A definição daquilo que constitui o microbioma em saúde foi facilitada pela existência
do projeto HMP mas tem-se revelado uma tarefa algo difícil dada a complexidade deste
sistema e da grande evolução nas técnicas de estudo, cultivo e identificação de
microrganismos que fazem com que a taxonomia sofra frequentemente alterações. Serão estes
os principais motivos que explicam o facto de, por vezes, haver na literatura referência a
espécies/estirpes que têm origem na cavidade oral mas que não estão referidas na base de
dados do HMP com a mesma designação. De qualquer forma, dado que o objectivo maior
deste trabalho era providenciar o universo mais alargado possível de proteínas de origem
bacteriana possivelmente presentes na cavidade oral, foi decidido acrescentar algumas
espécies à lista inicialmente obtida do HMP.
Os resultados do presente trabalho revelam que é possível inferir a presença de 9818
proteínas na cavidade oral através dos dados de estudos in vitro em que estas proteínas foram
expressas pelas mesmas bactérias que colonizam a cavidade oral. As 9818 proteínas
identificadas foram obtidas por 79 estudos utilizados relativos a técnicas de identificação de
proteínas microbianas in vitro (37-112). Este valor é quase de uma ordem de grandeza
superior ao publicado por Silveira (2012) que compilou 1212 proteínas de origem microbiana
obtidas a partir de estudos de proteómica de amostras da cavidade oral (23). A grande
diferença nos valores totais de proteínas pode ser explicada pelas questões metodológicas
revistas recentemente por Kuboniwa (2012) em que os autores referem que “à medida que a
complexidade da comunidade aumenta, um estudo metaproteómico de um sistema composto
por centenas ou milhares de organismos diferentes tende a ser dominado por alguns péptidos
proteotípicos” (33). Desta forma, o facto das proteínas incluídas na presente análise serem
derivadas de estudos, que na sua maioria, são mono específicos, mas que incluem no máximo
4 espécies a crescer em consórcio, justifica um aumento no número de proteínas encontradas.
Acresce ainda o facto de nos estudos de proteómica de tecidos da cavidade oral a
complexidade da análise proteómica ser ainda aumentada pela presença de proteínas humanas
que estarão em grande quantidade.
Pode ser argumentado que o facto de termos optado por analisar proteínas
identificadas em estudos in vitro nos afasta do “cenário” real existente na cavidade oral.
Quanto a este aspeto, podemos contrapor que nesta altura há evidência de que as limitações
técnicas não nos permitem, com a análise de proteómica de tecidos da cavidade oral, ter ideia
da grande maioria das proteínas microbianas presentes. Por outras palavras, nesta altura, a
escolha é entre não se conseguir obter a informação diretamente ou usar informação obtida
em estudos in vitro e extrapolar para o que potencialmente pode acontecer in vivo.
Um outro aspeto verificado nos resultados apresentados foi a grande discrepância
entre a quantidade de informação disponível na literatura para as várias espécies da cavidade
oral. Esta discrepância deve-se fundamentalmente à dificuldade associada ao cultivo de
muitas bactérias neste ecossistema (8). Assim, o facto de muitos dos microrganismos
presentes na cavidade oral serem anaeróbios obrigatórios ou existirem em consórcios
dificilmente replicáveis em laboratório (113) faz com que para a grande maioria das espécies
presentes na Tabela Inicial de bactérias do Human Microbiome Project (Tabela 1. na secção
Anexos) não existam estudos relativos à identificação de proteínas expressas in vitro (das 419
bactérias existentes na tabela foram identificados estudos da expressão de proteínas
bacterianas in vitro apenas para 67). Verificamos que apesar de haver identificação das
proteínas de relativamente poucas espécies, a mesma espécie é muitas vezes alvo de vários
estudos e portanto a tabela gerada neste trabalho esta certamente “enviesada” no sentido de
haver preponderância de proteínas pertencentes a bactérias muito estudadas e conhecidas.
Espécies como Porphyromonas gingivalis, que apesar de não ser uma das espécies
bacterianas mais facilmente cultiváveis, como por exemplo Escherichia coli (8) é uma das
espécies melhor estudadas, pela sua ligação à etiologia da Periodontite (30). É isto que explica
que uma espécie anaeróbia obrigatória, assacarolítica e com alguns requisitos nutricionais
específicos esteja no topo da lista das bactérias com maior número de proteínas identificadas
em estudos in vitro. Esta bactéria tem sido extensivamente estudada principalmente no que se
refere às suas proteases consideradas factores de virulência responsáveis pela destruição dos
tecidos periodontais. O conhecimento da síntese (114), ação(115, 116) e inibição (117) destas
proteases tem sido proposto como essencial para a definição de estratégias de diagnóstico e
terapêutica da doença periodontal (118).
Apesar desta discrepância, no que se refere à informação disponível para as espécies
bacterianas em particular, se considerarmos apenas os géneros, verificamos que o género
comprovadamente mais abundante na cavidade oral (Streptococcus) (17) é dominante em
termos de proteínas presentes. A abundância relativa de estudos de proteómica com
Streptococcus pyogenes. Além disso, o estudo da adesão de Streptococci a superfícies (orais e
não só) e o papel destes microrganismos como colonizadores primários do biofilme oral tem
sido explorado nos estudos de proteómica. Isto porque o conhecimento das interações entre as
proteínas à superfície de Streptococci e as proteínas das superfícies orais e de outros
microrganismos colonizadores do biofilme oral podem ter aplicações muito importantes
nomeadamente no controlo da formação e desenvolvimento do biofilme oral e
consequentemente na prevenção e terapêutica de patologias infecciosas da cavidade oral (54).
À primeira vista a existência de muita informação sobre Salmonella enterica
colocando esta bactéria entre outras que estão associadas a patologias da cavidade oral
(Figura 10) pode parecer estanha. No entanto, é preciso considerar que esta espécie tem sido
bastante estudada como agente patogénico intestinal e portanto existe muita informação
proteómica disponível nas bases de dados.
Os resultados apresentados neste trabalho confirmam a falta de anotação que existe em
relação às proteínas bacterianas, não só pelo facto de apenas cerca de 1/5 do total de proteínas
compiladas na base inicial estar revista na base de dados UniProtKB, mas também pela
análise da classificação ontológica das proteínas presentes na tabela final. Como está patente
nos resultados a grande maioria das proteínas está anotada com ontologias pouco informativas
quer em relação ao processo biológico, quer em relação à localização celular, quer mesmo à
função molecular das várias proteínas.
A lista de proteínas obtidas neste trabalho será utilizada para atualizar a base de dados
OralOme e servirá ainda de input para uma ferramenta de previsão de interações entre
proteínas dos microrganismos presentes na cavidade oral e proteínas do hospedeiro. Uma
versão inicial desta ferramenta de interactómica (OralInt) já está disponível e foi submetida
para publicação, embora apenas com as 1212 proteínas identificadas em estudos de amostras
da cavidade oral (23). Como foi já largamente expresso ao longo desta discussão este número
não reflete certamente a totalidade de proteínas na cavidade oral e por isso a tabela produzida
com este trabalho permitirá melhorar em grande medida o desenvolvimento da ferramenta de
interactómica cumprindo o objectivo maior deste trabalho.
Os dados gerados nesta compilação manual fornecem uma base para o
desenvolvimento de algoritmos que permitirão o estudo das interações entre as proteínas
humanas e microbianas presentes na cavidade oral. A informação sobre essas interações, por
sua vez, é essencial na compreensão dos mecanismos envolvidos em doenças infeciosas como
a Cárie, Periodontite (16) e em patologias sistémicas com manifestações na cavidade oral.
No documento
OralOme : o contributo dos microrganismos revelado por estudos de proteómica
(páginas 61-67)