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Discursos, textos, gêneros: práticas sociais imbricadas

PARTE I – APORTES TEÓRICOS

2.2 Discursos, textos, gêneros: práticas sociais imbricadas

Os estudos críticos da linguagem concebem o discurso como elemento da prática social, uma ação de representação e de significação do mundo, que forma e constrói o mundo simbolicamente (FAIRCLOUHGH, 2001; 2003). O discurso figura amplamente nas práticas sociais, se distinguindo de três modos:

 como uma parte da atividade social dentro da prática. Quando, no mundo do trabalho, por exemplo, o discurso usado para atuar como professor na educação básica se diferencia do discurso do professor do ensino superior. Fairclough (op. cit.) afirma que o discurso como parte da atividade social constitui gêneros. E os gêneros são modos de ação, modos de agir na produção da vida social, semioticamente. Para isso, as diversas formas de interação, constituem gêneros, por exemplo, uma conversa entre amigos, um talk show, uma conferência, uma tese, um seminário, entre outros;

 como representações, quando atores sociais em qualquer prática constroem representações de outras práticas, como também sendo representações reflexivas de suas próprias práticas. Para Fairclough (2003, p. 206 – tradução nossa), “representação é um processo de construção social de práticas, incluindo a reflexiva construção de si mesmo – representações penetram e moldam processos e práticas sociais.”9 Em outras palavras, a própria representação das práticas sociais constitui o discurso. “Discursos são diversas representações da vida social que são inerentemente posicionados – diferentemente posicionados, atores sociais ‘vêem’ e representam a vida social de diferentes formas, com diferentes discursos” (op. cit., p. 206; tradução nossa).10 O caso da crise política no Brasil atual e os diferentes posicionamentos da cúpula política em relação aos escândalos de corrupção, por exemplo;

 como em modos da pessoa, ao constituir identidades. É o caso de, por exemplo, um líder político. A identidade é construída entrelaçadamente por um conjunto de ações e práticas, mas expressa em discurso (FAIRCLOUGH, 2003). Já o discurso como parte da forma de ser produz estilos. Os estilos estão associados a papéis sociais. A professora da educação infantil, por exemplo, tem um estilo diferente da professora do ensino médio. Ou seja, mesmo sendo professoras, elas têm estilos diferenciados, que são construídos, imbricadamente, por várias questões, mas também, e principalmente, pelo modo de ser, pelo

9 Representation is a process of social construction of practices, including reflexive self-construction – representations entre and shape social processes and practices.

10 Discourses are diverse representations of social life which are inherently positioned – differently positioned social actors ‘see’ and represent social life in different ways, different discourses.

estilo, que é expresso discursivamente.

Assim, o discurso como ação pela linguagem, ou mais especificamente, pelo uso da língua, constitui eventos sociais, os quais correspondem à parte concreta das práticas sociais. E os textos, como elementos dos eventos sociais, são a materialização dos eventos discursivos. Fairclough (2003, p. 3) afirma que o

[...] termo ‘texto’ em sentido bastante amplo. Textos impressos e escritos, como listas de compras e artigos de jornal são ‘textos’, mas cópias de conversas e entrevistas (faladas) também o são, assim como programas de televisão e páginas da Internet. Nós poderíamos dizer que qualquer exemplo de linguagem em uso é um ‘texto’. Entretanto, até mesmo essa definição é muito limitada, visto que textos como programas de televisão não envolvem apenas a língua, mas também imagens visuais e efeitos de som. (tradução nossa).11

Desse modo, os textos materializam os gêneros em conformidade com a prática social. Fairclough (2003, p. 24) explica:

[...] textos como elementos de eventos sociais não são simplesmente os efeitos potenciais definidos pelas línguas. Precisamos reconhecer entidades organizacionais intermediárias de um tipo linguístico específico, os elementos linguísticos de redes de práticas sociais. [...] ordens de discurso. [...] Uma ordem de discurso é uma rede

de práticas sociais no aspecto linguístico. Os elementos de ordens do discurso não são coisas como nomes e sentenças (elementos de estruturas linguísticas), mas discursos, gêneros e estilos. [...] (grifos do autor - tradução nossa).12

Os textos são produzidos socialmente e, desse modo, a significação é atrelada inexoravelmente ao contexto social de produção, que implica compreensão e interpretação relacionada a esse contexto. Em outras palavras, um texto compreendido como parte de um evento social carece de ser compreendido nesse contexto, como gênero discursivo resultado de uma prática social, produto da ordem de discurso peculiar àquela prática social. Desse modo, o texto produzido é parte de um gênero discursivo.

Como modo de ação, o termo gênero, segundo Fairclough (2001, p.161-162), designa

[...] um conjunto de convenções relativamente estáveis que é associado com, e particularmente representa, um tipo de atividade socialmente aprovado, como a conversa informal, comprar produtos em uma loja, uma entrevista de emprego, um

11 […] term text in a very broad sense. Written and printed texts such as shopping lists and newspaper articles are ‘texts’, but so also are transcripts of (spoken) conversations and interviews, as well as television programmes and web-pages. We might say that any actual instance of language in use is a ‘text’ – though even that is too limited, because texts such as television programmes involve not only language but also visual images and sound effects.

12 But texts as elements of social events are not simply the effects of the potencials defined by languages. We need recognize intermediate organizacional entities of a specifically linguist sort, the linguistic elements of networks of social practices. […] orders of discourse. […] An order of discourse is a network of social practices in its language aspect. The elements of orders of discourse are not things like nouns and sentences (elements of linguistic structures), but discourses, genres and styles […].

documentário de televisão, um poema ou um artigo científico. Um gênero implica [...] processos particulares de produção, distribuição e consumo de textos. Por exemplo, os artigos de jornal e os poemas não são apenas tipos de textos tipicamente bem diferentes, mas eles também são produzidos de formas diferentes [...] têm distribuição bastante diferente e são consumidos bem diferentemente [...]. Assim, o gênero atravessa a distinção entre ‘descrição’ e ‘interpretação’[...].

Dessa maneira, qualquer uso da língua, produz discurso, o qual tem uma organização textual própria que, como afirma Bakhtin (2000) tem: conteúdo temático, estilo e estrutura composicional, associada ao propósito comunicativo. Por isso, para Fairclough (2001), cada gênero ocorre em certo contexto social e envolve diversos agentes que o produzem, o consomem, lêem e interpretam.

Portanto, os textos materializam gêneros conforme as ordens de discurso próprias de determinados eventos, de determinados contextos sociais, os quais constituem práticas sociais, situadas em dada estrutura social, de forma que os eventos constituem práticas sociais dentro de estruturas sociais numa dada sociedade.

Ao pensar em estruturas sociais, é necessário, primeiramente, elaborar, a grosso modo, um conceito de sociedade. A sociedade é um todo de partes que se interdependem, pois quando os indivíduos compõem uma sociedade, engendram suas estruturas, também determinam as ações dos indivíduos. Com base nisso, é possível compreender o significado e o funcionamento da sociedade, especialmente, porque não há sociedade sem estrutura social. Assim, compreendendo as estruturas sociais, é possível entender como os indivíduos se comportam socialmente. Por estrutura social, há a expressão do comportamento dos indivíduos, inclusive, linguisticamente falando. Até porque, todos da sociedade se relacionam com base em uma estrutura. A exemplo disso, existem as relações de parentesco, as quais constituem parte intrínseca da sociedade, visto que as sociedades têm padrão de estrutura familiar, padrão de funcionamento familiar, instituição social importante, que exerce grande função na estrutura social. Estrutura que não é estática, mas pode se modificar, a partir de alterações nas regras, normas ou na base econômica e política da sociedade (LAKATOS & MARCONI, 1999).

As estruturas não são observáveis concretamente. Elas existem mais abstratamente, como algo correspondente ao virtual. De forma complexa, as estruturas se atualizam em práticas, e essas em eventos. As estruturas são realidades abstratas, que dão suporte às práticas e aos eventos sociais. A língua como estrutura, conforme as ordens de discurso dos diferentes domínios sociais, do âmbito das instituições, seja da família, da escola, do trabalho, por exemplo, torna possível constituir as práticas sociais desses domínios, públicos ou privados, instaurando os eventos sociais próprios de cada esfera dessas.

A estrutura, para Brown e Barnett (1970b, p. 174), se define em oposição à organização social: “[...] organização social refere-se aos sistemas de relações de obrigação que existem entre os grupos que constituem uma determinada sociedade, ao passo que estrutura social se refere à colocação e posição de indivíduos e de grupos dentro desse sistema de relações de obrigação.” Desse modo, a estrutura social está ligada ao modo como a sociedade se organiza. A língua, a classe social, a estrutura econômica e política são estruturas sociais e, de algum modo, mantém relação imbricada e de interdependência.

Assim, os usos da língua constituem os textos, que são discursos. Logo, as práticas discursivas são práticas sociais imbricadas abstratamente e se concretizam em eventos dentro de práticas sociais.