• Nenhum resultado encontrado

DISCUSSÃO

No documento Cegueira central em cães (páginas 66-73)

A história clínica de um animal com cegueira central é de extrema importância já que, para além de ser necessário diferenciar problemas oftalmológicos de problemas neurológicos, muitas vezes os proprietários não têm noção da evolução do problema e, segundo De Lahunta et al. (2009), raramente têm noção de casos de cegueira unilateral, como aconteceu no caso clínico nº 4. Podem no entanto, surgir casos em que proprietários mais atentos conseguem aperceber-se de cegueira unilateral como no caso clínico nº 3, onde notaram a tendência do animal para ir contra objectos apenas posicionados do seu lado esquerdo.

Com uma história clínica rigorosa e completa permite que o clínico elabore uma lista mental de diagnósticos diferenciais, que vão seguir de orientação no momento da escolha dos meios complementares de diagnóstico mais adequados ao caso que se apresenta (Thomas, 2010a).

Dos quatro casos clínicos, dois animais apresentaram-se à consulta com história de cegueira bilateral no caso clínico nº 1 e unilateral no nº 3. Os restantes animais apresentaram-se à consulta com história de convulsões generalizadas como principal sinal clínico.

Uma convulsão é uma manifestação clínica de actividade eléctrica anormal no encéfalo. Trata-se de um evento específico no tempo (Thomas, 2010c). As convulsões generalizadas são o tipo de convulsões mais comum em medicina veterinária. Os sinais clínicos demonstram possível envolvimento de ambos os hemisférios cerebrais (De Lahunta et al., 2009). Nas convulsões tónico-clónicas temos uma fase tónica inicial, caracterizada por contracção muscular. Normalmente ocorre perda de consciência e o animal fica em decúbito em opistotonus, com os membros estendidos. A respiração é muitas vezes irregular ou até ausente, sendo comum que o animal se apresente cianótico. Esta fase apresenta uma duração de cerca de 1 minuto e é seguida pela uma fase clónica. Nesta o animal a apresenta contracções rítmicas que se manifestam por movimentos de pedalagem, movimentos espasmódicos e movimentos de mastigação. Esta fase poderá durar alguns minutos, após a qual se segue um período de recuperação. Durante o episódio convulsivo é frequente ocorrerem manifestações do sistema nervoso autónomo como hipersiália, defecação e micção (Thomas, 2010c), tendo este último sido descrito pelo proprietário do animal nº 2.

No exame físico realizado durante a consulta, nenhum dos animais apresentava alterações significativas.

54

O exame neurológico do animal nº 1, revelou um animal deprimido e a realizar círculos para o lado direito. No que toca ao exame dos pares cranianos, revelou uma ausência de resposta ao da ameaça e ao da bola de algodão OU, estrabismo posicional OD e nistagmo posicional vertical OU.

No caso clínico nº 2, o animal encontrava-se deprimido, com resposta deficiente a estímulos visuais e auditivos. No exame dos pares cranianos, apresentava ausência de resposta ao teste da ameça OS e diminuído OD, tendo sido detectadas várias hemoragias retinais OU no exame do fundo do olho. Animal apresentava-se ataxico, com deficits no posicionamento proprioceptivo no membro torácico esquerdo e nos membros pélvicos, apresentando ainda dor à palpação cervical.

No caso clínico nº 3, o exame neurológico revelou apenas uma ausência de resposta ao teste da ameaça e ao da bola de algodão OS.

Quanto ao animal nº 4, este apresentava ausência ao teste da ameça ausente OS e um deficit de sensibilidade na face esquerda.

De referir que, no exame neurológico, os quatro casos clínicos têm em comum o facto de o RPL ser normal OU. Este dado é fundamental para melhor localizar o problema, já que a via do RPL tem a sua primeira porção, até chegar ao núcleo geniculado caudal, em comum com a via da visão. Assim é de esperar que apresente alterações apenas em lesões pré-quiasmáticas, quiasmáticas ou do tracto óptico. Deve-se também destacar que na localização das lesões dos casos clínicos 3 e 4 com cegueira unilateral esquerda, o RPL normal indica-nos uma lesão caudal ao quiasma óptico, por conseguinte esta é contralateral aos déficts visuais apresentados e portanto localizada no lado direito do prosencéfalo.

Nos exames complementares foram incluídos um hemograma e um painel bioquímico, nos três primeiros casos clínicos. Estes revelaram no animal nº 2 um aumento da actividade sérica das enzimas hepáticas ALT, GGT e FA, aumento sérico da CK e do BUN. No animal nº 3, observou-se uma ligeira hiperalbuminemia, ligeira hipercolesterolemia e um aumento da concentração sérica da enzima hepática ALT. O animal nº 4 tinha resultados normais da analítica sanguínea feita pelo veterinário que referiu o caso e portanto não foi repetida aquando da consulta. Foi ainda realizada uma análise de urina tipo II no caso clínico nº 2, que revelou uma ligeira proteinúria e uma densidade urinária de 1.016.

Nos animais nº 2, 3 e 4, foi realizada radiologia torácica para averiguar a presença de doença metastática, antes de se avançar para métodos de imagiologia avançada. Nenhum dos três casos revelou sinais de possível doença.

Foi proposto a todos os animais a realização de uma RM, por ser o melhor método de imagiologia avançada para avaliar a maioria dos problemas intracranianos, em particular por oferecer um melhor detalhe na avaliação do parênquima cerebral em relação à TC (Hecht et al., 2010a).

55

No caso clínico nº 1, foi possível observar uma grande dilatação dos ventrículos laterais e uma atrofia do parênquima cerebral que rodeia os ventrículos No animal nº 2, a RM permitiu a visualização de lesões mulifocais cerebrais e algum grau de atrofia cerebral que é consistente com a idade. No caso do animal nº 3, observou-se a presença de uma massa intra-axial parietal direita, de dimensões consideráveis (aproxiamamente 2 cm de diâmetro), contendo dois focos de hemorragia, apresentando algum grau de compressão das estruturas adjacentes e associada a edema vasogénico cerebral. Quanto ao caso nº 4, observou-se a presença de uma massa intra-axial direita de grandes dimensões, localizada na zona da cúpula craniana, apresentando um severo efeito de compressão sobre o hemisfério direito e causando um severo desvio da linha média para a esquerda.

No caso clínico nº 1, tendo em conta a idade do animal e as características imagiológicas apresentadas pela RM do animal, foi possível fazer o diagnóstico de hidrocefalia obstructiva congénica, tendo ficado apenas por apurar a causa desta obstrucção.

A hidrocefalia obstructiva pode ser congénita ou adquirida (Higginbottham et al., 2011). A adquirida, ocorre normalmente em animais com mais alguma idade, nos quais ocorre uma obstrucção ao fluxo de LCR por massas tumorais ou inflamação. Em animais jovens tem normalmente por base alterações estruturais, sendo a mais comum a estenose do aqueduto mesencefálico (Bagley, 2004; De Lahunta et al., 2009; Thomas, 2010b). Animais com hidrocefalia congénita apresentam sinais clínicos que variam com as zonas afectadas, no caso do animal nº 1 cegueira bilateral com RPL intacto OU, depressão, realização de círculos e estrabismo ventrolateral.

No caso clínico nº 2, as características imagiológicas das várias lesões presentes na RM, deixaram uma lista de vários diagnósticos diferenciais em aberto. Para além da análise do LCR ter resultados que estão dentro dos limites normais, foi feito o despiste das doenças infecciosas mais comuns na zona geográfica onde o animal habita, tendo sido todos negativos. No entanto, isto não permite excluir completamente as causas infecciosas, mas diminui muito a probabilidade de estarmos na presença de um tal processo.

A falta de reforço após contraste na maioria das lesões e a própria configuração das lesões, tornam pouco provavél que se trate de um processo neoplásico difuso, sendo que a única forma de confirmar o diagnóstico é por biópsia e análise histopatológica da amostra.

Os problemas inflamatórios mais comuns, nomeadamente a MEG, ocorrem por norma em animais de meia-idade, apesar de já terem sido descritos casos em animais com mais de 10 anos (Granger et al., 2009). O resultado normal da análise de LCR não exclui a presença de um processo inflamatório como uma MEG (Schatzberg, 2010). Estes processos são progressivos e com tendência a um agravamento da sintomatologia se não for instituído tratamento. Neste caso, não foi instituída uma corticoterapia imediata devido à possibilidade

56

de estarmos perante um caso infeccioso, que se iria agravar se iniciassemos um tratamento empírico sem os resultados do despiste das doenças infecciosas mais comuns.

Associando o facto de o animal ter recuperado por completo sem ter sido iniciada uma terapia com corticoesteróides, ao facto de o animal nº 2 apresentar uma história de tensões elevadas e de na RM apresentar lesões de susceptibilidade magnética presentes nas imagens T2*-W, que são consistentes com áreas de hemorragia, a possibilidade da ocorrência de acidentes vasculares multifocais, assume uma posição de relevo em relação às restantes. Assim é possível fazer um diagnóstico presuntivo de acidentes vasculares cerebrais múltiplos.

No caso clínico nº 3, dadas as características imagiológicas da massa intra-axial parietal direita, o principal diferencial será um tumor agressivo com origem nas células da glia. No entanto sem confirmação histopatológica e especialmente após ter sido descoberta uma massa na glândula adrenal esquerda do animal, não é possível confirmar o diagnóstico e excluir a possibilidade de doença metastática. Segundo Kraft et al. (2009), as metastases cerebrais, podem ser massas únicas ou múltiplas, sendo que em termos topográficos são intra-axiais geralmente situadas na transição entre a substância cinzenta e a branca.

Dado que o animal nº 3 não apresentava sinais clínicos de hiperadrenocorticismo, é possível que a massa adrenal não seja produtora de cortisol. As pressões arteriais constantemente elevadas são um dos principais sinais clínicos dos tumores produtores de catecolaminas. No entanto não foi realizada uma mensuração dos níveis sanguíneos de cortisol, nem um teste de resposta à ACTH, que iria possibilitar diferenciar um tumor produtor de um tumor não produtor.

No caso clínico nº 4, dadas as características imagiológicas da massa intra-axial na porção parietal e occipital direita, a sua forma ovóide com zonas de hemorragia, o anel de reforço após administração de contraste, colocam o glioma no topo dos diagnósticos diferenciais sendo que dentro dos gliomas, se aproxime mais das características de um oligodendroglioma que de um astrocitoma, devido à sua localização e cresciemento, perto das meninges e do ventrículo lateral direito. Sem histopatologia para confirmação, o diagnóstico é apenas presuntivo, não sendo possível excluir a possibilidade de ser um meningioma.

O animal nº 4, apresentou-se à consulta com história de convulsões. Num estudo de Bagley et al. (1998), 47% dos cães com tumores cerebrais apresentavam convulsões como motivo de consulta, tendo como idade média de início de sintomatologia os 9 anos de idade. Noutros estudos as percentagens de animais com convulsões secundárias a tumores foram de 46% e 51%, variando entre 35-40% em humanos. Dos animais com convulsões, 59% tinham meningiomas, 9% astrocitomas e 5% oligodendrogliomas (Bagley et al., 1998). Num outro estudo, concluiu-se que os animais com oligodendrogliomas apresentam uma

57

probablilidade de desenvolverem convulsões 3,6 vezes superior, do que animais com outros tipos de tumor primário (Snyder et al., 2006).

A localização do tumor é o factor mais importante associado ao desenvolvimento de convulsões, segundo Bagley et al. (1998). De todos os animais do estudo que apresentavam crises convulsivas, apenas um não apresentava um tumor com localização em estruturas supratentorias, estando este localizado no tronco do encéfalo. Os tumores dos lobos frontais foram aqueles que apresentaram maior percentagem de animais com convulsões, 44%, os tumores dos lobos olfatórios e os lobos parietais apresentaram uma igual percentagem de desenvolvimento de convulsões, 10% (Bagley et al., 1998).

Os tumores cerebrais provavelmente levam ao aparecimento de convulsões ou por alteração directa da função neuronal ou devido a alterações secundárias no fluxo sanguíneo cerebral, hemorragia e edema (Bagley et al., 1998).

Segundo Snyder et al. (2006), o sinal clínico mais comum em cães com tumores primários, como se presume que sejam os casos dos animais nº 3 e nº 4, são as convulsões ocorrendo em aproximadamente 48% dos animais. A cegueira central é quarto sinal clínico mais comum a seguir às já referidas convulões, alterações de estado mental e síndromes vestibulares, ocorrendo em aproximadamente 13% dos animais (Snyder et al., 2006).

No caso nº 1, o curso da doença é algo imprevisível podendo progredir, manter-se estática ou até melhorar com o tempo (Figueiras et al., 2009). O tratamento de eleição é a correcção cirúrgica através da colocação de um shunt para drenar o excesso de LCR (de Stefani et al., 2011; Higginbotham et al., 2011). O tratamento médico com corticóides prescrito neste caso, não apresenta uma resolução definitiva, embora o animal se tenha mantido estável, sem ocorrer agravamento dos seus sinais clínicos.

O tratamento do animal nº 2, teve por objectivo o controlo das pressões arteriais elevadas com o objectivo de evitar futuros acidentes vasculares. Para isso foi prescrito benazepril, um inibidor a enzima conversora da angiotensina. Também foi sujeito a terapia anticonvulsiva com fenobarbital. Foi aconselhado um controlo rigoroso dos valores renais, porque apesar de apresentar um valor de creatinina normal, o animal tem história de perda de peso e PD/PU. Apresenta BUN elevado, proteinúria e uma densidade urinária abaixo do normal.

No caso clínico nº 3, foi proposto aos proprietários uma combinação de tratamento cirúrgico, radioterápico e médico. A alternativa passava pelo tratamento paliativo da sintomatologia para dar a melhor qualidade de vida possível ao animal. O serviço de cirurgia também aconselhou remoção cirúrgica da massa adrenal. Segundo Massari et al. (2011), o prognóstico de animais com tumores adrenais é pior em caso de massas de dimensões ≥ 5cm, metastases documentadas ou trombose venosa, o que não era o caso do animal nº 3. Embora a adrenelectomia seja considerada um procedimento com um prognóstico incerto,

58

Massari et al. (2011), descrevem uma mortalidade de 1.9% durante a cirúrgia e uma taxa de mortalidade perioperatória de 13.5%, com 65% dos animais a sobreviver mais de um ano pós cirúrgia. Percentagem de mortalidade perioperatória inferiores a 20% já tinham sido previamente descritas, mas a mortalidade intraoperatória tinha sido descrita como sendo de aproximadamente 60% num outro estudo (Massari et al., 2011).

Foi prescrito tratamento com corticoesteróides, prednisolona 0,5 mg/kg, PO, BID e posteriormente associado um protector gástrico, famotidina 10 mg/kg, PO, SID. Para o controlo da pressão arterial, foi ponderada a fenoxibenzamina, um bloqueador alfadrenérgico que é habitualmente usado em casos de tumores que causem hipertensão, devido à sua longa acção. Devido ao seus elevado custo, foi prescrita prazosina 1mg, PO, BID.

O tratamento sugerido para o animal nº 4, foi semelhante ao do animal nº 3. Uma combinação de cirurgia, radioterapia e tratamento médico. São várias as alternativas ao tratamento sugerido como por exemplo radioterapia primária, sem recorrer a cirúrgia, associada a tratamento médico da sintomatologia. Ou apenas tratamento paliativo.

A remoção cirúrgica da massa tumoral é principal modalidade de tratamento em medicina humana. Este curso de tratamento em cães é ideal em massas superficiais de fácil acesso, principalmente meningiomas, onde não há o risco de causar dano a outras estruturas na tentativa de aceder ao tumor. A actividade cerebral que origina as convulsões, em casos de tumores cerebrais, está normalmente nos tecidos que rodeiam o tumor. Mesmo após completa excisão de uma massa tumoral, muitos animais continuam a ter episódios convulsivos (Bagley et al., 1998).

Independentemente dos tipos de radiação utilizada, do total de doses de radiação e do esquema tratamento, a radioterapia primária de neoplasias intracranianas em cães aumenta o tempo de sobrevivência dos animais, em comparação com o tratamento paliativo, estando associada a uma diminuíção dos sinais clíncos (Spugnini et al., 2000). De acordo com Spugnini et al. (2000), 37% dos animais sobrevivem mais de um ano após terminar o tratamento e 5% dois anos, com tempos médios de sobrevivência a rondar os 150-360 dias. Quanto ao tratamento paliativo prescrito ao animal nº 4, foi instituído controlo de dor, corticoterapia e continuado o tratamento anticonvulsivo com fenobarbital 2 mg/kg, PO, BID. As convulsões de animais com tumores cerebrais que não estão a ser tratados, têm tendência a tornarem-se cada vez mais difíceis de controlar e até a se tornarem refractárias às terapias anticonvulsivas tradicionais.

Num estudo efectuado por Montgomery et al. (2008), foram avaliados animais com cegueira aguda e a sua causa: degenerescência retinal subitamente adquirida versus causas neurológicas. Dentro dos animais estudados, 14% apresentaram causas neurológicas, sendo que 65% apresentavam ausência do teste da ameaça OU, 30%

59

apresentavam um teste de ameaça inconcistente num ou nos dois globos oculares e 24% dos animais apresentavam RPL normais (Montgmomery et al., 2008).

A cegueira é um sinal clínico relativamente comum em clínica de animais de companhia. Dado que pode ter etiologias variadas como as oftalmológicas, metabólicas e neurológicas, é imperativo que o clínico esteja preparado para apurar a sua origem. No caso da cegueira central isso passa pelo conhecimento e integração de várias áreas, nomeadamente a neuroanatomia, a oftalmologia e a neurologia. Este conhecimento, aliado às várias ferramentas clínicas como a anamnese, o exame físico, o exame oftalmológico e o exame neurológico, vão permitir a localização da lesão. Esta localização é fundamental para guiar as escolhas do médico veterinário no que toca aos meios complementares de forma a chegar ao diagnóstico, instituir a terapia mais adequada ao caso em questão e fornecer ao proprietário o prognóstico mais exacto. A obtenção de um diagnóstico definitivo nem sempre é possível, mas com a evolução das técnicas de imagiologia avançada e a sua crescente acessibilidade em Medicina Veterinária, a aproximação diagnóstica recorrendo a meios de imagiologia avançada é cada vez mais comum, sendo uma ferramenta extremamente útil em clínica.

60

No documento Cegueira central em cães (páginas 66-73)

Documentos relacionados