• Nenhum resultado encontrado

Discussões sobre processo de trabalho em saúde no campo da Saúde Coletiva: articulações possíveis com a perspectiva ergológica

O ‘corpo-si’ (corps-soi) na gestão da atividade

Capítulo 2. Discussões sobre Processo de Trabalho em Saúde e a Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de

2.2. Discussões sobre processo de trabalho em saúde no campo da Saúde Coletiva: articulações possíveis com a perspectiva ergológica

Antes de entrarmos na discussão sobre Processo de Trabalho em Saúde (PTS), em particular, importante lembrar que a construção do campo da Saúde do Trabalhador no Brasil, como parte da Saúde Coletiva, introduziu uma nova abordagem das relações entre saúde e trabalho ao tomar o „processo de trabalho‟ como categoria fundamental de análise dessas relações (Brito, 2004, 2011; Mendes & Dias, 1991; Dias, 1993; Oliveira, 1998; Minayo Gomes et al, 2011). Neste sentido, poderíamos situar essas discussões sobre o PTS, como parte desses movimentos político-acadêmicos no Brasil que, inspirados no Movimento Operário Italiano (MOI) através da obra de Ivar Oddone, transformaram os referenciais de análise do processo saúde/doença no trabalho em oposição “à concepção de causalidade, que vincula a doença a um agente específico ou a um grupo de fatores de risco presentes no ambiente de trabalho” (Brito, 2004). Tomar o PTS como objeto de nossas preocupações nos posiciona a favor, entre outros, da defesa da saúde desses trabalhadores e de sua capacidade de interferir e produzir mudanças. Neste sentido, introduziremos discussões sobre o PTS e, a partir daí, as contribuições de referenciais ergológicos para essas reflexões.

Uma marca comum, se assim poderíamos dizer, entre os estudos e debates sobre PTS, no campo da Saúde Coletiva, e aqui incluímos a PNH (Campos, 2005, 2007; Tenório, 2005; Pashe, 2006; Santos-Filho e Barros, 2007), refere-se à postura crítica diante dos

47

Princípios de administração científica, de Frederik W. Taylor (1990). Nessa perspectiva, destacam-se as formulações de Campos (2005, 2007), ao comentar sobre a „atualidade dos princípios tayloristas‟: “Ainda que o campo da gestão se tenha ampliado desde 1911, a disciplina e o controle continuam sendo o eixo central dos métodos de gestão. A este eixo conformador do taylorismo denominou-se “racionalidade gerencial hegemônica” (Campos, 2005, p. 23).

Neste campo de análises se insere a temática da subjetividade e do sujeito na abordagem de processos de trabalho, assim como discussões que reconhecem a importância da reorganização destes para a mudança do modelo assistencial.

Campos (2005) propõe “repensar o significado e o modo como se organiza o trabalho”, quando discute a hipótese referente à dupla finalidade do mesmo: “produzir bens e serviços necessários ao público, mas também cuidar da constituição do Sujeito e dos Coletivos” (op. cit., 2005, p. 14). A partir daí, afirma que o trabalho está também “implicado com a própria constituição das pessoas e de sua rede de relações: equipes, grupos, organizações, instituições e sociedades” (op.cit., 2005, p. 14).

Ressalta-se, no campo da urgência/emergência, o trabalho de Suely Deslandes (2002), que propõe uma análise do processo de trabalho, em suas palavras, “pelo viés das representações de seus agentes. Trabalhamos, portanto, com as percepções e representações que os trabalhadores da emergência constroem a partir de seu próprio processo de trabalho” (Deslandes, 2002, p. 45). A autora amplia, assim, a análise do processo de trabalho em saúde (PTS), ao propor incluir o ponto de vista dos trabalhadores através de suas representações/interpretações sobre a realidade do trabalho da urgência. Estas discussões trazem contribuições importantes para o debate sobre a valorização dos saberes „da experiência‟, em especial aqueles criados no enfrentamento cotidiano de situações de violências que atravessam (e afetam) o PTS em serviços de urgência/emergência.

Numa abordagem singular sobre a relação dor-desprazer-trabalho, Regina Benevides de Barros e Maria Elizabeth Barros de Barros (2007), a partir de constatações sobre a atual precarização das relações de trabalho, destacam, no caso da saúde, “um outro vetor-dobra da gestão que se abre. É a dobra11 das políticas de saúde”. Ainda segundo as

11

De acordo com Benevides de Barros e Barros de Barros (2007, p. 63): “É com a leitura de Deleuze sobre Foucault (Deleuze, 1991) que vemos destacado o tema das dobras, de tal maneira que as instâncias do dentro e do fora deixam de ser tomadas como faces ou lados opostos das formas-sujeito, instituições, mas como matérias móveis de um plano comum de produção. O esforço teórico-político do(s) autor(es) é o de superar as velhas dicotomias instaladas desde o projeto da modernidade. O saber, o poder e o si são três dimensões irredutíveis,

48 autoras: “Não é possível propor/pensar a gestão em saúde, seja a gestão do sistema, seja dos serviços, seja a gestão da atividade, sem que se leve em conta o modo como estas políticas se constroem e o que nelas se reafirma como „público‟(Benevides de Barros e Barros de Barros, p. 65). Neste sentido, acentuam a complexidade da discussão sobre gestão em saúde, ao proporem uma análise ampla do processo de trabalho em que se incluem, além dos sujeitos e saberes, o poder (modos de estabelecer as relações) e as políticas públicas (coletivização destas relações). Eis a tese proposta por Benevides de Barros e Barros de Barros (2007, p. 62): “gestão não é apenas organização do processo de trabalho, mas é o que se passa entre os vetores-dobras que o constituem”.

Neste diálogo em que se ampliam abordagens do PTS, encontramos autores que problematizam sobre a lógica hegemônica nesses processos, perguntando-se sobre a finalidade dos mesmos: produzir procedimentos ou produzir cuidados? Franco e Merhy (2006) partem de análises em que se reconhece a hegemonia do saber médico e da lógica da produção de procedimentos, ao discutirem e classificarem as tecnologias do trabalho em saúde, quando problematizam o PTS na discussão sobre o atual modelo assistencial. “Tecnologias aqui entendidas como conjunto de conhecimentos e agires aplicados à produção de algo” (Franco & Merhy, 2006, p. 116). Conforme os autores:

Este conhecimento pode estar materializado em máquinas e instrumentos, ou em recursos teóricos e técnicas estruturadas, como tecnologias duras e leve- duras, respectivamente, lugares próprios do „trabalho morto‟. Por outro lado, este conhecimento pode estar disperso nas experiências e modos singulares de cada profissional de saúde operar seu trabalho vivo em ato, como na produção de relações, tão fundamentais para o trabalho em saúde (...) Esta função criativa e criadora que pode caracterizar os serviços de saúde, a partir das relações singulares, é operada por „tecnologias leves‟, território onde se inscreve o „trabalho vivo em ato‟. Buscar na arena da produção de serviços de saúde, os lugares onde se matriciam o conhecimento e a forma de potencializá-los para a assistência à saúde é fundamental (Franco & Merhy, 2006, p. 116-117).

Nesta direção, os autores analisam o Programa de Saúde da Família (PSF), formulado pelo Ministério da Saúde em 1994 e considerado como uma resposta às críticas ao modelo „médico-hospitalo-cêntrico‟, centrado numa visão biologicista do processo saúde- doença, em que predominam práticas curativas e medicamentosas. Não entraremos aqui na análise do PSF, interessa-nos extrair elementos que contribuam para a discussão do PTS. Para isto, destacamos o que nos dizem Franco e Merhy (2006) sobre a impossibilidade de se promover mudanças na organização do trabalho „médico-cêntrico‟ apenas com a constituição de equipes multiprofissionais como núcleo da produção da assistência. É necessário mais do

49

que isto, trata-se de produzir mudanças dos sujeitos envolvidos com o trabalho, o que significa que é preciso associar, às novas configurações tecnológicas, a construção de nova ética que o oriente, ancorada em novos valores, como “solidariedade, cidadania e humanização da assistência” (Franco e Merhy, 2006, p. 116).

Estas abordagens críticas sobre a hegemonia dos saberes/fazeres médicos e da lógica da produção de procedimentos em contraposição à lógica da produção de cuidado despertam nossa atenção para o debate em que se contrapõem valores do bem comum ou do interesse público versus valores mercantis ou de mercado (Schwartz, 1996, 2002). Em seguida, discutiremos referenciais sobre o trabalho em saúde propostos por autores vinculados à PNH/SUS, através dos quais se desvela como estes debates se materializam nas dimensões do processo de trabalho.

Importante destacar que a PNH é formulada a partir da compreensão de que os modos de atenção e de gestão são indissociáveis, inseparáveis. Em outras palavras, não há como mudar práticas de atenção sem alterar a gestão dos processos de trabalho. Articula-se a este primeiro princípio, a aposta na autonomia, no protagonismo e na corresponsabilidade dos sujeitos implicados com a produção de saúde (Ministério da Saúde, 2008a).

Heckert, Passos e Barros (2009) contribuem com reflexões sobre gestão dos processos de trabalho em saúde, quando dialogam com a noção ergológica do „debate de valores‟ (Schwartz, 1996, 1998) que atravessa toda atividade de trabalho.

Entende-se que a gestão dos processos de trabalho em saúde não pode ser reduzida à sua dimensão gerencial-administrativa separada das práticas de cuidado, ou seja, não pode se identificar com uma lógica gerencial marcada pelos valores de mercado (Heckert, Passos & Barros, 2009, p. 494).

Em seguida, os autores discutem a relação entre cuidar e gerir, problematizando o PTS em que predominam „práticas hierarquizantes e de dominação‟ e concluem com a proposta de outra abordagem: “enfatizar as dimensões dos processos de trabalho que afirmam valores do bem comum” (Heckert, Passos & Barros, 2009, p. 494).

O trabalho em saúde é concebido como atividade que se realiza não como uma instância separada da gestão da própria atividade. Nesse sentido, toma-se a gestão não como algo separado do cuidado, como uma instância administrativo-gerencial, responsável pelas prescrições, decisões e organização do trabalho, mas como processo que se realiza e se atualiza pelos sujeitos em atividade. No prosseguimento das discussões, Benevides de Barros e Barros de Barros chamam atenção para as características muito especiais do produto de um PTS, tomado não como mercadoria a ser colocada à venda no mercado de bens de consumo

50 capitalista, mas como um serviço em defesa da vida e da saúde das pessoas: “Pensar a gestão em saúde é pensar modos de produção comprometidos com a vida” (Benevides de Barros & Barros de Barros, 2007, p. 65).

Ao definir trabalho como atividade e enfatizar a „dimensão gestionária‟ do mesmo, outros autores também trazem referenciais ergológicos para aprofundar formulações da PNH sobre as relações entre trabalho e gestão. Schwartz (2004b), problematizando a “deriva trabalhar, gerir”, ao discutir o trabalho como “uso dramático de si”, recusa a tese de que há gestão apenas por especialistas habilitados como tais. Nesta perspectiva trabalhar é gerir.

Dentre os autores que contribuem para a discussão sobre a PNH, destaca-se Hennington (2007, p. 12) ao ressaltar “a gestão dos processos de trabalho como parte vital da política de humanização em saúde”, o que marca a diferença do sentido atribuído pela PNH à humanização em saúde em relação à concepção “restrita e focada na relação trabalhador- usuário e no cumprimento de preceitos éticos” (Hennington, 2007, p. 4). A autora nos mostra que, para além das questões macrossociais, políticas e econômicas, a PNH, ao formular como um dos seus princípios a inseparabilidade entre atenção e gestão do processo de trabalho, reconhece o trabalhador da saúde como protagonista e corresponsável pela gestão do trabalho. Conclui, então, que a „inclusão do trabalhador‟, reconhecendo-se saberes e valores construídos na experiência, em articulação com os saberes protocolares, possibilita a articulação da PNH com o „Dispositivo de Três Polos‟ da Ergologia (Schwartz, 2000b). Conforme discutimos anteriormente, este dispositivo procura favorecer articulações entre os três pólos: o dos conceitos; o da experiência ou dos saberes gerados nas atividades (pólo das „forças de convocação e de reconvocação‟); e o das exigências éticas e epistemológicas, que se refere ao projeto comum, ao diálogo que se realiza entre os diferentes atores − pesquisadores e trabalhadores.

As discussões sobre processo de trabalho a partir dos referenciais marxistas ampliam-se na medida em que incorporam novas dimensões de análise ao buscar o ponto de vista da atividade humana, na perspectiva ergológica.

2.3. Do debate sobre a Humanização como política pública transversal de fortalecimento