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PARTE I – APORTES TEÓRICOS

3.3 Letramento no contexto familiar

Para pensar o letramento no contexto familiar, é necessário considerar pontos significativos nesse contexto. Primeiro, é preciso considerar que a família é uma instituição social considerada suporte fundamental e universal nas sociedades, podendo ter diferentes arranjos, variáveis no tempo e no espaço, sendo uma instituição presente em toda e qualquer sociedade (LAKATOS e MARCONI, 1999). Segundo, tratar do letramento no contexto familiar é considerar que, no domínio familiar, há interações que resultam em aprendizagens próprias desse contexto, pois os responsáveis pela família, geralmente, passam crenças, valores, orientações para os filhos e filhas a respeito da vida, dos estudos, do trabalho, narram a história de vida dos antecedentes da família, dão ensinamentos acerca das relações com as pessoas, entre outros, através da fala.

Fairclough (2003) afirma que, pela fala ou pela escrita, as pessoas podem agir e interagir nos eventos sociais. Desse modo, o discurso figura primeiro como parte da ação. E assim, diferentes gêneros são meios de interagir discursivamente.20

Nesse sentido, pensar o letramento no espaço da família é pensar que no meio familiar há aprendizagens que se dão pelas diferentes linguagens, especialmente a linguagem oral, que se materializa em gêneros orais. Gêneros que se dão, na maioria das vezes, informalmente, com a espontaneidade das relações familiares. Em perspectiva bakhtiniana, como a vida em sociedade implica atividades relacionadas ao uso da língua, esse uso se realiza conforme os domínios sociais, expressando as condições e as finalidades de cada

20 Na obra do autor, esta afirmação corresponde ao excerto: “One way of acting and interacting is through speaking or writing, so discourse figures first as ‘part of the action’. We can distinguish different genres as different ways of (inter)acting discoursally […]”. (FAIRCLOUGH, 2003, p. 26)

domínio, de modo a produzir tipos estáveis de produção linguística, que concebem os gêneros do discurso. Logo, os gêneros se dividem em primários e secundários. São primários os gêneros formados em situações de conversa informal, familiar, cotidiana, em diálogo oral. E os secundários são os gêneros que implicam elaboração, envolvem a produção escrita; são gêneros planejados (BAKHTIN, 2000).

Considerando a exposição sobre gêneros e a concepção de que no contexto familiar há muito espontaneamente a produção do gênero primário, eis o foco do letramento no contexto familiar, que se dá, sobretudo, pelo uso da linguagem oral, ou melhor, pela produção do gênero primário. Apesar de não ser o único gênero utilizado nesse contexto, há o uso também de gêneros escritos e até mistos, aqueles em que ora se utiliza da escrita, ora da oralidade.

Entretanto, no contexto da família há a prevalência da produção do gênero oral, especialmente a conversa informal, e isso é a base do letramento familiar.

3.3.1 Letramento familiar

Os letramentos, práticas culturais e sociais, são construídos diferentemente entre os povos e as culturas, em diversos momentos da história da vida em sociedade (STREET, 2014). Assim, ao tratar o letramento como prática social, cabe conceituar o letramento familiar. Considerando essa discussão acerca do letramento, em que estudiosos como Grillo (1989), para quem o letramento é uma prática comunicativa, e Street (2014), que define o letramento como sendo social, culturalmente situado, é que está fundamentado o conceito de letramento familiar, o qual rompe com o conceito já bastante divulgado, que é o de letramento com base na linguagem escrita, o letramento escolar. Portanto, de algum modo, está associado ao processo de alfabetização ou à aprendizagem da linguagem escrita e seus usos na vida em sociedade.

A ruptura com o conceito tradicional de letramento, que se impõe com a concepção de letramento familiar, visa considerar que as práticas familiares realizadas fundamentalmente pela linguagem oral, pelo gênero discursivo primário, têm uma organização e uma estruturação própria no universo da família, que se caracteriza com idiossincrasias muito peculiares à instituição familiar.

Considerando isso, há a necessidade de haver um reconhecimento e uma valorização desse letramento, ainda mais quando recorrentemente a instituição família é

levantada em tantos debates sobre educação, nos meios acadêmicos e escolares, em considerando sua importância na formação dos sujeitos.

Em contrapartida, falta a devida valorização e o reconhecimento desse letramento, frequentemente, pelos próprios membros da família. Isto porque há famílias que não percebem sua importância no processo de formação dos seus, nem também, muitas vezes, têm condição, seja de qual natureza for, de colaborar mais ativamente com eventos cotidianos que venham a contribuir com a formação educativa dos seus.

Assim, nesta investigação, reconhecemos a existência do letramento familiar, que se dá pela produção do gênero discursivo primário, a conversa informal e o valorizamos como instituição formadora de sujeitos sociais.

Para tanto, é preciso conceituar a família como a instituição que, por laços afetivos, há partilha do espaço de convivência com direitos e obrigações, de modo que se constroem relações.

Nesse alinhamento, as práticas sociais, numa perspectiva metodológica etnográfica, em que abordagens qualitativas possam ser relacionadas com trabalhos quantitativos, podem fundamentar-se focando no modo como os participantes de programas de letramento podem se “apoderar” das práticas letradas significativas para seu contexto. E, desse modo, é abandonado o foco da educação formal no aprendente, considerado individualmente, para a aprendizagem familiar, a ser construída acerca do que já conhecem e utilizam nas relações e redes sociais em que interagem com o letramento no cotidiano. Dessa maneira, é dado um passo significativo para entender e avaliar as práticas educacionais e de aprendizagem do letramento em contextos culturais, a fim de relacionar teoria, políticas e pesquisas nesse campo.

Nesse enquadramento dos letramentos sociais, com base em Street (2014), é que esta investigação se apoia para denominar as práticas discursivas das famílias, como práticas constitutivas do letramento familiar. Um letramento pautado complexamente pelas relações que se estabelecem nesse contexto, conforme o nível de escolaridade de seus membros, em que, muito comumentemente, valoriza o letramento escolarizado, mas nem sempre o possui e nem sempre se utiliza da leitura ou da escrita de textos no seu cotidiano. As relações interpessoais se dão com base no afeto, mas não necessariamente são relações que favorecem o desenvolvimento de seus membros.

Portanto, nesse paradigma se dá esta investigação, a fim de verificar o entrelaçamento entre o discurso, as práticas, a cultura e as relações da família no letramento familiar. Especialmente, porque o contexto familiar é um espaço de trocas linguísticas em

que, de acordo com a história de formação dos responsáveis por dada família, são repassados valores, crenças, discursos, que têm representação e modo de ação sobre o mundo e sobre os outros. E isso, de algum modo, é uma prática social constituída por eventos de letramento.

Daí torna-se possível investigar o contexto familiar na perspectiva da Análise de Discurso Crítica e da Teoria Social do Letramento, pois a ADC propõe uma visada dialética entre estrutura e ação ou entre eventos, práticas e estruturas que nos remete, portanto, à possibilidade de refletir acerca dessas questões no contexto familiar, em que a instituição família é investigada espaço-temporalmente como espaço de constituição de letramentos, em que identidades são construídas, reproduzindo ou modificando o status do senso comum.

A partir dessa percepção de Street (2014), de que o letramento é uma prática social e que se atualiza em eventos, os quais se constituem em atividades cotidianas em que o letramento tem um valor, uma função, é que será pensado o letramento situado no contexto familiar.

A denominação letramento familiar foi utilizada pela primeira vez em inglês, family literacy, com estudos desenvolvidos por Kathy Pitt, em trabalhos publicados como o intitulado Family literacy: a pedagogy for the future? (PITT, 2000), que trata do letramento familiar na perspectiva do uso da linguagem escrita. Nesta tese, meu interesse é discutir o letramento familiar a partir da linguagem oral, e esta é a característica que dá a esta tese o caráter de inédita.

As práticas e eventos de letramento são sempre simbólicos, tem, portanto, uma significação onde são instaurados, com efeitos peculiares, uma significação formativa para os sujeitos envolvidos. Especialmente, porque as práticas sociais são carregadas de significado, numa atmosfera rica em semioses.

Nessa abordagem dos letramentos sociais, proposição de Street (2014), é que é construída a concepção que fundamenta o letramento familiar. Uma consideração de que as práticas de uso da linguagem oral como também da linguagem escrita, independente de serem utilizadas por alguns sujeitos e outros não, constituem elementos de eventos e práticas de letramento, pois, ao se utilizarem da língua, falada ou escrita, estão produzindo textos, discursos. E no contexto familiar, há caracterizações muito particulares, como: orientação para vida, reclamações do não cumprimento de um comando, tudo tendo finalidades na formação do sujeito. Desse modo é que foi elaborado, nesta tese, o conceito de letramento familiar, baseado no uso oral da línguano contexto familiar, notadamente porque é a linguagem oral a que mais ocorre nesse meio, com propósitos muito peculiares ao contexto, sobretudo, porque, geralmente, os usos representam simbolicamente afeto e cuidado na

formação dos sujeitos sociais.