimação de interesses de certos setores, mas, no caso, o setor é estritamente um poder social dominante: “essas ideologias dominantes

33 Trecho original em inglês: “[…] the ‘false consciousness’ thesis need not be significantly shaken by the

recognition that not all ideological language characterizes the world in erroneous ways.”

34 Trecho original em inglês: “[…] that all ideological language necessarily involves falsehood.”

35 Trecho original em inglês: “Ideology, in other words, is not inherently constituted by distortion, especially if we

take the broader view of the term as denoting any fairly central conjecture between discourse and power.”

36 Trecho original em inglês: “[…] the general material process of production of ideas, beliefs and values in social

life. Such a definition is both politically and epistemologically neutral […];it would allude to the ways individuals ‘lived’ their social practices, rather than to those practices themselves […].”

37 Trecho original em inglês: “[…] ideas and beliefs (whether true or false) which symbolize the conditions and

life-experiences of a specific, socially significant group or class. […] ‘Ideology’ is here very close to the idea of a ‘world view’ […].”

38 Trecho original em inglês: “a discursive field in which self-promoting social powers conflict and collide over

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ajudam a unificar uma formação social de maneiras convenientes para seus governantes […] assegurando a cumplicidade das classes e grupos subordinados […]” (EAGLETON, 1991, p. 29-30; grifos do autor).39

Nessa esteira, outra definição apresentada por Eagleton (1991) é a que ideologia “significa ideias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou classe governante especificamente por distorção e dissimulação” (p. 30).40 Diante dessa definição, Eagleton (1991) comenta que “é difícil saber o que chamar um discurso político de oposição que promove e procura legitimar os interesses de um grupo ou classe subordinada através de artifícios como ‘naturalização’, universalização ou ocultação de seus reais interesses” (p. 30).41 A última seria similar à anterior no sentido de enfatizar as crenças falsas ou enganadoras, mas estas não se originariam na classe dominante: elas surgiriam “da própria estrutura material da sociedade como um todo. O termo ideologia permanece pejorativo, mas sua descrição atrelada à classe é evitada. O exemplo mais celebrado desse sentido de ideologia […] é a teoria do fetichismo de mercadorias de Marx.” (EAGLETON, 1991, p. 30).42

Por fim, entendo digno mencionar a definição que Eagleton alcança ao fim de sua obra sobre ideologia, na qual se distancia — como salientou ao longo de toda sua análise — dos entendimentos que considera extremados ou radicais. Para ele, então, “ideologia é mais uma questão de ‘discurso’ do que de ‘linguagem’ — mais de certos efeitos discursivos do que de significação enquanto tal. Ela representa os pontos onde o poder causa impacto sobre certos enunciados e se grava tacitamente dentro deles” (EAGLETON, 1991, p. 223).43 O objetivo da ideologia, nessa perspectiva, é “revelar algo da relação entre um enunciado e suas condições materiais de possibilidade, quando tais condições de possibilidade são vistas à luz de certas disputas de poder centrais à reprodução (ou também, para algumas teorias, contestação) de uma forma inteira de vida social” (EAGLETON, 1991, p. 223).44

39 Trecho original em inglês: “such dominant ideologies help to unify a social formation in ways convenient for its

rulers […]securing the complicity of subordinate classes and groups […].”

40 Trecho original em inglês: “[…] signifies ideas and beliefs which help to legitimate the interests of a ruling

group or class specifically by distortion and dissimulation.”

41 Trecho original em inglês: “[…] it is hard to know what to call a politically oppositional discourse which

promotes and seeks to legitimate the interests of a subordinate group or class by such devices as the ‘naturalizing’, universalizing and cloaking of its real interests.”

42 Trecho original em inglês: “from the material structure of society as a whole. The term ideology remains

pejorative, but a class-genetic account of it is avoided. The most celebrated instance of this sense of ideology […] is Marx’s theory of fetishism of commodities.”

43 Trecho original em inglês:“Ideology is a matter of ‘discourse’ rather than of ‘language’ — of certain concrete

discursive effects, rather than of signification as such. It represents the points where power impacts upon certain utterances and inscribes itself tacitly within them.”

44 Trecho original em inglês: “[…]to disclose something of the relation between an utterance and its material

conditions of possibility, when those conditions of possibility are viewed in the light of certain power-struggles central to the reproduction (or also, for some theories, contestation) of a whole form of social life.”

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Prossigo, agora, na próxima subseção, para a apresentação de um breve apanhado histórico do conceito de ideologia, conectando os elos que levarão à compreensão do termo segundo Bakhtin e o Círculo na seção seguinte.

2.2 Destutt de Tracy, Marx e Engels

O conceito de ideologia surgiu junto com a ascensão da sociedade burguesa, quando foi montado um cenário histórico em que sistemas de ideias notaram sua própria parcialidade ao serem forçados a ter contato com diferentes formas de discurso. Em tal sociedade, até as formas de consciência estão em fluxo constante, ao contrário das ordens sociais mais tradicionais, como Marx repara (EAGLETON, 1991).

A origem do termo ideologia remonta ao período do Terror, durante a Revolução Francesa. Destutt de Tracy criou a palavra em sua cela na prisão, onde foi enclausurado por combater o Antigo Regime (Ancient Régime). Tendo um berço plenamente ideológico e uma relação íntima com a luta revolucionária, a ideologia foi mais um ataque aos reis e sacerdotes que até então dominavam o conhecimento da “vida interior”; foi mais uma criação da razão impulsionada pelo Iluminismo contra o obscurantismo do Ancient Régime — uma verdadeira arma teórica da guerra de classes (EAGLETON, 1991).

Como ocorreu com inúmeras palavras compostas por “-ologia”, houve uma transição do significado de ideologia de estudo científico das ideias humanas para significar o próprio objeto do estudo em si, o sistema de ideias (EAGLETON, 1991). As raízes etimológicas da palavra são do francês idéologie, do grego idea (forma, padrão, tipo, classe) + -logos (denotando discurso ou compilação).45

Destutt de Tracy criou a palavra ideologia com uma perspectiva científica materialista: ciência das ideias como parte da zoologia, esta última também compreendendo o estudo científico do ser humano enquanto animal. A partir desse entendimento, de uma ligação direta entre condições materiais humanas, passando pela experiência sensorial e terminando nos pensamentos, seria possível buscar reformas almejando o melhoramento espiritual, a perfeição visada pelos iluministas. Entretanto, “o termo ideologia gradualmente deixa de denotar um

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materialismo científico cético para significar uma esfera de ideias abstratas e desconexas; e é esse significado da palavra que será tomado por Marx e Engels” (EAGLETON, 1991, p. 70).46

O campo de desenvolvimento teórico de Marx e Engels é vasto, se prolongando por conceitos e áreas diferentes, e também pelo tempo, em graus vários de coesão. Como naturalmente ocorre conosco, Marx modificou sua visão com o avançar de sua vida — isso refletiu, no que aqui importa, em sua concepção de ideologia.

Ideologia está entranhada no tecido teórico que Marx expõe em várias de suas obras. Em particular, compõe a teoria de alienação, em que ele defende que certos processos, produtos e poderes humanos, em certas condições sociais, passam a ser encarados como uma força externa aos humanos, desatrelados — como se autônomos fossem — da atividade destes, os quais, então, se submetem a esses fenômenos, rendidos perante sua suposta existência independente (EAGLETON, 1991).

Essa dinâmica entre ideias e práticas sociais, atrelamento e separação, autonomia e dependência é recorrente nas discussões da concepção marxista de ideologia. A questão da ideologia, da autonomia das ideias e da problemática nisso envolvida são abordadas por Marx e Engels, em um primeiro momento, em A Ideologia Alemã, obra publicada primeiramente em 1846. Para eles, a consciência é atrelada com a prática social; se as ideias passam a ser consideradas entidades autônomas, desatreladas dessa prática, pode haver uma inversão que as posicionam como fonte da vida histórica, o que, por sua vez, as naturalizam e as deslocam da história (EAGLETON, 1991). Aí está a chave para o entendimento da ideologia, conforme Marx expõe neste trecho de A Ideologia Alemã:

Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.

Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se

46 Trecho original em inglês: “[…] the term ideology gradually shifts from denoting a skeptical scientific

materialism to signifying a sphere of abstract, disconnected ideas; and it is this meaning of the word which will then be taken up by Mark and Engels.”

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dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. […] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (MARX; ENGELS, 2007, p. 94)

Esse paradigma de consciência como algo determinado socialmente é crucial para Marx e Engels, mas eles não foram pioneiros nessa abordagem. Antes, tal concepção foi alcançada por Rousseau, Montesquieu e Condorcet (EAGLETON, 1991). A consciência, nesse contexto, tem acepção ambivalente: “pode significar ‘vida mental’ em geral; ou pode aludir mais especificamente a sistemas de crenças históricos particulares (religiosos, jurídicos, políticos e assim por diante), do tipo que Marx depois vem atribuir à chamada ‘superestrutura’ em contraste à ‘base’ econômica” (EAGLETON, 1991, p. 73).47

Posteriormente, Marx viria a escrever sobre ideologia, sobre formas ideológicas, mas a qualidade ilusória já não se faz presente. Em Contribuição para a Crítica da Economia Política, de 1859, ele comenta sobre “o legal, político, religioso, estético ou filosófico — em resumo, formas ideológicas nas quais os homens se tornam conscientes deste conflito (econômico) e o lutam” (MARX, 1904, p. 12).48 Eagleton (1991), oportunamente, observa que “a definição de ideologia […] também foi ampliada para abarcar todos os homens em vez de apenas a classe governante; ideologia tem agora o sentido um tanto menos pejorativo da luta de classes no nível de ideias, sem nenhuma implicação necessária de que essas ideias são falsas” (p. 80; grifo do autor).49 Ele ainda indica que ideologia está localizada no que Marx chama de superestrutura, nas formas definidas de consciência social. Na teoria marxista, a partir da fundação da sociedade, de sua estrutura econômica, se eleva a superestrutura política e legal à qual corresponde as formas de consciência social, como o próprio Marx explana no prefácio de

Contribuição para a Crítica da Economia Política:

Na produção social de suas vidas, os homens entram em relações definidas que são indispensáveis e independentes de suas vontades, relações de produção que correspondem a um estágio definido de desenvolvimento de suas forças materiais produtivas. A soma dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a fundação real, sobre a qual surge uma superestrutura legal e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material

47 Trecho original em inglês: “It can mean ‘mental life’ in general; or it can allude more specifically to particular

historical systems of beliefs (religious, juridical, political and so on), of the kind Marx later come to ascribe to the so-called ‘superstructure’ in contrast to the economic ‘base’.”

48 Trecho original em inglês: “[…] the legal, political, religious, aesthetic, or philosophic — in short, ideological

forms in which men become conscious of this (economic) conflict and fight it out.”

49 Trecho original em inglês: “The definition of ideology […] has also been widened to encompass all ‘men’,

rather than just the governing class; ideology has now the rather less pejorative sense of the class struggle at the level of ideas, with no necessary implication that these ideas are always false.”

Referências

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